Ações silenciadas que desviam o foco da luta da classe trabalhadora em defesa da EBC

O feito histórico da Constituição Federal de 1988 representa para a classe trabalhadora o rompimento com um período sombrio e a possibilidade de garantir dignidade a milhares de brasileiros e brasileiras que dependem de seus postos de trabalho para manter a própria vida. Desde o golpe de 2016, o ataque obsceno à Carta Magna vem se intensificando; e na mesma proporção está a resistência da classe trabalhadora, que ocupa as ruas em plena pandemia para pedir a saída daquele que, a cada pronunciamento, rasga a lei maior. Na defesa do que garante a Constituição Federal, um ponto nevrálgico parece não ter o amplo apoio da classe trabalhadora: a comunicação pública, materializada no país pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

Criada em 2008, no governo Lula, a EBC nasce a partir da pressão da sociedade civil pelo cumprimento do Artigo 223 da Constituição Federal, que prevê a complementaridade dos sistemas público, privado e estatal de comunicação. A Empresa Brasil de Comunicação preenche justamente a lacuna da comunicação pública, imprescindível para a consolidação de um sistema democrático e plural. Treze anos depois, o governo de Jair Bolsonaro empenha todos os esforços para liquidar a única experiência de comunicação pública do país.

Na contramão do mundo, Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, vêm realizando um queimão das empresas estatais com o Programa Nacional de Desestatização (PND). Entre as estatais cotadas pelo governo que conseguiu ser recordista em gerar desemprego para o Brasil (14,8 milhões de desempregados, segundo o IBGE), está a EBC, que tem 94,8 milhões de usuários únicos com a Agência Brasil; mais de 4,5 mil emissoras com a Radioagência; é a maior exibidora de filmes nacionais com a TV Brasil; chega em municípios que não têm sequer um veículo próprio de comunicação; e tem o valor imensurável de estimular a democracia através da formação da opinião pública.

No Brasil, a criação de oligopólios privados (de comunicação) sempre privilegiou determinadas vozes em detrimento de outras; por exemplo, a voz da classe trabalhadora. ‘A voz da classe trabalhadora nunca teve uma representação nesses meios equivalente à importância dela. Na cobertura de uma greve, por exemplo, as razões que são enfatizadas são sempre aquelas do prejuízo que a greve traz. Se escuta o problema de que vai prejudicar a população, de que não tem metrô circulando, por exemplo. E eu fico me perguntando: onde estão as razões dos trabalhadores que entraram em greve?”, comenta o professor de Ciência Política e Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) Venício Arthur de Lima.

Segundo Venício Lima, um dos mais reconhecidos analistas dos meios de comunicação no Brasil, o controle da informação gerado pelos oligopólios midiáticos privados (cinco famílias controlam 50% dos veículos de comunicação com maior audiência no Brasil) ataca frontalmente a classe trabalhadora e seus interesses. Em grupos privados, o que prevalece são os interesses privados, lembra. Entretanto, esses interesses privados, por vezes, acabam sendo defendidos por parte da própria classe trabalhadora, mesmo que seja ela o alvo. É o caso da reforma administrativa. Criada com o falso argumento de moralizar o serviço público, a reforma promove melhorias no caixa dos grandes empresários ao colocar nas mãos da iniciativa privada todos os serviços públicos prestados à população. Mesmo assim, nas ruas ou nas redes sociais não faltam comentários de trabalhadores e trabalhadoras em apoio à proposta que está em tramitação no Congresso Nacional.

Para o professor de Ciência Política e Comunicação da UnB, o apoio inesperado de trabalhadores e trabalhadoras a projetos estruturalmente prejudiciais à classe trabalhadora também é resultado da cristalização do sistema de comunicação privado. “Um determinado tipo de viés na cobertura jornalística durante anos e anos cria uma percepção da realidade que combina com esse viés”, explica.

Em um caminho inverso, a EBC nasceu para refletir o interesse público. O Manual de Jornalismo da Empresa Brasil de Comunicação prevê, por exemplo, que na cobertura de greves ou campanhas salariais de categorias de trabalhadores é importante ouvir todos os lados envolvidos e, se justificado pela relevância, acompanhar o dia a dia do movimento. “A abordagem deve levar em conta outros pontos de reivindicação além das cláusulas econômicas e salariais. A greve é um movimento social legítimo, um direito do trabalhador e tem o respaldo da Constituição brasileira”, diz trecho do manual.

“O fato de não existir propaganda e, portanto, compromisso com os anunciantes, permite que os trabalhadores tenham outro lugar de fala na comunicação pública. Infelizmente, desde o golpe, essas diretrizes (do Manual de Jornalismo da EBC) não têm sido seguidas à risca. Por isso mesmo que lutar contra a privatização da EBC é defender os direitos da classe trabalhadora”, avalia a coordenadora-geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF Juliana Cézar Nunes, jornalista licenciada da EBC.

