Breves reflexões quânticas sobre a violência na escola

(*) Por Antonio da Costa Neto

 

Uma das grandes discussões que acontecem hoje no campo da educação é, justamente, a questão da violência que ocorre nas escolas. Trata-se de um preocupante problema, um desafio enorme em função da sua extrema gravidade, o perigo eminente, vez que envolve riscos, vidas, dores, sofrimentos, enfim, uma tarefa de extremas grandeza e importância que se coloca como uma barreira a ser suprimida – se possível, com a máxima urgência – por todos os direta ou indiretamente envolvidos com as escolas, a educação, o ambiente de estudos, quer formal ou mesmo informalmente. Uma séria e grave situação que nos expõe a todos, em algum momento  de uma ou outra maneira.

É fato que a violência acontece e que aumenta de forma galopante em nossos ambientes escolares. Desde pequenas brigas, discussões, desavenças, bulling, passando pela sua estrutura física, com o uso de instrumentos, armas, a força corporal,, luta, chutes, socos, ponta-pés. E isto em todas as dimensões e com amargas consequências. Horizontalmente, entre alunos ou destes contra seus professores servidores, funcionários, vizinhança.  Estabeleceu-se, assim, gradualmente, ao longo dos anos o que se assemelha a uma guerra, com pequenos e grandes crimes, sangue, até mortes, o que, sem sombra de dúvidas, gera uma preocupação enorme, sem precedentes de suas gravidades como temos nos certificado, em especial, nos últimos tempos.

Mas acredito sim que a solução depende, em princípio, de um novo e profundo olhar. Diria eu – para estar na linguagem da moda – um olhar quântico. Relativizando as causas, os efeitos, os processos e os resultados, interligados, em pleno efeito dominó, desta mesma violência, podendo, assim, de certa forma entender tal fenômeno e articular meios e condições capazes de superá-lo. Faz-se necessário que os gestores das escolas e, em especial, os professores, responsáveis pelos processos didáticos e pedagógicos ampliem as suas sensibilidades e passem a ver e a entender os elementos e substratos que se ocultam debaixo de suas próprias práticas, gerindo e ampliando esta mesma violência que tanto nos atordoa.

Sim, as próprias práticas pedagógicas e os aparatos formais da escola podem estar concebendo e ampliando as violências mesmas que se combatem – num autêntico faz-e-desmancha absolutamente enlouquecedor.  Por que sim, não pode e nem deve ser a escola um espaço para isto, mas, muito pelo contrário. Para se fazer, aprender, ensinar e concretizar uma política de paz, de entendimento, de relações sadias e produtivas, calcadas no diálogo, na compreensão, na empatia, nos ditos valores humanos, produtivos e edificantes que devem – ou que deveriam – constituir a alma das pessoas. E, também para isto é que elas vão à escola em busca de se educarem e de se tornarem  melhores.

Falo em olhar quântico referindo-me a um novo perceber das funções da escola frente às dimensões da sociedade capitalista, já em si, competitiva e violenta. Não tendo, por isso mesmo a escola, a educação e seus agentes, em princípio sabido como agir dentro deste vendaval,  neste turbilhão de fatos e fenômenos o que levam-me a perguntar: – Se a dimensão quântica advoga a ideia de que tudo se liga a tudo, transcendendo valores e resultados similares, onde então estariam as bases desta violência na escola?  Não seria a escola também em si – quântica e profundamente falando – um laboratório permanente de violências simbólicas e intelectuais que, uma vez repetidas e repisadas durante anos nas cabeças das crianças, dos adolescentes e dos jovens, não acabam por fazer explodir a violência concreta que agora tanto nos assusta?

De acordo com determinadas linhas do pensamento, em especial as  humanistas de muitos dos atuais teóricos da educação, da psicologia, da pesquisa e da didática, a violência na escola pode começar sim pela obrigatoriedade legal de ter que frequentá-la. Claro que, num sentido macro e dentro de uma certa ordem política, podemos assim dizer que isto pode estar correto, mas, inegavelmente, é violento. Submeter, ordenar, determinar coercitivamente pela lei e, não raro com o poder de polícia que a criança tem que ir à escola, embora ela possa não querer  ou desejar isso, não podemos negar: é uma primeira e brutal violência e para superá-la temos que ter sim, um olhar sensível em busca deste entendimento.

