CARTA DA PROFESSORA

Faz alguns anos, uma professora da rede pública de Santa Maria me enviou uma coleção de cartas de alunos a mim destinadas. Foi um dos mais comoventes presentes que esta crônica recebeu nesses tantos anos. Os meninos contavam suas vidas. A maioria deles tinha sido criada pela solidão. Mãe trabalhando, pai ausente, eles estavam sendo construídos pelo vazio. Grupos de irmãos criavam-se uns aos outros. Garotos que só viam a mãe nos fins de semana. Ou ela dormia no emprego de doméstica ou saía muito cedo para o trabalho e chegava muito tarde. A realidade, se mudou, foi muito pouco.
Recebi ontem, da mesma professora, uma carta, acompanhada de um exemplar de O retorno e terno, livro de crônicas de Rubem Alves. Transcrevo o manuscrito, por verdadeiro, belo, triste e renovador.
“Querida Conceição,
Sou a professora Joana, aquela das cartas dos meninos de Santa Maria. Pensei em ir à redação pessoalmente, mas sou tímida e logo imaginei um funcionário falando: ‘Vou ver se ela está, ela não pode atender, dá pra deixar recado?’ São coisas que vejo e acho chato em repartições, e em Bsb então… Mas acho que você me receberia com um belo sorriso e um gostoso ‘tudo bem???’.
A razão disso tudo é que me aposentei e gostaria muito de te agradecer pelo privilégio que tive de trabalhar por um bom tempo com meus alunos com suas crônicas. Confesso que era meu livro didático, pena que os jornais não chegam mais às escolas.
Apesar de tudo o que nós, professores, passamos, vale a pena apostar em nossas crianças.
Confesso que estou morrendo de medo da saudade que vou sentir de cada rostinho sapeca e olhares de pedido de socorro e atenção, e cabeças cheias de sonhos. Mas a vida é feita de ciclos, e agora, literalmente, passo a bola para outro colega, pois trabalho com educação física.
Fui ontem a uma palestra sobre aposentadoria e elas falaram muito de nos planejarmos e prepararmos. Dei boas gargalhadas sozinha, pois, no meu caso, aconteceu tudo errado. Imagine se tivesse feito planejamento. Descobri doença crônica rara, separei, tive depressão, mas como disse o grande Chico Xavier ‘isso também passa’. Agora, cada dia é um presente e vou aproveitá-lo da melhor forma possível. ‘Quero aprender para aprender denovo. Raspar tintas que me pintaram. Desencaixotar emoções, recuperar sentidos’ (Rubens Alves).
O livro é para você descansar a alma. Estou doando meus livros. É um costume antigo, às vezes gosto também de ‘esquecê-los’ em casa de amigos, hotéis, quem sabe daí surge um leitor?
Estarei aqui, em Paraty ou em Piri. Nova Iorque, o salário não dá.
P.S. Gostaria de gostar de Brasília como você gosta e escreve – não consigo.
Abraços,
Joana”
Fonte: Correio Braziliense do dia 5/06/13, Crônicas da Cidade, por Conceição Freitas