Artigo | Sobre a Semana Pedagógica da rede de ensino do DF

O que a SEEDF comunica ao eleger Luiz Felipe Pondé, Anthony Portigliatti e Leandro Karnal seus porta-vozes?

 

(*) Por Gina Vieira

Fiz questão de acompanhar a Semana Pedagógica da SEEDF porque eu estava bem curiosa para ver o projeto que o governo, finalmente, teria para apresentar para a educação, pensando os desafios que vamos enfrentar depois de dois anos em que a educação sofreu tantos prejuízos. O que eu posso afirmar quanto às palestras é que elas foram absolutamente coerentes com a atual gestão da SEEDF.

 

Chamou-me a atenção que, em todas as falas, as questões centrais e estratégicas sobre a educação no contexto da pandemia não foram abordadas. Os três trataram o tema de forma superficial e distante da realidade concreta que enfrentamos.

 

O professor Anthony Portigliatti (que não cursou licenciatura) insistiu na ideia de que “Não ia enveredar pelo lado filosófico da educação, mas para o lado prático” e na tese de que para dar uma boa aula você só precisa identificar os tipos de estudantes que você tem em sala de aula: “o analítico, o dominante, o paciente e o extrovertido”

 

O Pondé fez uma escolha, no mínimo, infeliz e inadequada de dizer que, durante o ensino remoto, “se instaurou uma preguiça entre professores e alunos” e que para retomar as aulas temos que “vencer a preguiça e o medo”. Aliás, eu fiquei me perguntando: como ele chegou à conclusão de que a “preguiça se instaurou entre professores e estudantes”? Ele tem dados concretos que provam isso ou ele está repetindo o que ouviu de alguém, a respeito dos professores com os quais conversaria naquele dia? Se tem os dados deveria ter apresentado, se não os tem, não deveria fazer uma afirmação desta natureza, em um momento que deveria ser dedicado à construção de diálogo e acolhimento para a retomada do ano letivo.

 

Em conversas com docentes das 14 regionais de ensino do DF, o que vi, além da dedicação, foi um quadro de exaustão física e emocional. Fiquei estarrecida e, ao mesmo tempo, comovida, ao constatar que houve professoras no DF que, ao perceberem as condições absurdamente precárias em que os seus alunos viviam, mesmo sob o decreto de isolamento social, correndo todos os riscos, às escondidas, levaram estudantes para suas casas para atendê-los. Depois de dois anos de tantas perdas, lutos e dificuldades, o bom senso e a sensibilidade sugerem que se optasse por uma fala acolhedora, amorosa, de gratidão e reconhecimento pelos esforços dos docentes e das famílias.

 

O Leandro Karnal também não conseguiu, ao longo de sua fala, trazer nada que fosse substancial e propositivo para a educação do DF. Ele disse as mesmas coisas que o Pondé, mas o fez de forma polida, com voz empostada, modulada, e isso foi o suficiente para agradar muita gente e fazer com que as pessoas não percebessem que, muito do que ele falou, se filia à “Positividade Tóxica” e ao discurso de autoajuda que diz que: “basta você se esforçar muito que você consegue tudo o que quiser”.

 

Em resumo, a fala dele foi pelo caminho do esforço individual, de buscar se aprimorar, ler mais (“pelo menos um livro por mês”), ser um ponto de apoio para os estudantes, etc. Todas as vezes em que ele se reportou às adversidades foi para relativizá-la, para dizer que, apesar da existência delas, não poderíamos deixar de dar o nosso melhor. O que se esconde por trás deste discurso é uma perspectiva neoliberal, que tenta sustentar a tese de que as mudanças só dependem de esforços individuais, e que a conjuntura política, econômica e social não precisam ser consideradas na construção de soluções para os problemas que queremos resolver.

 

Até mesmo, ao mencionar a saúde mental, no lugar de trazer uma abordagem que dê conta do fato de que os sujeitos adoecem porque as estruturas estão adoecidas, ele optou por fazer a defesa de medidas individuais como meditação, respiração e coisas afins para lidar com episódios de stress e de adoecimento psíquico. Ou seja, o tempo todo, nas três palestras, se fez uma conclamação a que os profissionais da educação se desdobrem para dar conta do que enfrentarão no ano letivo de 2022, mas a SEEDF não falou sobre que propostas tem para apresentar diante deste novo cenário, a não ser fazer “Avaliação Diagnóstica” ( uma prática já consolidada na rede), mas, em uma perspectiva altamente questionada por pesquisadores especialistas em avaliação.

 

Aparece, também, no discurso dos três palestrantes, uma concepção de educação que afronta os nossos pressupostos teóricos e, portanto, as Ciências da Educação. A teoria de Vygotski, a Psicologia Histórico- Cultural, compreende o estudante como sujeito sócio-histórico e, portanto, complexo, que precisa ser olhado a partir de múltiplas perspectivas. Como sinalizam as Teorias Críticas e Pós-Críticas do Currículo, categorias como raça, classe, gênero, território, identidade precisam compor os dados que vão orientar as políticas públicas educacionais, porque todas elas dialogam com a garantia do direito à aprendizagem. Quem está na gestão e é pesquisador da área de educação deveria saber que ser professor é algo bem mais complexo do que identificar quatro tipos de alunos e trabalhar a partir desta simplificação.

