As várias faces da fome

Fome. Palavra abstrata, que em muitos brasileiros se concretiza na barriga vazia. É consequência da falta de comida – e a comida falta pois também falta dinheiro pra comprá-la. Essa dura realidade recebe o nome pomposo de “insegurança alimentar”. Um nome bonito que dói.

O MTST ocupou a Bolsa de Valores de São Paulo na quinta-feira, 23 de setembro. A ocupação do prédio aconteceu (de forma extremamente pacífica, diga-se) às 13h. Hora do almoço.

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto foi à B3 “para gritar que a única ação que a gente tem na nossa carteira é a ação direta”, segundo legenda do Instagram do movimento.

A ação “foi realizada em protesto contra a carestia e a fome provocadas pela política econômica aplicada por Paulo Guedes e Bolsonaro. O texto do Instagram do MTST continua: “os lucros recordes dos bancos, o aumento de grandes fortunas e o surgimento de 42 novos bilionários no mesmo país onde a insegurança alimentar atinge mais de 116 milhões de pessoas e a fome já é uma realidade para mais de 19 milhões de pessoas precisa acabar.”

Fome, carestia, desemprego, pobres mais pobres e ricos mais ricos são algumas faces do legado de mil dias de governo Bolsonaro. A realidade da insegurança alimentar (nome pomposo para a falta de dinheiro pra comprar comida ou, simplesmente, fome) se traduz de muitas maneiras.

Na nossa categoria, ela adquire formas desalentadoras. É aluno que não consegue prestar atenção à aula, com dificuldades de concentração, é aluno que vai pra escola só pra comer, é aluno que desmaia porque não se alimentou.

Aluno e alimento são duas palavras que, lá no latim, tiveram origens no mesmo verbo.

No Latim, o verbo alēre significa crescer, nutrir, alimentar. Do particípio passado desse verbo (altus), originou-se a palavra alto; aquele que percorreu um caminho e chegou ao estado de nutrido / alimentado, é um ad altus, ou adulto; quem está no meio do processo de nutrição pode ser um adult escere ou um alumnus (palavras que chegaram ao português como adolescente e aluno). E, finalmente, ao juntarmos a primeira pessoa do singular de alēre (alō) com o sufixo –mentum, temos alimento, ou a ferramenta / instrumento da nutrição.

Esse significado forte, quase poético, desaparece na dura realidade neoliberal brasileira: “90% dos meus alunos são oriundos da Vila Estrutural e grande parte desses alunos vão para a escola somente para se alimentar, não apresentando nenhum rendimento escolar”, nos relata a professora Daniane Bevenuto, do Centro Educacional 04 do Guará.

Jane Alves Barreto, gestora do CEF04, do Guará, já percebeu que muitos alunos vão à aula só pra comer. “E muitos sustentam a casa com o Bolsa Família. Alguns ficam retidos por muitos anos, mas não desistem porque os familiares estão desempregados e eles necessitam do auxílio.  Há ainda os que sobrevivem da coleta seletiva nas ruas do Guará.”

O rendimento escolar dos alunos que vão só para comer fica comprometido. Jane observa que “existe uma relação direta dos alunos que não se alimentam adequadamente com o baixo rendimento escolar. Muitos desses alunos não conseguem avançar pedagogicamente por vários motivos, e entre eles está a dificuldade de concentração, a necessidade de trabalho e a falta de investigação de algum transtorno que dificulte a aprendizagem”. Daniane também percebe a correlação entre má-alimentação e baixo rendimento escolar: “Infelizmente os alunos que possuem uma estrutura familiar e se alimentam melhor têm um nível de aprendizagem e interesse em aprender superior aos outros q não tem uma alimentação adequada.”

Essa alimentação inadequada não acontece por negligência, mas por falta de dinheiro, de emprego, de comida e itens básicos de higiene a preços compatíveis com os salários das pessoas.

Carmélia mora no setor de Chácaras da Estrutural. Tem 3 filhos. Ela é pedagoga, mas está desempregada. Conta que a comida ficou muito cara, e vive de doações.

Marília Paulino é vizinha de Carmélia. Tem seis filhos, com idades entre 5 e 21 anos. Também está desempregada, e também depende de doações. Saíram de sua mesa a carne, o leite e as verduras.

Sara Vitória Carvalho, de 19 anos, também mora na Estrutural e tem uma filha de 1 ano e 5 meses. Trabalha como diarista, mas teve que escolher entre comer frutas e comprar fraldas para sua bebê.

Se falta o dinheiro para comida, também falta para o gás. O botijão de gás, cujo preço já chegou na marca dos R$ 100,00, é proibitivo para muitas famílias, que substituíram os botijões por álcool, prática extremamente perigosa, que pode causar queimaduras graves e mesmo matar.

Foi o que, infelizmente, aconteceu com Geisa Sfanini, de 32 anos, que morreu nesta segunda feira 27 de setembro na Grande São Paulo, ao ter 90% do corpo queimado enquanto cozinhava com álcool. Ela também estava desempregada, e cuidava do filho Lucas Gabriel, de apenas 8 meses, com recursos do Bolsa Família.

O dinheiro falta por uma série de motivos. É porque atravessamos uma pandemia sem paralelos nos últimos 100 anos, que trouxe recessão econômica e falta de trabalho, é porque o preço dos alimentos no supermercado está alto demais. Mas a quantidade de dinheiro que circula na sociedade é quase sempre a mesma. Logo, tem pouca gente com muito, e muita gente com tão pouco.

É por tudo isso que no próximo sábado, 2 de outubro, todos vamos às ruas por Fora Bolsonaro!

* depoimentos obtidos por Presilina Spindola de Ataídes (diretora do Sinpro)