CNTE analisa a terceira versão da Base Nacional Curricular

No dia 5 de abril de 2017, o Ministério da Educação (MEC) enviou oficialmente ao Conselho Nacional de Educação (CNE) a terceira versão da BNCC – restrita à educação infantil e ao ensino fundamental – para consulta antes de ser homologada pelo Ministro de Estado da Educação.
Além do ensino médio, ficaram fora desta versão da BNCC as modalidades de Educação Especial e de Jovens e Adultos (além da técnica-profissional, associada ao ensino médio), assim como as escolas indígenas, quilombolas e do campo, traços marcantes da luta pela inclusão social e escolar de todas as populações que habitam nosso imenso e desigual país.
Elencamos, na sequência, os principais pontos de vista da CNTE sobre a mais recente versão da BNCC, e, desde já, reivindicamos ao CNE amplo debate social sobre o assunto, especialmente com a comunidade escolar, com as entidades de classe e redes sociais e de pesquisa que atuam em defesa e promoção da educação pública, gratuita, laica, plural, democrática e de qualidade socialmente referenciada.
Base legal da BNCC
A primeira e maior referência para a construção da política pública curricular voltada para a educação básica brasileira é a Constituição Federal (CF). E dois dispositivos da Carta Magna tratam diretamente dos objetivos do currículo escolar. São eles:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (grifo nosso)
Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
O art. 206 da CF é taxativo ao afirmar que a educação deve ter caráter amplo – para além do ensino-aprendizagem –, o que requer tornar a escola em ambiente de formação para a vida. Já o art. 210, na verdade, precisa ser atualizado em sua literalidade, a fim de se manter coerente com o restante da Constituição, que ampliou a obrigatoriedade da educação e expandiu as normas de financiamento e de controle público sobre as políticas de toda a educação básica.
A obrigatoriedade do ensino de 4 a 17 anos e o compromisso em expandir a oferta de educação pública e gratuita na etapa da educação infantil – creche e pré-escola – confere ao Poder Público prerrogativa para estipular políticas curriculares para toda a educação básica, e não apenas para o ensino fundamental (única etapa obrigatória de ensino até 2009).
Frise-se que a ampliação do ensino obrigatório no Brasil teve o condão de contribuir para a consecução dos objetivos da República, dispostos no art. 3º da CF, in verbis:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Em nível infraconstitucional, a BNCC – instrumento normativo, sem força de lei, porém orientador para as políticas de currículo escolar –, possui duas importantes referências legais.
A primeira delas diz respeito às estratégias 2.2 e 3.3 da Lei 13.005, que aprovou o Plano Nacional de Educação, as quais dispõem sobre a necessidade de a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios pactuarem, no âmbito de Instância Permanente de Negociação e Cooperação, composta por representantes das três esferas administrativas, “a implantação dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento que configurarão a base nacional comum curricular” do ensino fundamental e médio.
A outra referência é a Lei 9.394, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional (LDB), que em seu art. 9º, inciso IV dispõe que compete à União “estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum”.
Sobre o conceito de “conteúdo mínimo” expresso no artigo supracitado da LDB, duas considerações. Uma, que a LDB sancionada em 1996 rejeitou grande parte das propostas do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, constituindo-se em instrumento da reforma neoliberal dos anos 1990. Segunda, que a formação em nível nacional deveria ter uma base mínima comum, possibilitando agregar outros conteúdos regionais e/ou definidos pelo projeto político-pedagógico da escola, tal como prescreve o art. 12 da LDB: “Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de: I – elaborar e executar sua proposta pedagógica; (…)”.