 

O grande mestre Demerval Saviani, o formulador da Pedagogia Histórico-Crítica, que é a base teórica que orienta o trabalho da nossa rede, adverte-nos de que não se separa teoria de prática. Ele nos diz que é fundamental termos em mente que a escola sofre as determinações sociais e, por isso, as soluções não podem se reduzir a ações isoladas e individuais. As soluções para a educação pública devem ser aplicadas com ênfase social, tendo como foco o bem comum, que é de responsabilidade de políticas públicas, das ações do Estado. E isso sim é obrigação de uma Secretaria: garantir os direitos sociais dos jovens e suas famílias e, claro, de seus servidores. Ouvir a fala de que é possível abordar “o lado prático da educação sem abordar o seu lado filosófico” anuncia uma concepção de educação empobrecida, aligeirada e muito distante do entendimento que acumulamos nos longos anos de pesquisas em Ciências da Educação.

 

Apesar de todas estas incoerências e inconsistências, o que mais me preocupou nas palestras não foi a fala inadequada do Pondé e a absoluta falta de aplicabilidade do que o Anthony e o Karnal trouxeram como proposta para resolver os problemas educacionais nesta retomada às aulas presenciais. O que mais me preocupa é pensar que estas palestras foram encomendadas por quem, a esta altura, deveria ter muita segurança do que pretende fazer para apoiar os profissionais da educação na tarefa de enfrentar os desafios que se apresentam depois de dois anos tão difíceis.

 

Não é segredo para ninguém que o atual governo do Distrito Federal não tem uma proposta consistente para a educação. Não por acaso, nos últimos quatro anos, nós passamos por cinco secretários de educação diferentes. Quando não se tem clareza do que é necessário fazer e como fazer, a tendência é ficar a reboque de qualquer proposta que se apresente como a panaceia para os nossos problemas educacionais.

 

Inclusive, o professor Anthony afirma que ele e a Universidade Cristã da Flórida têm uma visão educacional que estão “espalhando pelo mundo”, baseada na ideia dos quatro tipos de alunos que se encontrará em sala de aula. Quem atua em educação sabe que não existe visão, modelo, cartilha, manual, fórmula mágica que dê conta da complexidade da Organização do Trabalho Pedagógico.

 

Quem defende qualquer proposta pedagógica que se aproxime de uma lógica similar a de “Franquia”, não entendeu nada sobre o sentido primeiro da educação. Nunca é demais lembrar que educação é DIREITO e qualquer tentativa de transformá-la em mercadoria vai representar prejuízos profundos às políticas públicas educacionais. Neste sentido, outro ponto que merece destaque e que, também, foi incidente nas falas dos palestrantes e da subsecretária é a louvação explícita e deslumbrada da parceria entre a SEEDF e instituições privadas, inclusive instituições que não trabalham com educação básica. Em uma gestão onde o público se torna privado não nos espanta ver a tentativa de colocar a lógica do empreendedorismo acima da história e da dignidade das pessoas e suas relações sociais e ambientais. Talvez o grande problema seja como este discurso captura o real e recai como verdade para alguns desavisados

 

Para quem quiser compreender melhor o que está por trás da movimentação que a SEEDF tem feito, recomendo fortemente a leitura do livro “Educação contra a Barbárie- Por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar” organizado pelo professor Fernando Cássio. Sugiro, em especial, a leitura do artigo “A ideologia da Aprendizagem”. Daqui para frente, a tendência, pelo que se tem anunciado, é que a SEEDF em nome de “recuperar as aprendizagens”, lance uma série de propostas pedagógicas salvacionistas, feitas a partir de parcerias com instituições privadas. Inclusive, vale perguntar: porque, na Semana Pedagógica, a Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, que desenvolve pesquisas sobre Organização do Trabalho Pedagógico e Aprendizagens, no Distrito Federal, há anos, não foi chamada para compor a mesa de diálogo com os docentes e representantes de instituições privadas foram?

 

Mandar os professores e os estudantes “vencerem o medo e a preguiça” é colocar sobre os ombros deles todas as responsabilidades pelos problemas que enfrentamos, quando sabemos que o que enfrentamos foram problemas de ordem estrutural, que não se resolvem com discursos que negam as Ciências da Educação, mas com diálogo, com medidas concretas, alicerçadas em dados específicos da nossa rede.

 

Volto a dizer: se negar as Ciências na saúde mata vidas, negar as Ciências na educação mata o nosso futuro. Vamos precisar de todo mundo para sanar os prejuízos que a pandemia trouxe à educação do DF, e vamos precisar, especialmente, de uma gestão central que tenha discernimento do que precisa ser feito. Para quem não sabe o que fazer, qualquer caminho serve. Mas, é preciso lembrar, nem todo caminho serve para a educação.

 

Observação: este texto foi escrito em diálogo e com a colaboração de profissionais da educação que atuam na SEEDF.

 

(*) Por Gina Vieira, membra do Coletivo Professoras e Professores do Brasil e do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. @professoraginavieira