Com projetos antirracistas, escolas públicas do Distrito Federal buscam construir uma sociedade mais justa

“Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. A frase do educador Paulo Freire consolida um novo sentido que as escolas da rede pública de ensino do Distrito Federal têm atribuído ao dia 20 de Novembro: Dia da Consciência Negra.

 

Uma nova leva de professores(as), orientadores(as) educacionais e gestores(as), bem como de estudantes, ávidos de justiça social, entendem que a Consciência Negra é uma prática diária e pode ser adquirida na escola. Também compreendem que essa prática é capaz de construir uma sociedade sem preconceitos, menos violenta e mais justa. A partir dessa constatação, dedicam-se, cada vez mais, a projetos pedagógicos interdisciplinares e antirracistas.

 

Com isso, para além de um dia de comemorações, o 20 de Novembro – Dia da Consciência Negra – passou a ser uma referência pedagógica que atravessa todas as disciplinas desde a Educação Infantil até o Ensino Fundamental e Médio. As escolas pública têm adotado a Lei nº 10.639/2003 – que torna obrigatório o ensino de história e cultua afro-brasileira e africana nas escolas – como norteadora de projetos pedagógicos inter e transdisciplinares anuais com envolvimento intenso dos(as) estudantes.

 

A cada ano, de 2003, o magistério público tem lançado ideias e aperfeiçoado produções acadêmicas que visam a descolonizar as chamadas “armadilhas da educação básica”. Nessa descoberta coletiva e ensejada pela lei, o Dia da Consciência Negra extrapolou o mês de novembro e tem ocupado todo o ano letivo com uma profusão de propostas para uma educação antirracista.

 

Os diferentes projetos em curso mostram que a escola pública do DF já está conectada com essa prática. Agora é caminhar para conquistar mais adeptos(as) e aperfeiçoar a prática educativa e paulo-freireana de desconstrução do racismo ao mesmo tempo que constrói uma sociedade antirracista, crítica e consciente a partir da Educação Básica. Quase todas as escolas já produzem seus próprios projetos pedagógicos antirracistas e todos com boa repercussão entre os e as estudantes. Nesta reportagem, o Sinpro-DF apresenta três de muito sucesso.

 

Projeto Cidade Cor e o CEF 08 de Taguatinga

 

Um dos principais exemplos de projeto pedagógico relacionado à Consciência Negra adotado na rede pública de ensino é o “Cidade cor: educação antirracista em Taguatinga”. Idealizado e coordenado pela professora de Educação Básica Janaína Almeida, ele é desenvolvido pela Coordenação Regional de Ensino (CRE) de Taguatinga. Foi lançado no dia 27 de outubro deste ano, com um show da Helen Oléria no Centro Cultural Taguaparque.

 

A CRE encampou a ideia e contou com a adesão imediata de 34 escolas de Educação Infantil, Ensino Fundamental I e II e Ensino Médio. O objetivo é fazer acontecer, efetivamente, a Lei 10.639/03 nas escolas em o todo o ano letivo. “É um projeto que vai além da perspectiva do combate ao racismo, e sim para que, de fato, se evidenciem as práticas racistas e que os estudantes tenham as competências e habilidades suficientes para identificar essas práticas e não cometê-las e também combatê-las”, explica.

 

 

Janaína informa que o projeto também foca nos professores e nas professoras. “Ele pretende dar subsídios para que eles e elas implantem a educação antirracista nos seus planejamentos, independentemente, da área. Tem a dimensão de ser transdisciplinar”, afirma. Segundo ela, o projeto está dividido em três áreas. A primeira é a dimensão pedagógica, que trabalha com a formação de professores, tanto continuada como com a produção de materiais.

 

“Vamos lançar um caderno construtivo, teórico e conceitual que traz elementos para que professor possam pesquisar e estudar e ter um embasamento maior para as suas aulas na perspectiva de educação antirracista”, informa. Tem também uma dimensão artístico-cultural, que traz para o trabalho pedagógico atividades artísticas e culturais relacionadas à artistas da cidade que defendem e difundem a cultura afro-brasileira e africana. E, por último, uma dimensão de acessibilidade emocional.

 

“Ou seja, nessa última dimensão a gente vai fazer com que a gestão da escola seja também uma gestão antirracista e que a escola seja um ambiente antirracista. Costumo exemplificar com o fato de que os muros das escolas existem diversas pinturas com vários significados e representações, mas dificilmente existe a figura da pessoa negra. E quando tem você conta nos dedos e essa conta não fecha. Geralmente, tem sete, oito personagens e só um negro. Daí começa a dificuldade do estudante se ver nesse espaço se não conseguem se reconhecer nem na representação imagética que dirá nas atividades escolares”, diz Janaína.