Com relação ao conteúdo específico da BNCC, em âmbito de toda a educação básica, as diretrizes para sua fixação estão dadas, principalmente, nos artigos 26 e 26-A da LDB, inclusive à luz das mudanças feitas pela Reforma do Ensino Médio (Lei 13.415), que também abarcou questões relativas ao ensino fundamental. E dada a relevância desses dispositivos legais para a análise da BNCC, os reproduzimos a seguir:
Art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos. (grifo nosso)
§ 3o A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular obrigatório da educação básica, sendo sua prática facultativa ao aluno:
I – que cumpra jornada de trabalho igual ou superior a seis horas;
II – maior de trinta anos de idade;
III – que estiver prestando serviço militar inicial ou que, em situação similar, estiver obrigado à prática da educação física;
IV – amparado pelo Decreto-Lei no 1.044, de 21 de outubro de 1969;
V – (VETADO)
VI – que tenha prole.
§ 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia.
§ 5o No currículo do ensino fundamental, a partir do sexto ano, será ofertada a língua inglesa. (Redação dada pela Lei nº 13.415, de 2017 – reforma do ensino médio)
§ 6o As artes visuais, a dança, a música e o teatro são as linguagens que constituirão o componente curricular de que trata o § 2o deste artigo.
§ 7o A integralização curricular poderá incluir, a critério dos sistemas de ensino, projetos e pesquisas envolvendo os temas transversais de que trata o caput. (Redação dada pela Lei nº 13.415, de 2017 – reforma do ensino médio)
§ 8º A exibição de filmes de produção nacional constituirá componente curricular complementar integrado à proposta pedagógica da escola, sendo a sua exibição obrigatória por, no mínimo, 2 (duas) horas mensais.
§ 9o Conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a criança e o adolescente serão incluídos, como temas transversais, nos currículos escolares de que trata o caput deste artigo, tendo como diretriz a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), observada a produção e distribuição de material didático adequado.
§ 10. A inclusão de novos componentes curriculares de caráter obrigatório na Base Nacional Comum Curricular dependerá de aprovação do Conselho Nacional de Educação e de homologação pelo Ministro de Estado da Educação. (Incluído pela Lei nº 13.415, de 2017 – reforma do ensino médio)
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
Novamente, o caput do art. 26 da LDB, que é a referência infraconstitucional para os conteúdos da BNCC, reforça o caráter suplementar de conteúdos a serem definidos pelos sistemas de ensino e pelas escolas, razão pela qual a BNCC não pode esgotar as matrizes curriculares, tampouco prescrever conteúdos e ações a serem adotados de forma universal. Isso representa medida contra legem (que contraria a Lei) e grave invasão à competência dos sistemas de educação de estados, DF e municípios, das escolas e de seus profissionais. Quanto a esses últimos, diz a LDB:
Art. 13. Os docentes incumbir-se-ão de:
I – participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino;
II – elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino;

Portanto, a BNCC não pode de maneira alguma usurpar poderes e direitos dos sistemas, das escolas e de seus profissionais, sob pena de se tornar um instrumento ilegítimo e ilegal.
Especificamente sobre os conteúdos pedagógicos da Educação Infantil, a norma legal se sustenta no art. 29 da LDB, abaixo transcrito, observados os objetivos da Meta 1 do Plano Nacional de Educação (Lei 13.005) e suas respectivas estratégias:
Art. 29. A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. (grifos nossos)
Quanto ao ensino fundamental, a BNCC deve se pautar nos preceitos do art. 32 da LDB (destacado a seguir) e na Meta 2 do PNE:
Art. 32. O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante:
I – o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo;
II – a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade;
III – o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores;
IV – o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.

§ 3º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

§ 5o O currículo do ensino fundamental incluirá, obrigatoriamente, conteúdo que trate dos direitos das crianças e dos adolescentes, tendo como diretriz a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente, observada a produção e distribuição de material didático adequado.
§ 6º O estudo sobre os símbolos nacionais será incluído como tema transversal nos currículos do ensino fundamental.
Por fim, é importante frisar a necessidade de a BNCC dialogar diretamente com as Diretrizes Nacionais Curriculares do Conselho Nacional de Educação, as quais se consubstanciam na legislação pátria e formam o arcabouço normativo dos sistemas de educação e das escolas do país.
