Cepafre e o ato revolucionário de alfabetizar

Até o primeiro semestre deste ano, dona Ana Garcia de Araújo fazia parte do grupo de 78 mil pessoas do DF sem escolaridade, segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD), de 2021. Mas neste mês de dezembro, aos 81 anos de vida, dona Ana recebeu seu primeiro diploma, no auditório do Centro de Ensino Médio 4 da Guariroba, em Ceilândia. Ela está alfabetizada e pronta para ler o que der e vier.

Dona Ana Garcia de Araújo faz parte de uma turma de 100 pessoas que também tiveram a oportunidade de, neste ano, aprender a ler e escrever a partir da atuação do Centro de Educação Paulo Freire de Ceilândia, de educação popular.

Da esquerda para a direita, Mônica Santos, professora; Dona Ana Garcia, estudante; Waldek Batista dos Santos, presidente do Cepafre; Luciano Matos, diretor do Sinpro-DF

O grupo, hoje composto por cinco diretores, três conselheiros fiscais, alfabetizadores, associados e alguns voluntários, já alfabetizou muitas outras Anas. Fundado há 34 anos, o Ceprafre nasceu da iniciativa de um grupo de estudantes da extinta Escola Normal de Ceilândia, com alunos do mestrado em Educação da Universidade de Brasília (UnB). Em 1985, eles iniciaram uma experiência de alfabetização de adultos, baseada na metodologia do educador Paulo Freire.

“É um trabalho realmente revolucionário. É emocionante ver o poder transformador da educação. Ter a oportunidade de ser alfabetizado é ter a oportunidade de desbravar o mundo, e todo mundo tem que ter direito a isso”, afirma o diretor do Sinpro Luciano Matos, que participou da cerimônia de entrega do diploma de dona Ana Garcia e demais formandos.

A professora aposentada Maria Madalena Tôrres, sócia-fundadora do Cepafre, lembra que o grupo se originou e continua existindo pela falta de preocupação do governo com o direito constitucional à educação. “Todas as vezes que um trabalho popular se inicia, é porque faltou ao público. No Caso de Ceilândia, são 18 escolas de EJA (educação de jovens e adultos). Com esse complicador, como fazer para atender mais de 20 mil pessoas não alfabetizadas?”, explica.

Mestre em Tecnologia da Educação e apaixonada pela educação de jovens e adultos, professora Madalena Tôrres é atualmente a secretária do Cepafre, onde passou a maior parte da vida.

Ela conta que começou a alfabetizar quando ainda era estudantes do Ensino Médio, a partir do convite de amigos e amigas do grupo Jovens em Busca de Algo Mais, do qual era integrante. “Eles diziam: ‘na Escola Normal está tendo alfabetização com Paulo Freire’.” Ela atendeu ao pedido dos colegas e, logo em seguida, se deparou com um projeto grandioso que acabou perdendo o apoio logístico e financeiro.

“Todo o material do curso foi levado para a paróquia Nossa Senhora da Glória. Chegando lá, os padres também não queriam o trabalho, porque diziam que Paulo Freire era comunista. Nossos cartazes das palavras geradoras foram todas para a casa de uma amiga do grupo de jovens, a Vânia Rego. Aí ficavam os cartazes debaixo do colchão, giz e apagador nas caixas, embaixo da cama. E foi assim que a gente foi vivendo”, conta a professora Maria Madalena.

No centro, professora Madalena Tôrres; de azul, Luciano Matos, diretor do Sinpro-DF

Quase 40 anos depois, a professora sequer cogita se afastar do Cepafre onde, segundo ela, aprende todos os dias. “Eu aprendo todos os dias com eles. Tanto aprendo na formação, com os alfabetizadores, como na alfabetização com os alfabetizandos. É importante a gente ter essa clareza de que ninguém sabe tudo, mas também não existe ninguém que não saiba nada. As experiências de vida estão todas ali para a gente se aprofundar a cada dia. Aprendo a persistência”, ensina a professora.

Madalena Tôrres mostra que, embora haja alfabetizadores e alfabetizandos, a vivência no Cepafre é horizontal e coletiva, assim como a metodologia empregada para alfabetizar. Ali, tudo nasce da vivência do povo daquela comunidade.

“No caso de Ceilândia, de um universo de 19 palavras geradoras (palavra base para as lições de alfabetização), a mais falada é ‘lote’. Não é uma coisa pessoal, é algo que vem do coletivo. É feito uma pesquisa do universo vocabular”, explica Madalena Tôrres.

A partir da vivência, do coletivo e da solidariedade, em um espaço de tempo de aproximadamente nove meses, os jovens e adultos se alfabetizam. E de acordo com a professora Madalena Tôrres, ganham, sobretudo, autonomia. Ou seja, é a partir daí que os alfabetizados dão um passo à frente na tomada de decisões sobre a própria vida. “Aqui (no Cepafre), a gente não trabalha só aprender a ler a escrever. A gente leva a discussão sobre a comunidade que a gente vive, sobre a importância de integrar associações de moradores, de ter posicionamento político”, esclarece professora Madalena Tôrres.

Ferramenta de transformação social, o Cepafre tem parcos recursos, e sobrevive de parcerias com a UnB por meio do uso de uma pequena sala no Polo de Extensão de Ceilândia e do Projeto de Extensão “Formação de Alfabetizadores de Jovens, Adultos, Idosos e Defesa da Democracia”, coordenado pelo professor Erlando da Silva Reses (FE/UnB), além de parceria com o Instituto Unibanco e com o Sinpro.

As dificuldade são muitas, mas mesmo assim o Cepafre traz à população do DF um trabalho revolucionário: o da emancipação

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