 

Com isso o projeto também inclui pinturas dos muros escolares com essa representatividade negra, nos painéis, e o indicativo nas atividades seja contemplada toda essa questão. “Faremos aquisição de livros de literatura, paradidáticos, informativos com essa mesma perspectiva, que abordem o tema e que sejam de autores e autoras negros. Tem também a parte da orientação educacional dentro desse braço de assistência socioemocional, que é fazer com que os orientadores e as orientadoras educacionais trabalhem com a perspectiva de que quando essa ofensa ocorre em ambiente escolar seja considerada racismo e não bullying”, explica.

 

Janaína atribui o êxito do projeto ao engajamento à formação dos professores e das professoras. “Isso porque se a gente não mudar a concepção dos professores e das professoras e não trabalhar com a desconstrução das práticas que estão postas e que muitas vezes são equivocadas a gente não vai conseguir avançar. Eles e elas perceberam a necessidade de se trabalhar o tema e estamos fazendo várias formações”, informa.

 

O projeto Cidade Cor: educação antirracista em Taguatinga já promoveu várias formações de professores. No mês de lançamento, teve um seminário, foi realizado um trabalho nas coordenações pedagógicas coletivas das escolas, formação com uma excursão pelos baobás de Brasília, em que foi alugado um ônibus para levar um representante de cada uma das escolas do projeto e excursionaram pela cidade conhecendo cada um dos baobás. Aprenderam como fazer o plantio e como cultivar e cada escola do projeto recebeu uma muda de baobá para plantar nas suas respectivas escolas, as quais já estão fazendo concurso para escolher o nome do seu baobá, o que envolve também uma interdisciplinaridade.

 

Uma das escolas é o Centro de Ensino Fundamental 08 de Taguatinga (CEF 08), por exemplo, é uma das 34 escolas que aderiram ao Cidade Cor e, agora, todo dia é Dia da Consciência Negra. E inaugurou o projeto com o evento intitulado “Representatividade negra na mídia”, que culminou com o lançamento do portal de notícias da própria escola com conteúdo inicial sobre educação antirracista, organizado pela professora de Língua Portuguesa, Rosilene Silva da Costa, que trabalhou com os estudantes ao longo do ano os temas das questões raciais. Na quadra esportiva, foi realizada uma roda de conversa sobre representatividade negra na mídia, e contou com a participação do convidado rapper LyNDOoN, vencedor do concurso Brasília Independente, produzido pela Rede Globo.

 

Escola Classe 09 de Planaltina e a roda de vivências

 

 

Na Escola Classe 09, de Planaltina, por exemplo, a professora Tânia Fernandes desenvolve um projeto antirracista. Ela põe em curso, desde o início do ano letivo, uma ação que ela chama de “roda de vivências” a partir de histórias contadas ou lidas. Ela conta que já gostava de histórias e se descobriu contadora depois de um curso que fez em 2017.

 

O projeto de Tânia começou, em 2018, com o título “Cores do Brasil”. Em 2019, mudou para “À sombra do baobá”. A cada ano foi recebendo outras roupagens, dependendo sempre das demandas, das parcerias. Em 2020, apesar da pandemia da covid-19, ela fez algumas adaptações e continuou. Em 2021, com a volta das aulas presenciais, o projeto passou a realizar as ações semanais.

 

“Entendi que contar histórias era um bom caminho e que, a partir delas, muita coisa pode acontecer. As histórias escolhidas são de autoria negras, com o objetivo de dar visibilidade a autores e autoras negras, que não são os cânones, que nem sempre chegam ao mercado, e também trazer esses e essas escritores(as) como referências positivas para as crianças entenderem que existem escritoras e escritores negros. Mas não é só isso. A gente traz também para a roda de vivências personalidades importantes da ciência, da arte, de outras áreas que as crianças nem imaginam que essas pessoas ocupem esses espaços, muitas vezes, se a gente não contar para elas”, explica.

 

A professora Tânia Maria Vaz Fernandes, que, atualmente, trabalha com turma de Primeiro Ano de Ensino Fundamental da Escola Classe 09 de Planaltina, levou para a sala de aula projetos e práticas antirracistas. Para ela, essa ação sempre foi uma prioridade na execução do magistério. “Sempre foi uma prioridade para mim porque é minha bandeira de vida. Sou fruto de um trabalho assim e acredito que tenho a responsabilidade de ser uma referência para as minhas turmas, para as pessoas e para as crianças que convivem comigo”, afirma.