Uma sociedade que se quer democrática, justa e livre não pode usar da coerção, dita legal ou institucional para conduzir seus métodos de ação, pois,  isto é de uma incoerência absolutamente inaceitável o que precisamos compreender com profundidade já no advento do terceiro milênio e num tempo de plenos direitos humanos e do exercício da cidadania. A força coercitiva  e determinante é,  talvez, a maior de todas as violências e nossas escolas estão, no seu dia a dia, eivadas disto.  E o que é pior, ninguém  parece perceber os seus males.  Ter que ir à escola – todos os dias durante toda a melhor fatia da vida –  responder a uma chamada nominal ou numérica – o que é pior ainda – escutar, ler, escrever, estudar, aprender, o que muitas vezes não interessa, se renega, não se quer. Enfrentar um professor, uma professora com quem não se simpatiza, colegas com quem não se comunga ideias, sentimentos ou empatias. Cumprir horários que lhe são impostos sem o menor consentimento ou estudos de condições, etc. Usar um uniforme do qual não exista um menor teor de vontade e muito mais. Mas isso são detalhes. Sim, são. Mas juntos e reforçados por todos os anos vão  corroendo a liberdade e consolidando a violência que cresce dentro de cada pessoa que irá a seu modo colocá-la pra fora.

Ter que se sentar neste ou naquele lugar. Levar para casa, além dos muitos que já possa ter, problemas para resolver, trabalhos, estudos, tarefas, de preferência, todos os dias e sem descanso, como um treinamento operante para fazer o que não dá prazer, não interessa e não reclamar por isso. Ter determinado o espaço e as condições para a satisfação de necessidades fisiológicas, um cardápio alimentar incompleto; um ambiente feio, não muito limpo, mal cuidado, etc. são maldades que as escolas, sem que saibam, impõem aos seus alunos, violentando seus corpos e almas.  Ser corrigido, chamado à atenção, exposto frente aos colegas e receber notas e castigos com os quais muitas vezes não se concorda e não ter o direito de falar, revidar, se explicar devidamente; já seria em si, um elenco enorme de violências intelectuais e simbólicas, que, juntas e alinhadas  só poderão gerir as violências concretas e é, sobre isto que nós, educadores, preocupados com a violência nas escolas temos que nos debruçar antes que seja tarde demais. Levando, assim,  a um possível e definitivo caos que seria o fracasso inevitável da educação, das escolas, das pedagogias  e de todos os aparatos que acercam toda a realidade escolar e seus efeitos nas pessoas e na construção da sociedade que queremos.

Diz a escola que não quer a violência. Mas, inadvertidamente, ela faz tudo para adequar os sujeitos – aos quais julga educar – a se ajustarem à uma realidade social violenta, competitiva ao extremo. Segregada pelo ter, o poder, centralizando a renda , as decisões e socializando a fome, a miséria, o desemprego, o medo. Ora, não seria isto semear e propagar violências outras que se tornam mais numerosas e mais plurais, justamente, na mesma medida em que se tornam mais raros e escassos os bens materiais ou não, os meios e as condições de vida? Como vai querer a escola combater a violência física, a briga, a luta, o sangue, a morte, ao mesmo tempo promovendo e legitimando a violência simbólica, a violência intelectual, a violência do poder e da imposição em suas próprias práticas? Não estaria a pedagogia simplista dos resultados capitalistas simbolizados no percentual de frequência, na obediência extrema às militares imposições, à nota, à aprovação na medida em que se diz sim e não se revida a controles e imposições, ampliando e diversificando  esta violência óbvia e que tão fortemente se manifesta?

Não se pode definir os parâmetros que favorecem a uma certa violência capitalista de um modelo como o nosso sem provocar, mesmo que em níveis inconscientes, violências outras que tanto nos assustam, assolam, neurotizam, matam e preocupam. A violência que a escola gera é processual, não palpável, não é física e não pode ser vista. Ela amadurece e se encrudesce ao longo dos muitos anos desde que a criança vai sonolenta para o jardim de infância e, ao longo de muitos e ininterruptos anos, vai assimilando fragmentos inúteis de muitas teorias, incorporando práticas segregadoras, aprendendo a competir, a neutralizar a vontade  e a aplaudir algozes. E um dia, é, claro, isto explode corporificando a mesma violência que agora queremos combater e talvez estamos fazendo isto da forma mais incoerente.