Fragmentação da educação básica
A omissão da etapa do ensino médio na BNCC, e a opção em enviá-la posteriormente apartada da proposta de currículo do ensino fundamental – em especial dos anos finais (6º ao 9º ano) –, reforça a tendência deliberada do MEC em fragmentar o conceito de educação básica construído a partir da LDB, que considera a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio etapas indissociáveis da educação escolar em nível básico, devendo haver sintonia e padrão unitário curricular voltado à formação humanística e cidadã dos estudantes.
Também reforça o caráter fragmentário da BNCC a ausência de orientações para as diferentes modalidades de ensino e formas de oferta escolar, sobretudo para as populações do campo, de aldeias indígena e remanescentes de quilombos.
Eis os artigos da LDB que contemplam o conceito unitário da educação básica:
Art. 21. A educação escolar compõe-se de:
I – educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio;(grifo nosso)
II – educação superior.
Art. 22. A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. (grifo nosso)
A reforma do ensino médio foi o primeiro passo para a dicotomia do currículo da educação básica. Com ela, os estudantes terão uma base comum restrita no ensino médio (orientada pela BNCC), devendo, num segundo momento, direcionar mais da metade do currículo para áreas de interesses específicos, a exemplo da Educação técnica-profissional. Essas áreas, por sua vez, poderão ser ofertadas de maneira desarticulada dos princípios que regem a formação dos estudantes de nível básico, prescritos no art. 205 da CF, e fora da escola pública (o comum será terceirizar/privatizar a formação específica no ensino médio, até porque as escolas, em sua maioria, não estão aptas e nem obrigadas a ofertar as cinco áreas previstas no novo currículo do ensino médio, a saber: I – linguagens e suas tecnologias; II – matemática e suas tecnologias; III – ciências da natureza e suas tecnologias; IV – ciências humanas e sociais aplicadas; e V – formação técnica e profissional).
Porém, neste momento de envio da terceira versão da BNCC ao CNE, o que mais chama a atenção é o descompromisso do MEC em garantir os elos de ligação entre as três etapas da educação básica – e situando as modalidades e as formas de oferta escolar na BNCC –, remetendo especialmente o ensino médio para uma área distinta, isolada e fragmentada, ferindo o conceito de nível básico da educação descritos nos artigos 21 e 22 da LDB.
Ausência de Sistema Nacional de Educação e de outras políticas sistêmicas
Para a CNTE, a implementação da BNCC precede de algumas regulamentações do Plano Nacional de Educação – com prazos já expirados ou em vias de expirar – que são essenciais para a qualidade da educação e para a plena e segura aplicação de qualquer base curricular.
A primeira e mais significativa regulamentação pendente do PNE – que tem tudo a ver com a aplicação da BNCC – refere-se à concepção de Sistema Nacional de Educação, o qual deve ser regido por amplo regime de cooperação financeira entre os entes federados e de colaboração organizacional entre os sistemas de educação. Infelizmente, no documento da BNCC (p. 14/15), o MEC se propõe apenas a rever políticas de formação de professores e a constituir comissões interfederativas para acompanhar a aplicação da Base, o que é insuficiente para a demanda da BNCC e para a concretização do direito à educação pública, gratuita, laica, plural, democrática e de qualidade socialmente referenciada.
Neste sentido, e à luz das deliberações da Conferência Nacional de Educação (CONAE), a qualidade e a equidade na oferta escolar requerem (para além da BNCC) uma estrutura de cooperação federativa pautada na implementação do CAQi e do CAQ (estratégias 20.6 a 20.8 do PNE), devendo a política de Custo Aluno Qualidade pautar a reformulação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB). Sem CAQi e CAQ não será possível garantir o acesso, a permanência e a aprendizagem dos estudantes nas escolas (urbanas e rurais). Ou alguém acredita na falácia de que o problema da qualidade da educação no Brasil seja apenas uma questão curricular?
