Centenário da Semana de Arte Moderna

Um século atrás, o Brasil era uma república havia pouco mais de 30 anos. Também fazia pouco mais de 30 anos que a escravidão havia sido abolida no país, sem que isso trouxesse políticas públicas de inclusão para a população negra. A urbanização se acelerava, assim como o êxodo rural, e a então capital do país, o Rio de Janeiro, entre tantas revoluções nos costumes, via o surgimento do samba, que, depois de ter sido perseguido e criminalizado, tornou-se o principal gênero da Música Brasileira. As periferias das grandes cidades começavam a se desenhar, e o grande tema do ano não era a arte, mas sim, os cem anos da independência do Brasil.

O planeta vivia um período de insegurança e incertezas, entre as duas grandes guerras, e acabava de superar uma pandemia – a da gripe espanhola – que deixara mais de 50 milhões de mortos em todo o mundo. Em Paris, então capital cultural mundial, encontravam-se artistas como Luis Buñuel, Pablo Picasso, Salvador Dalí, Gertrude Stein, Ernest Hemingway e muitos outros grandes que revolucionaram as artes.

Foi nesse contexto de profundas transformações que se deu a Semana de Arte Moderna, iniciada há cem anos, dia 13 de fevereiro de 1922. Influenciados por vanguardas europeias, mas também por uma latente disposição e desejo de impulsionar uma arte genuinamente brasileira, artistas das diversas artes se uniram para dar vazão àquela ebulição, que revelava a busca de uma identidade artística nacional e da liberdade de criação e de forma.

Não por acaso, o evento tomou lugar no Teatro Municipal de São Paulo, cidade que crescia com impressionante velocidade, impulsionada pelas elites cafeicultoras e que, em pouco tempo, seria palco principal do início da industrialização do país. A Semana de arte Moderna, inclusive, foi financiada pela riqueza do campo, assim como a posterior industrialização que se esboçava.

A valorização da arte brasileira era um dos motes centrais do movimento, que também defendia a liberdade de expressão. Dali surgiram nomes que mudaram para sempre a literatura, a poesia, a música e as artes plásticas no país, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Heitor Villa-Lobos, entre muitos outros. Tarsila do Amaral e Manuel Bandeira não estiveram presentes ao evento, mas se tornaram dois dos principais nomes do modernismo no Brasil.

Entretanto, tanta criatividade e originalidade não cativaram os críticos e o público brasileiro logo de cara. A importância do evento e das iniciativas que ele desencadeou foram compreendidas e exaltada com o passar dos anos, mas a repercussão imediata não foi positiva. “A Semana de Arte Moderna não nasceu fazendo sucesso. Em 1922, a repercussão foi quase nula”, disse a historiadora de arte Regina Teixeira de Barros à BBC brasileira. “Seu legado é a reflexão crítica do passado e a vontade de renovação artística. A liberdade de criação é uma conquista da modernidade”, completou. “O principal legado da Semana foi despertar uma consciência de modernidade no campo artístico brasileiro e gerar um importante debate na sociedade da época sobre o que era ser moderno no Brasil”, acrescentou Andreia Vigo, da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.

1922 hoje

Revisitar a Semana de Arte Moderna de 1922 e seus princípios traz desafios atuais. Cem anos depois, temos um país, industrializado, com maioria da população vivendo nas cidades, e cada vez menos centrado artisticamente no sudeste. A diversidade é uma demanda e uma realidade, mas a igualdade de oportunidades e a plena liberdade de expressão ainda não existem.

O setor cultural foi um dos mais atingidos pela pandemia da covid-19, e os artistas são alvo frequente de ataques do governo Bolsonaro, que extinguiu o Ministério da Cultura e faz questão de ostentar a ignorância como uma marca e uma ideologia. O governo das fake news e do negacionismo realmente não consegue conviver com as emoções e as leituras históricas produzidas pela arte.

“Faz falta um Ministério da Cultura, faz falta um secretário que tenha cultura”, afirma Cipriano Snupi, artista visual nascido e criado em Ceilândia. Para ele, a ousadia representada na Semana de Arte Moderna de 1922 continua viva: “Foi um movimento de despertar da arte brasileira, deixando de ser puramente estética e acadêmica”, afirma ele.

Uma das obras de Cipriano estampa a capa da agenda do Sinpro 2022, que homenageia os cem anos da Semana de Arte Moderna. “Foi um marco na cultura brasileira, com impactos, inclusive, na forma de se viver”, diz Letícia Montandon, diretora da secretaria de imprensa do Sinpro. “E hoje podemos ampliar e ressignificar aquela manifestação, dando voz e vez à efervescências das periferias, por exemplo”, completa ela.

A Semana de Arte Moderna de 1922 foi marco não apenas artístico, mas do novo Brasil que emergia diante de tantas transformações. A ruptura com o que se compreendia como ultrapassado, a vontade de superar o colonialismo e a subserviência aos interesses estrangeiros e a criatividade imperando sobre as amarras da forma contribuíram decisivamente para a formação do povo brasileiro. Hoje, os desafios são novos e profundos, mas há muito o que se inspirar na disposição para o novo tempo que os modernistas ajudaram a fundar.