Ai vem a pandemia da covid 19 que reforça todo este estado de coisas. Enfraquece as relações, anula vontades e desejos, enlouquece as pessoas. Acirra a violência e faz com que a principal função de todos os envolvidos com a educação seja superá-la, o que começa com o combate à causa de tudo isto que é, justamente, a violência simbólica e pedagógica. A violência do intelecto com a qual a escola sempre  trabalhou e se  fez presente na vida das pessoas durante os séculos infindos de sua história. Mas que, agora precisa, necessariamente de chegar ao seu final e para tanto os educadores devem refinar seu olhar, superar a dificuldade de perceber as múltiplas violências que eles próprios promovem, mudando, com a urgência possível, alguns pressupostos e muitos paradigmas.

Claro que a escola prescinde de limites, sem os quais inexiste a organicidade. A diferença é que em termos educacionais, ao invés de impostos estes mesmos limites precisam ser, efetivamente, negociados. No cômputo da não-violência ninguém, nem mesmo o aluno cumpre normas que não ajudou a construir. Faz-necessário que a vontade, o desejo de todos estejam presentes na definição de tudo o que irá acontecer naquele ambiente ou em decorrência dele. Assim,  a liberdade , a flexibilidade devem fazer parte dos contextos éticos das definições das coisas que acontecem ou não, com o que parece-me a comunidade escolar não está acostumada e ainda combate com veemência total a este tipo de coisa.

Horários flexíveis e negociados, professores escolhidos perante trocas, conhecimentos, conversas e adesões, palpites de ambas as partes. Participação efetiva da família e do próprio aluno nas decisões das escolas, minimizando os antagonismos brutais que acontecem. Ninguém obriga ninguém a nada. A chamada deve ser substituída – ainda que gradualmente – pela qualidade das aulas, a ludicidade dos encontros, as surpresas, as novidades, os encantos. O aluno precisa desejar ir para a escola e se sentir feliz e realizado dentro dela. E, de preferência, ficar chateado por ter que ir embora.  Deve-se estudar sim, aquilo que agregue valores que  interessem, que contribuam para a felicidade, a realização enquanto sujeito, pessoa, autor e ator da própria história e não ao contrário. Ritmos, estilos, formas de aprender, desejos, metas, dificuldades e facilidades precisam ser conhecidos e considerados no entendimento de que cada indivíduo é um universo diferenciando, não podendo, como dizia Paulo Freira, engessar métodos; vestindo em todos uma roupa de tamanho único que serve para todos mas que não fica bem em nenhuma pessoa.

Quem é violentado, violenta. E me vestir do jeito que não gosto e o que não foi-me perguntado se agradava ou não é, sim, um tipo de violência. Julgar é violência. Dar ou tirar notas, pontos, é violência. Reprovar é violência. Impor regras e normas, conteúdos e assuntos, espaços, colegas, professores, enfim, tudo o que não é escolhido por consenso violenta o sujeito. Em contrapartida, o capitalismo opressor e periférico só sobrevive  com estas e as violências outras, das quais e com as quais sobrevivem as escolas  que se transformam, a cada dia em odiosos calabouços, sendo esta a percepção que devemos ter e a atitude que devemos tomar. Não dá para servir, há um só tempo a dois senhores: ou trabalhamos pela dimensão exploradora do nosso sistema econômico sendo, profundamente violentos em todos os sentidos ou tenhamos a exata convicção do que devemos mudar. E a violência na escola e na sociedade, enfim, poderá ser superada e vencida.  É tudo uma questão de consciência. A consciência da certeza da necessidade de mudar. Mudar ontem.

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(*) Por Antonio da Costa Neto é professor aposentado, pesquisador, consultor em programas de educação, atualização de professores. Fundador do Instituto Humanizar – assessorias especiais para programas de educação. Autor de livros e artigos. Contatos: antoniodacostaneto@gmail.comwww.mudandoparadigmas – whatsaap: 61 99832 25 37