Artigo de diretor do Sinpro sobre as consequências das eleições argentinas repercute na mídia

Em artigo publicado nos principais portais de esquerda, o coordenador da secretaria de políticas sociais do Sinpro-DF, Raimundo Kamir, analisa as consequências da guinada à direita da Argentina, com a eleição de Javier Milei.

Kamir demonstra que o pêndulo ideológico precisa de equilíbrio entre esquerda e direita. Enfraquecer artificialmente forças à esquerda, como vimos ocorrer com a “reforma” trabalhista que reduziu a participação dos sindicatos na sociedade, significa fortalecer as forças da direita. Uma sociedade com esquerda fragilizada vai pender para a extrema direita. Kamir também demonstra que os sindicatos, tão enfraquecidos na última década, são a principal força de resistência à ascensão do fascismo.

O artigo de Kamir foi publicado pela Revista Fórum e pelos jornais Brasil Popular, Brasil de Fato e GGN, e também pode ser lido na íntegra aqui no site do Sinpro.

Confira o artigo completo de Kamir a seguir

O que a guinada à direita da Argentina nos ensina?

Por Raimundo Kamir*

No dia 19 de novembro, o mundo viu a Argentina dar uma inquestionável guinada à extrema direita. Mais uma sociedade sucumbiu ao discurso fácil do “contra tudo isso que está aí, abaixo o sistema”, um discurso raso, irresponsável e inconsequente. E, acima de tudo, um discurso no qual se emprega, de maneira falsa e hipócrita, a ideia de “Liberdade”.

Do discurso para a prática, a distância é sempre muito grande. Fechar o Banco Central, romper relações com a China e com o Brasil são atos simplesmente suicidas para a Argentina. Não tem como dar certo. Se o discurso de campanha estava cheio de coragem e testosterona, o governo deverá ser de raciocínio, ponderação e contemporização. Estará o presidente eleito Javier Milei preparado para isso? Estará a Argentina a salvo dos arroubos inconsequentes de um ser que afirma, bizarramente, que recebe orientações do espírito de seu cachorro morto?

A América Latina assiste ao pêndulo ideológico se mover muito rapidamente para a direita. No Chile, após a eleição de Gabriel Boric, as forças de oposição enfraqueceram muito rapidamente o governo eleito. O resultado: uma nova constituição reprovada pelo voto popular, e segunda Assembleia Constituinte convocada. E a nova Carta Magna do país, reescrita por essa segunda Assembleia, amplamente de direita, vai a votação popular no dia 17 de dezembro, mas já é rechaçada pela população. Ao que tudo indica, o Chile não terá uma nova constituição, pois não será convocada nova Assembleia Constituinte caso esta nova Carta Magna seja rejeitada. Na Colômbia, o governo de Gustavo Petro também sofre com ataques da direita. No Equador, um liberal de direita acaba de tomar posse como presidente. Também está enfraquecido o governo do boliviano Luis Arce.

O governo eleito na Argentina não é “libertário”, tampouco “anarco-capitalista”. Quem prega revisionismo histórico, minimizando os crimes do Estado argentino durante o governo militar e negando a existência de 30 mil desaparecidos políticos da ditadura argentina, não é libertário. É fascista. É preciso dar os nomes certos às forças ora em ascensão na América Latina. E essa ascensão do fascismo na América Latina é resultado direto das políticas neoliberais de enfraquecimento do sindicalismo e das conquistas da classe trabalhadora.

Mas essa aparente vitória da direita na América Latina, ante o “fracasso” (entre aspas) da esquerda, representa uma derrota para a própria direita. Explico.

Quem ascende ao poder na América Latina não é a direita moderada, ponderada, racional, e sim a extrema direita radical. Essa ala mais extrema do espectro ideológico traz para onde quer que vá a autocracia, o descrédito de instituições como o Poder Judiciário, movimento civil organizado (como os sindicatos), eleições e imprensa livre, e instaura o fascismo. Eis aí como as democracias morrem: com altas doses de fascismo administradas pela extrema direita.