Mestra e doutoranda em Jornalismo pela Universidade de Brasília (UnB), Juliana Nunes analisa que o esforço do governo Bolsonaro em privatizar ou extinguir a EBC está ligado ao cumprimento de uma promessa de campanha criada para satisfazer parte do eleitorado que acredita que a TV Brasil é a TV Lula. Essa narrativa foi criada e alimentada pela mídia privada, a quem não interessa um projeto de comunicação pública, e nesse ponto converge com a ala privatista do governo, que deseja fazer o desmonte completo do Estado, diz a sindicalista. Segundo ela, uma EBC privatizada significa mais um veículo de comunicação que amplifica as vozes de uma elite escravocrata e criminaliza os sindicatos e movimentos sociais.

Considerada definitiva nos efeitos da luta da classe trabalhadora, na promoção da pluralidade e da diversidade, a EBC não vigora plenamente na pauta de luta das diversas categorias de trabalhadores. Para a secretária nacional de Formação da CUT, Rosane Bertotti, que integrou o Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação, a EBC nunca exerceu plenamente a comunicação pública e o trabalhador não se viu nela. “As pessoas não têm noção do que é comunicação pública. Quando eu era conselheira da EBC, pessoas próximas diziam: ah, você é conselheira da Dilma?. E eu respondia: não, sou representante da sociedade civil”, conta.

Entretanto, para Rosane Bertotti, essa ausência de pertencimento da classe trabalhadora à EBC e à comunicação pública é resultado de uma demanda que foi atendida, mas não foi concretizada. Nem mesmo o próprio governo que foi criador da EBC apostou todas as fichas na capacidade dela, enquanto comunicação pública, ocupar todos os espaços. Quando fui conselheira, queria muito que tivesse um programa de TV que tratasse do mundo do trabalho, com as diversas visões, mas nunca fui atendida. Havia mais preocupação com o índice de audiência”, relata a dirigente da CUT.

Em meio à pior crise sanitária do século e diante de índices de desemprego, fome e miséria que colocam o Brasil em uma vala, a luta pela comunicação pública se mostra ainda mais distante da realidade da classe trabalhadora. “A classe trabalhadora tem tanto problema que ela nem percebe o debate da EBC e da comunicação pública. O trabalhador tem tanta necessidade de garantir as condições do dia a dia que ele não vê a EBC. Essa relação não foi construída plenamente antes, e agora menos ainda, pois não há Conselho, não tem participação da sociedade civil. É claro que a comunicação pública é estratégica para a classe trabalhadora, mas só se coloca agasalho quando se sente frio”, metaforiza Rosane Bertotti sobre a adesão da pauta em defesa da EBC e da comunicação pública pela classe trabalhadora.

A percepção da sociedade brasileira de que a comunicação não configura o campo dos direitos essenciais, como saúde e educação, por exemplo, é resultado do processo de consolidação da mídia no Brasil, que surgiu como um projeto da elite escravocrata e colonial, que detinha os meios para veicular seus ideais, como explica a coordenadora-geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF Juliana Cézar Nunes. “A comunicação pública só se tornou previsão constitucional em 1988. A EBC saiu do papel em 2008. Ou seja, temos menos de 15 anos de uma experiência de comunicação efetivamente pública, que ainda estava sendo estruturada quando ocorreu o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. Ainda assim, nesse breve período, foi produzido e distribuído muito material que reflete a sociedade e a classe trabalhadora”, analisa. Para ela, o desafio agora é mostrar esse material para a população e debater quais outros horizontes podem ser ampliados na retomada democrática. Entre eles, a radicalização da gestão e participação social”.

De acordo com o professor Venício Lima, é urgente que a classe trabalhadora tenha consciência da importância de se cumprir o princípio constitucional da complementariedade dos sistemas privado, público e estatal de radiodifusão. A comunicação pública está desvinculada do objetivo de lucro que a comunicação comercial tem. E também não tem os interesses da comunicação estatal. Então, ela (a comunicação pública) pode atender a interesses que não são interesses do capital e representar um conjunto de vozes que a empresa privada não representa, explica.

Enquanto estudiosos, pesquisadores e militantes em defesa da comunicação como direito humano se debruçam em análises e argumentos para salvar a comunicação pública e selar de uma vez por todas sua defesa pela classe trabalhadora, o governo Bolsonaro viola a lei, despreza a existência do Congresso Nacional ao tentar acabar ou extinguir a EBC por decreto e, mais uma vez, liquida a Constituição Federal ao banalizar princípios fundamentais da democracia. Cabe à classe trabalhadora reagir.

Fonte: CUT-DF