 

 

Segundo ela, é importante localizar no mapa de onde elas são, trazer o respeito à origem. “A gente tem aprendido bastante sobre alguns países do continente africano; resgatado brincadeiras de origem africana; receitas culinárias; palavras, etc. e a gente vai concluindo, com as crianças, que a gente tem muito de África nas nossas casas”.

 

Tânia afirma que esse projeto pode ser desenvolvido em qualquer turma e qualquer nível de escolaridade, até mesmo em nível superior, porque a história é apenas o ponto de partida. “A abordagem é a que a que a professora ou o professor que dar. Assim, os aspectos geográficos, histórico, artístico, literário, língua portuguesa, sociologia e filosofia. São infinitas possibilidade”, explica.

 

Sala de Recursos e os “Super Bate-Papos” antirracistas

 

Rodrigo Santana, professor de língua portuguesa e pedagogo, pôs em curso um projeto “Super Bate-Papos”, da Sala de Recursos de Altas Habilidades em Linguagens, localizada no CEF 213, de Santa Maria, do qual faz parte também do Caic Santa Maria. Ele conta que o projeto surgiu quando ele precisou trazer algo novo para os e as estudantes durante a pandemia.

 

“Na Sala de Recursos os estudantes são atendidos no turno contrário à escola regular para atividades suplementares. Atendemos estudantes de várias escolas de Santa Maria. Atualmente, somos 35 estudantes divididos em seis turmas”, informa. O projeto foi dividido em temporadas. Na primeira, foram 10 encontros, entre 1º/9/2020 a 28/1/2021, com participação de doutores em linguística, escritores, contadoras de histórias, fotógrafas, técnicos judiciários, coordenadoras de projetos e foram trabalhados diversos temas, como literatura brasileira, valorização da vida, a fotografia e sua linguagem; livros, filmes e séries e a importância deles para os textos; caminhos da fantasia literária abertos por Harry Potter; a força de leitura para ascensão profissional; literatura como denúncia social; e bate-papos sobre escritoras pretas e clubes de leitura.

 

 

Dentro do “Super Bate-Papos”, houve a execução de um projeto menor, mas com grande importância: o 1º Sarau Cultural Antirracista, em dezembro de 2020. O sucesso foi tanto que os estudantes pediram uma segunda edição. O 2º Sarau Cultura Antirracista foi realizado no sábado passado, dia 20 de novembro. Receberam cantores e convidados e os estudantes produziram textos, poemas e apresentaram também ativistas pretos e pretas da atualidade, que fazem uma corrente de força pela luta antirracista.

 

Atualmente, está em curso a terceira temporada, que começou no dia 18/9/2021 e seu encerramento está previsto para ocorrer no dia 4/12. Nesta temporada, já receberam Meire Helen Galvão, uma pessoa com deficiência para falar sobre representatividade PCD na literatura; e Rafael Prado, homem gay, para falar de representatividade de LGBTQIA+ também na literatura.

 

Ainda nesta terceira temporada, conversaram com uma psicóloga, sobre saúde mental e outros temas relacionados; uma indígena do povo Avá-Canoeiro para falar sobre representatividade indígena na literatura e, o próximo, no dia 4/12, o projeto irá receber convidados das cinco regiões do País para conversar sobre a paixão pela literatura.

 

 

Os estudantes da Sala de Recursos receberam doação de muitos livros da literatura clássica nacional e estrangeira, livros infanto-juvenis. “Além de termos tido o privilégio de convidados falando de temas importantes e necessários da contemporaneidade, ainda formos premiados com vários livros. Recebemos distopias, como “1984”, “Admirável mundo novo”, “Os miseráveis”, “O meu pé de laranja lima” etc. Também receberam livros de escritoras pretas, como Djamila Ribeiro, Chimamanda Ngozi Adichie, Conceição Evaristo. De Djamila recebemos, por exemplo, a obra “Pequeno manual antirracista”, uma obra necessária a todos que querem e devem combater o racismo no nosso País.

 

A diretoria colegiada o Sinpro-DF informa que a Secretaria de Raça e Sexualidade do sindicato também atua, há anos, subsidiando professores(as), orientadores(as) educacionais, escolas e CRE na ação pedagógica e em todas as demais dimensões que o tema do antirracismo exige. Desde que a Lei 10.639/03 foi sancionada, o sindicato orienta e oferece subsídios para docentes a aplicarem no magistério.