Sindicato e resistência

Além disso, tratar a esquerda moderada como pária social não é positivo para a sociedade. Historicamente, o processo de ascensão do fascismo (e do nazismo) deixa bem claro que o discurso fascista é permeável e absorvível por quase toda a sociedade. O quase dá brecha a uma exceção: o sindicalismo. Palavras do insuspeito filósofo norte-americano Jason Stanley, autor de “Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”.

Nesse livro, de 2018, ele explica que um dos obstáculos para o que ele chamou de política do “nós contra eles” (em que o nós representa os fascistas, superiores e o eles representa o resto da sociedade, seres inferiores) é justamente “a unidade e a empatia intraclasses, exemplificadas nos sindicatos. Nos sindicatos em funcionamento, os cidadãos brancos da classe trabalhadora [lembrando que o livro descreve a ascensão do fascismo na primeira metade do século XX na Europa] se identificam com os cidadãos negros da classe trabalhadora, em vez de se ressentirem deles. Os políticos fascistas entendem a eficácia que essa solidariedade tem em resistir às políticas de divisão e, portanto, procuram desarticular os sindicatos. Apesar de condenar as “elites”, a política fascista procura minimizar a importância da luta de classes.

Stanley prossegue, cirúrgico: “o sindicato é o principal mecanismo que as sociedades descobriram para vincular pessoas que diferem em vários outros aspectos. Os sindicatos são fontes de cooperação e de comunidade e de igualdade salarial, bem como mecanismos para fornecer proteções às vicissitudes do mercado global. De acordo com a política fascista, os sindicatos devem ser esmagados para que os trabalhadores individuais tenham que se virar sozinhos no mar do capitalismo global e passem a depender de um partido ou líder. A aversão pelos sindicatos é um tema tão importante na política fascista que o fascismo não pode ser totalmente compreendido sem um entendimento disso.”

Corta para o início do século XXI, onde o mundo viu o enfraquecimento dos sindicatos. Aqui, no Brasil, os sindicatos sofreram com a “reforma trabalhista”, travestida de modernização. Muitos sindicatos fecharam suas portas, e em 2022, pela primeira vez, o Brasil tem menos de 10% dos ocupados sindicalizados, e várias categorias sofrem com perdas salariais significativas e trabalho precarizado como consequência direta da perda de direitos trabalhistas.

Isso corresponde a um contingente de 9,1 milhões de empregados. https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/09/15/numero-de-trabalhadores-sindicalizados-no-pais-cai-ao-menor-nivel-em-uma-decada.ghtml

O pêndulo ideológico precisa de equilíbrio. Enfraquecer forças à esquerda significa fortalecer as forças da direita. Uma sociedade com esquerda fragilizada vai pender para a extrema direita – para quem qualquer um é “comunista”. Isso não é bom, isso não é positivo, isso não é saudável.

Em 2022, o Brasil não elegeu um governo de esquerda, tampouco um governo de coalizão. No ano passado, os eleitores elegeram Luiz Inácio Lula da Silva, o único capaz de ameaçar a hegemonia da direita. Palavras de Steve Bannon, o estrategista da direita mundial, aliado dos Bolsonaro aqui no Brasil. Enfraquecer Lula, portanto, nas palavras da própria direita, é fortalecer o fascismo no Brasil.

Enfraquecer e desrespeitar a esquerda, em nível continental e mundial, é abrir alas para a ascensão do fascismo em nível mundial. O mundo já vi a ascensão do fascismo, há exatos 100 anos. E não deu bom.

De volta à Argentina, as “ideias” do presidente eleito podem levar o país da crise séria ao caos absoluto e de difícil retorno. O Brasil pode sentir o refluxo dos problemas econômicos do vizinho que é o terceiro maior exportador e importador de produtos brasileiros.

A esquerda e o sindicalismo não são o problema. Pelo contrário, podem ser a solução. Inclusive para a direita moderada.

Raimundo Kamir é diretor do Sindicato dos Professores no Distrito Federal – Sinpro/DF

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