Outro ponto crucial na cooperação e colaboração interfederativa diz respeito à valorização dos profissionais da educação, observados os critérios universais – não obstante a formação inicial e continuada apontada pelo MEC – de contratação por concurso público, de pagamento do piso do magistério vinculado aos planos de carreira, de cumprimento da jornada extraclasse dos/as professores/as, além da regulamentação do piso e das diretrizes nacionais de carreira para os demais profissionais da educação (art. 61 da LDB). Esses parâmetros, a serem cumpridos por todas as redes de ensino, são indispensáveis para a qualidade da educação e para o bom aproveitamento da BNCC.
Diante desses e outros pontos, é imprescindível que o MEC se comprometa a aplicar e a regulamentar o PNE naquilo que lhe compete, orientando os estados, DF e municípios a fazerem o mesmo em suas áreas de competência. Nesta perspectiva, os regimes de cooperação federativa e colaboração entre os sistemas de ensino passariam a dar sustentabilidade ao Sistema Nacional de Educação, o qual deve pautar políticas equânimes à luz do art. 206 da CF e de outros dispositivos constitucionais e infraconstitucionais.
Art. 206 – CF. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
V – valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas;
VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
VII – garantia de padrão de qualidade;
VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal.
Parágrafo único. A lei disporá sobre as categorias de trabalhadores considerados profissionais da educação básica e sobre a fixação de prazo para a elaboração ou adequação de seus planos de carreira, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
O art. 206 da CF é o principal indicador de que não existe a possibilidade de se alcançar a qualidade da educação sem se investir de forma simultânea em diferentes políticas que integram a oferta escolar. E todas as políticas estruturantes que integram o rol da qualidade da educação no texto constitucional, prescinde de outra que forma o grande “guarda-chuva” da valorização educacional, qual seja, o Financiamento da Educação (art. 212 CF e art. 60 ADCT/CF).
Em resumo: a falta de compromisso do MEC com o PNE e com as políticas sistêmicas da educação tendem tornar a BNCC – independentemente de seu conteúdo – num diploma estéril, sem condições plenas de implementação na grande maioria das escolas públicas, responsáveis por 80% das matrículas escolares. Isso porque, notoriamente, nossas escolas não estão instrumentalizadas para qualquer nova proposta pedagógica, simplesmente porque faltam infraestrutura adequada, material pedagógico compatível e formação inicial e continuada com valorização profissional para professores e funcionários.
Direitos e objetivos de aprendizagem versus competências curriculares
Como enfatizado no item 1 deste documento, a BNCC não pode representar uma indução a currículos únicos para as escolas brasileiras, pois a LDB e o PNE não lhe deram essa incumbência. E por isso, os níveis de detalhamento curricular – por ano/série de cada etapa numa lógica meritória – e a referência conceitual da BNCC precisam ser debatidos pelo CNE, a fim de não só respeitarem os conteúdos e habilidades diversos daqueles propostos pela Base – e que poderão ser incorporados aos currículos das escolas pelos sistemas, educadores e comunidade escolar –, mas também para aprofundar o conceito de direitos e objetivos de aprendizagem orientado pelo PNE.
