Artigo | Pensar é preciso

“De todas as coisas seguras, a mais segura é a dúvida”. A frase do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, nascido no século XIX, parece provocar a atualidade como se o tempo presente fosse peça do passado. A realidade que vivemos hoje, marcada pelo fundamentalismo religioso, pelo negacionismo virulento da ciência e pelos discursos políticos baseados em concepções hipocritamente moralistas são marcas de nossa contemporaneidade.

Antigos preconceitos e concepções, que pareciam ter sido superados em momentos anteriores da história humana, ressurgem potencializados pelas redes sociais e meios tradicionais de comunicação. Condenações sumárias se multiplicaram a partir das fake news (notícias falsas), difundidas pelas redes sociais e, em grande medida, reforçadas por ação ou omissão da grande mídia comercial.

Magistrados das redes sociais, tribunais e mídia corporativa impuseram a lógica da irrelevância de fatos e provas para apontar condenados e inocentes, validando decisões assentadas em preconceitos e valores pessoais. Valores impostos como parâmetros de narrativas que pretendem justificar ações e avaliações sobre indivíduos, definições sobre relações sociais e organizações políticas e institucionais.

Obscurantismo
Nesta lógica de prevalência da relativização do fato sobre o fato em si, a narrativa da realidade se impõe como mera retórica, sem exigência de relação entre fato e realidade. Situação que pode ser exemplificada com a inquisição medieval, em que a divergência é criminalizada e as provas e fatos são irrelevantes. O obscurantismo ganha terreno, os preconceitos são naturalizados e determinadas violências são permitidas e até estimuladas.

Neste cenário em que convivem impressionantes avanços comunicacionais, a partir da interação nas redes sociais, conjugados com visões pré iluministas, a reflexão sobre os relacionamentos entre pessoas e com o meio ambiente é interditada. As redes sociais possibilitaram a lógica da pós-verdade.

Assim, algumas lideranças políticas, religiosas e do meio jurídico ou empresarial têm seus discursos produzidos a partir da negação dos fatos históricos ou sínteses de pesquisas científicas. Tais líderes, influenciando a opinião das maiorias, obscurecem consciências, relativizam fatos e delimitam as possibilidades de diálogo gerando intolerância.

A impossibilidade da reflexão, assentada em notícias inverídicas e inquestionáveis, impede as pessoas em perceberem as ações motivadas por tácitos preconceitos de classe, gênero, etnia, orientação sexual ou tipo físico. Dessa forma, piadas e comentários baseados em preconceitos e discriminações são minimizados ou desconsiderados a partir da justificativa do suposto senso de humor brasileiro.

Essa construção conceitual esconde a manutenção, na sociedade brasileira, de práticas racistas, LGBTQIfóbicas, misóginas, ou seja, há uma hierarquização, por ordem de importância, das vidas humanas. Em uma sociedade cada vez mais terrivelmente capitalista, a hierarquização de vidas tem sintonia com o sistema econômico, exclusivamente, baseado na propriedade privada de bens e capacidade de consumo como condições essenciais para valorar pessoas.

Desumanização
Uma das consequências centrais desse sistema econômico e ideológico é a desumanização das relações sociais, ao mesmo tempo em que ações de cunho humanitário são pontuais e delimitadas temporalmente. Olhemos o que ocorre na pandemia do novo coronavírus. Muitas pessoas e até instituições demonstram incômodo e certa solidariedade com as pessoas que não tem condições de se manterem, materialmente, neste momento.

Esse sentimento ou comportamento, contudo, não permanece em relação às populações de rua, ao genocídio do povo negro, à exploração de crianças e adolescentes ou ao combate às violências contra mulheres e LGBTQI+. A delimitação pontual e temporal da solidariedade ou de ações de atenção a pessoas vulneráveis ocorre pela interdição da reflexão sobre as causas que produziram tantos/as vulnerabilizados/as social e economicamente.

As conclusões de um processo individual e coletivo sobre tal situação, certamente, produziriam questionamentos sobre o sistema econômico social em que ocorre a pandemia e que é anterior a ela. Nessa perspectiva, a solidariedade é mais uma imagem ou relato egocêntrico a ser divulgado em redes sociais do que um comportamento ou sentimento baseado em empatia e alteridade. 

A naturalização das consequências destrutivas e excludentes do sistema que valoriza mais a economia do consumo e acúmulo do que a vida, incluindo aí a vida humana, produz as condições para a negação, capaz de impedir ações que superem a lógica da superexploração da mão de obra e da continuidade da concentração de renda.

Neste cenário, propostas que retiram conquistas e direitos trabalhistas e sociais são aceitas como necessárias. Na mesma lógica, propostas como taxação de grandes fortunas e grandes heranças, tributação progressiva que alcance todos os rendimentos, incluindo aí os oriundos de lucros e dividendos, são interditadas do debate público.

A naturalização e a criminalização dos/as miseráveis, assim como, a manutenção dos privilégios das classes ricas são componentes vitais do modelo capitalista. A reflexão que questiona e rejeita as tais verdades absolutas, que se origina na dúvida assentada no desejo de síntese, é instrumento essencial para a construção de uma sociedade socialmente justa, humanamente melhor e não predatória de vidas.  

* Por Cleber Soares, professor de filosofia da Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal (SEEDF) e diretor do Sinpro-DF