Carta de Paris: A apologia do terrorismo de Estado

Há 45 anos, dia 10 de agosto, o jovem frade dominicano Tito de Alencar se suicidou na França, aos 28 anos. Ele fora destruído psicologicamente nas salas de tortura pelos torturadores da Operação Bandeirantes e do DOI-CODI. Depois da libertação, em janeiro de 1971 – trocado com mais 69 presos políticos pelo embaixador da Suíça, sequestrado por revolucionários da VPR – a vida de Tito foi uma sucessão de delírios e alucinações. Os torturadores deixaram marcas profundas da tortura na sua alma.

De setembro de 1970 a janeiro de 1974, o Doi-Codi de São Paulo foi chefiado pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e deste período a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo reuniu 502 denúncias de tortura naquele centro de interrogatório do II Exército. Entre os torturados consta frei Tito de Alencar.

Mas agora, com o novo governo, os tempos são de revisionismo.

Nega-se a tortura, torturadores são considerados heróis, as vítimas – torturados, executados sumariamente ou desaparecidos – são tratadas de « terroristas ». O presidente inventa versões para desaparecimentos, mente como mentiam os que o precederam, dizendo às famílias que seus desaparecidos tinham sido sequestrados, assassinados por seus companheiros « terroristas » e, provavelmente, voltado … para Cuba.

A fúria dos militares saudosos da ditadora contra a presidente Dilma Rousseff vem em grande parte da coragem que ela teve de instaurar a Comissão Nacional da Verdade para investigar os crimes do terrorismo de Estado.

Em texto escrito em março de 2012, intitulado « Nunca Mais – La Comisión de la Verdad en Brasil », o Prêmio Nobel da Paz de 1980 Adolfo Pérez Esquivel lembrou que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve que recuar na instalação da Comissão da Verdade, devido a pressões de setores das Forças Armadas.

« É preocupante e surpreendente que alguns militares reformados tentem boicotar a constituição da Comissão da Verdade, que é lei, pressionando o governo da presidente Dilma Rousseff para assegurarem o silêncio e a impunidade dos crimes de lesa humanidade cometidos contra o povo brasileiro. »

Ao saudar a instalação, poucos meses antes, da Comissão da Verdade, o prêmio Nobel da Paz escreveu : « O Brasil era, em fins de 2011, o único país da América Latina que não havia formado uma comissão investigadora dos crimes de sua própria ditadura. Não é possível construir um projeto de país livre e soberano se as forças armadas estão ausentes, é necessário recuperar a mística dos libertadores independentistas de nossos povos e trabalhar para a integração regional e continental ».

Pérez Esquivel citava a tentativa do general reformado Luiz Eduardo Rocha Paiva, juntamente com outros, de pôr em dúvida o sofrimento do povo brasileiro sob a ditadura « para gerar suspeita e obscurecer a verdade histórica ». « O medo da investigação histórica desta instituição corporativa está provocando um grave dano às Forças Armadas e às novas gerações que a integram », escreve Esquivel.

Quando a voz dos fracos emerge

A Comissão Nacional da Verdade foi um momento do qual os brasileiros vão se orgulhar no futuro. Esse momento histórico confirma o que escreveu recentemente no Le Monde, o historiador francês Patrick Boucheron, professor do Collège de France, uma das mais prestigiosas instituições da cultura francesa: « A história não é, tão sistematicamente como se crê, a dos vencedores. A voz dos fracos emerge mais frequentemente que se pensa, mesmo que de maneira fugaz e subreptícia ».

A reação a esse momento fugaz de memória, verdade e justiça temos visto diariamente nas declarações estapafúrdias de Bolsonaro. Sempre que pode ele deixa escapar uma mentira para confundir e tentar desmontar o trabalho magnífico da Comissão da Verdade.

Paradoxalmente, um homem que não tem nenhum respeito à verdade histórica cita, de vez em quando, o versículo bíblico em que Jesus afirma : « Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará » (João 8 :32). É um dos maiores absurdos que se revelam nesse personagem que escapa a todos os padrões de civilidade.

O Brasil vive hoje o negacionismo de maneira espetacular.

Quase todo dia novas declarações do ex-militar-presidente tentam confundir os brasileiros ingênuos e reescrever a história.

Issos só é possível porque o Brasil não puniu os crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura, os militares foram protegidos pela Lei de Anistia, nunca revogada, como aconteceu na Argentina que julgou os crimes de Estado.

O que foi recalcado, negado e ocultado da história da ditadura brasileira retorna agora, como nas histórias individuais em que o inconsciente, segundo Freud, faz erupção espetacular de coisas que foram negadas, recalcadas pelo sujeito.

Cito abaixo um trecho do meu livro “A tortura como arma de guerra”, página 44, onde rememoro os desaparecimentos de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho e as mentiras contadas, já então, pelo ministro da Justiça Armando Falcão:

“Entre centenas de exemplos dos métodos de controle da informação e subterfúgios para dissimular desaparecimentos, há o caso dos jovens Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, 26 anos, e Eduardo Collier Filho, 21 anos, militantes da Ação Popular Marxista-Leninista (APML) desaparecidos no Rio de Janeiro. No dia 23 de fevereiro de 1974, tinham um encontro e nunca mais foram vistos. As famílias de Fernando e de Eduardo moveram ceu e terra para encontrar os rapazes e nunca tiveram nenhuma pista que levasse aos corpos. Até o dia em que o relatório da Comissão Nacional da Verdade foi divulgado, 10 de dezembro de 2014, a mãe de Santa Cruz, dona Zita, aos 101 anos, ainda tinha esperança de encontrar o corpo do filho.

No governo Geisel, ela recebera a explicação-padrão do regime dos generais através do ministro da Justiça, Armando Falcão: “Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, filho de Lincoln de Santa Cruz Oliveira e Elzita Santa Cruz Oliveira, militante da organização subversivo-terrorista Ação Popular Marxista-Leninista –APML. É procurado pelos órgãos de segurança e encontra-se na clandestinidade”.

Na carta em que responde ao ministro dona Zita escreve:

“A afirmação (…) é paradoxal e para contestá-la informo a V. Exa. que Fernando Augusto era funcionário do Departamento de Águas e Energia de São Paulo, residente à Rua Diana, 698, bairro Perdizes, São Paulo. Tendo, portanto, residência e emprego fixos. Senhor ministro, que clandestinidade seria esta que transformaria um filho respeitoso, carinhoso e digno em um ser cruel e desumano, que desprezaria a dor de sua velha mãe, a aflição de sua jovem esposa e o carinho de seu filho único e muito amado? É fácil concluir que qualquer pessoa, mesmo perseguida, em qualquer lugar onde estivesse, teria como enviar uma palavra de calma e tranquilidade aos seus familiares. Não posso aceitar pura e simplesmente o argumento de V. Exa.”[1]

Leneide Duarte-Plon é co-autora, com Clarisse Meireles, do livro « Um homem torturado-Nos passos de frei Tito de Alencar » (Ed. Civilização Brasileira, 2014, finalista do Prêmio Jabuti de 2015) e autora de « A tortura como arma de guerrra, da Argélia ao Brasil-Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado » (Ed. Civilização Brasileira, 2016, finalista do Prêmio Jabuti e do Prêmio Biblioteca Nacional de 2017)

Fonte: Carta Maior