Se, por um lado, a BNCC não pode se confundir com roteiro pré-definido para professores aplicarem suas aulas com prescrição de conteúdos por anos/séries (estilo cartilha professoral), de outro, o objetivo da pedagogia escolar também não deve se pautar em currículos referenciados exclusivamente por competências. E esse é o fundamento conceitual da BNCC, assim defendida pelo MEC à página 16 do documento enviado ao CNE:
“No Brasil, essas referências legais [de competências] têm orientado a maioria dos Estados e Municípios na construção de seus currículos. Essa mesma tendência de elaboração de currículos referenciados em competências é verificada em grande parte das reformas curriculares que vêm ocorrendo em diferentes países desde às décadas finais do século XX e ao longo deste início do século XXI. É esse também o enfoque adotado nas avaliações internacionais da Organização para a Cooperação Internacional e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que coordena o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa, na sigla em inglês), e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, na sigla em inglês) (…)”
Embora o MEC tente passar a ideia de consenso sobre a base conceitual da BNCC, ela está longe de ser unanimidade. Os/As trabalhadores/as em educação, por exemplo, rejeitam referenciais de competências na educação básica voltados para avaliações estandardizadas e para a formação exclusiva no mundo do trabalho. E essa última conotação deverá ficar mais evidente nas orientações curriculares da BNCC para o ensino médio.
Outrossim, o debate sobre competências curriculares se associa à explícita orientação governamental de desprofissionalização do magistério, à luz das várias medidas já tomadas para se admitir a contratação de professores por notório saber ou terceirizados e temporários, situações nas quais as competências se encaixam mais facilmente para orientar e avaliar o trabalho dos profissionais sem vínculos permanentes na escola.
Democracia e legitimidade social
A gestão democrática, princípio constitucional da educação, precisa ser respeita em todas as etapas de formulação, implementação, acompanhamento e avaliação das políticas educacionais.
Embora o debate da BNCC tenha sido inaugurado com ampla participação social, a partir da etapa de consolidação do documento pelo MEC (sob a gestão do governo ilegítimo), a participação social foi estancada, chegando-se ao ponto de o Ministério ter rejeitado a presença de integrantes do Fórum Nacional de Educação na comissão de sistematização e de ter contratado – com dispensa de licitação – a Fundação Carlos Alberto Vanzolini, ligada ao Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB, para acompanhar os trabalhos complementares de sistematização da BNCC. Sobre essa contratação suspeita e inoportuna, a CNTE já fez denúncia ao Ministério Público Federal e também ingressará com ação judicial contestando o contrato firmado entre o Poder Público e a Entidade de direito particular.
Diante do vácuo criado entre as contribuições da sociedade aos documentos iniciais da BNCC e a última versão do MEC, a CNTE reitera ao Conselho Nacional de Educação a necessidade de imediata abertura de diálogo público sobre a BNCC, a fim de que a mesma contemple as propostas da sociedade, muitas delas incorporadas às resoluções das duas Conferências Nacionais de Educação já realizadas e ao documento-base da 3ª CONAE agendada para 2018.
Para que projetos da envergadura da BNCC sejam efetivamente concretizados nas escolas, é preciso considerar, além da implementação de outras políticas sistêmicas, também a participação da comunidade escolar, especialmente dos trabalhadores em educação, responsáveis diretos pela implementação do currículo escolar. Sem essa sinergia e compromisso, dificilmente a tarefa da BNCC será cumprida, a exemplo do que aconteceu com os Parâmetros Curriculares Nacionais da década de 1990.
Mesmo antes de concluir sua análise da BNCC, a CNTE se manifestou contrária, por meio de Nota Pública, à supressão de última hora feita pelo MEC no documento da Base no tocante à identidade de gênero e à educação sexual. Esses dois temas, extremamente sensíveis na sociedade e no cotidiano escolar, têm sido combatidos por forças conservadoras que desrespeitam a laicidade e a diversidade de gêneros, culturas e orientações sexuais, contribuindo para o recrudescimento do machismo e de inúmeras formas de intolerâncias contra grupos sociais e pessoas. E é lamentável que o MEC tenha se esquivado desse debate, que poderá criar graves lacunas na formação de nossas crianças e jovens relacionadas à tolerância e ao combate de opressões e preconceitos.
A BNCC no contexto da privatização escolar e da terceirização dos profissionais da educação
As investidas do governo ilegítimo de Michel Temer contra os direitos sociais e trabalhistas não excepcionam a escola pública e seus profissionais, pelo contrário, os colocam no centro do projeto de desmonte do Estado Social de direitos.
