Atacam Paulo Freire, mas a quem se deve o drama da educação pública?

Rosilene Corrêa, dirigente do Sinpro-DF

O ataque ao educador Paulo Freire voltou às redes sociais na semana do dia 19 de setembro, quando o patrono (protetor) da educação completaria cem anos se estivesse vivo. Essa não foi uma ação isolada nos últimos tempos, e em todas as vezes o argumento é sempre o mesmo: uma suposta falência do sistema educacional brasileiro gerado pelo método freiriano.

Depois de terem sido violentamente combatidos na ditadura militar de 1964, a figura e os ensinamentos de Paulo Freire voltaram a ser alvo de ataque em 2015, no início da formação do tsunami de retrocessos no Brasil. Naquele ano, ao mesmo tempo em que avançava o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, ganhava força o projeto Escola Sem Partido (ou Lei da Mordaça), que proíbe a discussão de temas como educação moral, sexual e religiosa em sala de aula.

Em 2018, o combate à figura de Paulo Freire foi feito novamente, dessa vez com intensidades semelhantes nas ruas e nas redes por apoiadores do então candidato a presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Na corrida eleitoral, Bolsonaro disse que iria abolir o legado de Paulo Freire do Ministério da Educação “com um lança-chamas”.

Agora, em 2021, o educador brasileiro reconhecido no mundo inteiro foi, mais uma vez, alvo de repulsa, principalmente em dois momentos: nas manifestações antidemocráticas do 7 de Setembro e no dia 19 de setembro, data do seu centenário de nascimento. Eduardo Bolsonaro, o filho 02 do presidente da República, chegou a criticar a mudança da logo da Google para comemorar os 100 anos do educador. Segundo ele, a Google “se recusa” a homenagear Jesus Cristo em datas como a Páscoa, mas homenageia “comunistas”.

A grande questão é que, embora seja incriminado por uma parcela da população de ser a razão de todo mal da educação, Paulo Freire não está nos currículos das escolas públicas.

No Brasil, o modelo mais comum nas escolas, tanto públicas como particulares, é a escola tradicional, que tem o professor como figura-chave. Nesse modelo, o professor detém o conhecimento e repassa para os estudantes. A escola tradicional funciona em um sistema estruturado em séries e turmas de acordo com a idade e aplica avaliações periódicas, com nota mínima e máxima, que aprovam ou desaprovam o estudante a avançar de série.

Já Paulo Freire, que nunca se declarou filiado a partido político específico, mas sempre atuou junto às classes sociais menos favorecidas, defende a educação horizontal, onde professores e estudantes realizem troca de experiências e ensinamentos; onde a alfabetização seja feita a partir da discussão das experiências de vida e nas palavras presentes na realidade dos estudantes. Ou seja, uma alfabetização a partir da compreensão de si e do mundo, resultando em uma educação que permite às pessoas serem protagonistas das suas próprias histórias e agentes políticos da sociedade.

Está justamente aí a birra e a urgência de apagar de vez o nome de Paulo Freire para aqueles que se alimentam de ódio, violência, opressão, injustiça e desigualdade. Afinal, a quem não interessa pessoas críticas, conscientes de onde vieram, de onde estão e para onde querem ir? Em um de seus pensamentos, Paulo Freire diz: “O sistema não teme o pobre que tem fome. Teme o pobre que sabe pensar”.

“Falar em esperança é uma ameaça para aqueles que nunca tiveram o povo como prioridade”

Para Paulo Freire, um pernambucano que nunca fez muita questão de títulos, o funcionamento de uma sociedade que prioriza os interesses da minoria e explora a maioria pode ser superado com a Educação. O educador defende a escola como espaço de todas e todos, e reflete que o ambiente escolar que não tem oprimidos tende a reproduzir o sistema do opressor. Não por acaso, o ministro da Educação de Bolsonaro, Milton Ribeiro, disse que a universidade “deveria ser para poucos”, como se o povo pobre nascesse com uma única missão: a de trabalhar sem questionar.

O ódio e o combate a Paulo Freire são instigados por figurões políticos que nunca falaram que o método freiriano serviu de base para países como a Finlândia, por exemplo, onde a educação é considerada uma das melhores do mundo, com instituições de ensino majoritariamente públicas e um sistema educacional que tem a escola como uma comunidade de aprendizagem. Esse mesmo ódio é reproduzido por seus apoiadores nas ruas e nas redes e, na maioria das vezes, sem qualquer grau de consciência, indo além do racional e se estreitando ao emocional.

Em tempos de autoritarismo, preconceito, morte, tristeza, fome, desemprego e tantos outros dramas, falar em esperança, do verbo esperançar, de não desistir; falar em ter opinião crítica, em questionar o que está errado; falar em direitos e igualdade social, é uma ameaça grave para aqueles que nunca tiveram o povo como prioridade e que são privilegiados pelo sistema.

É por tudo isso que se pode dizer que, definitivamente, não é Paulo Freire o responsável por uma educação que, embora avanços conquistados de 2003 a 2016, segue impedindo que milhares de crianças e adolescentes frequentem as salas de aula ou as abandonem por desinteresse ou impossibilidade de continuar os estudos. Não é Paulo Freire o responsável por o Brasil estar nos últimos lugares de rankings mundiais referentes à educação. Não é Paulo Freire o responsável por um Brasil que ainda tem 11 milhões de brasileiros e brasileiras que não sabem ler nem escrever.

A culpa de uma educação que não se consegue fazer sólida como deveria não é de quem sempre priorizou a educação como ferramenta imprescindível para a democracia. Essa culpa está na retirada de verba e no desinvestimento no setor, que reflete em professores com salários arrochados, em unidades escolares com goteira e fiação elétrica exposta, na descontinuidade de projetos imprescindíveis para que a educação seja plural e diversa. Essa culpa está na ideia de que educação é mercadoria, que deve ser privatizada. Essa culpa está no discurso e na prática de que a grade curricular não deve conter matérias como artes, filosofia, sociologia. Essa culpa está na tentativa de calar professores e fazer estudantes de meros receptores de conteúdo. E tudo isso é justamente o que prega quem não suporta Paulo Freire.

*Rosilene Corrêa é professora aposentada da rede pública de ensino no DF, dirigente do Sindicato dos Professores do DF e da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação

*Artigo publicado originalmente no portal Brasil de Fato DF, no dia 23 de setembro