O reducionismo curricular do ensino médio (parte comum a todos os estudantes) e a desprofissionalização do magistério, aprovados na forma da Lei 13.415; a flexibilização do trabalho escolar por meio de contratos terceirizados, temporários ou intermitentes (Lei 13.429 e PLS 218/16); a privatização das escolas através de Organizações Sociais – OSs (Lei 9.637, julgada constitucional pelo STF na ADI 1.923); o congelamento de investimentos sociais da União por duas décadas e a suspensão dos impostos vinculados para a educação (e a saúde) por mesmo período, além de outras medidas que retomam com profundidade o projeto neoliberal no país, situam a BNCC numa concepção restritiva e alinhada ao projeto de Estado (mínimo) em curso no país.
Segundo a avaliação do professor Zacarias Gama, da UERJ, divulgada no site Justificando, da revista Carta Capital (12/4/17), a privatização das escolas públicas por meio de OSs e a terceirização de seus profissionais por empresas privadas fará com que a Escola Pública deixe de ser tratada como uma Instituição Social, voltada à formação de cidadãos, para constituir-se numa Organização Social, centrada em interesses de determinado(s) setor(es) da sociedade (sobretudo de patrões). Essa nova perspectiva de instituição escolar se pauta em gestões empresariais (OSs) e na rotatividade e precarização da mão de obra (contratos temporários, terceirizados e intermitentes). E para atender a essa lógica mercantil e de precarização do trabalho, que se constitui num famigerado projeto de Estado para a educação e outras políticas sociais, é preciso conceber uma BNCC concatenada ao projeto maior.
Portanto, não é por acaso que a BNCC aprofunda a concepção de competências para os currículos escolares, com farto roteiro de habilidades que se traduzem em verdadeiras cartilhas para os/as professores/as e de fácil controle para as gestões das escolas e dos sistemas educacionais. E os testes padronizados serão o termômetro da aplicação da BNCC e da permanência ou não dos profissionais nas escolas.
Outros objetivos nem tão ocultos da BNCC
Para além do contrato espúrio firmado entre o MEC e a Fundação Carlos Alberto Vanzolini – a mesma que produziu o currículo escolar do estado de São Paulo à época em que a atual secretária executiva do MEC, Sra. Maria Helena Guimarães de Castro, foi secretária de educação do Estado, tendo, posteriormente, a mesma Fundação, editado livro didático de geografia com dois mapas do Paraguai –, por óbvio que também está por detrás do ímpeto de se elaborar novas bases curriculares para a educação básica um pool de editoras que terão amplo mercado para a venda de novos livros didáticos. E é preciso que a BNCC não seja usada como mecanismo de consolidação das políticas neoliberais no Brasil, tampouco seja chamariz para venda de livros, e muito menos um instrumento limitador para a formação plena e cidadã dos estudantes brasileiros.
Conclusão
À luz dos apontamentos e perspectivas listados neste documento, a CNTE atuará no debate da BNCC com vistas a (i) aprimorar o conceito de “direitos e objetivos de aprendizagem”, expresso na Lei 13.005 (PNE), contrapondo as competências curriculares e seus mecanismos de mensuração em massa; (ii) cobrar a implementação e regulamentação das demais metas e estratégias do PNE, especialmente para consolidar o Sistema Nacional de Educação amparado nos regimes de cooperação e colaboração, e (iii) salvaguardar a autonomia escolar e dos profissionais da educação na elaboração dos currículos em âmbito dos projetos político-pedagógicos das escolas, além de preservar o contrato efetivo de todos os profissionais que atuam nas escolas públicas, não permitindo que essa instituição perca seu compromisso social de formar cidadãos conscientes, livres e detentores de direitos individuais, coletivos, sobretudo de serem pessoas felizes.
Brasília, abril de 2017
Secretaria de Assuntos Educacionais da CNTE