A força de quem nunca recuou

Eles dedicaram décadas à educação pública, enfrentando salas cheias, baixos salários e políticas instáveis. Foram mais do que trabalhadoras/es: foram alicerces da formação. Agora, aposentados/as, seguem cheios de disposição.
Nas cinco regiões do país, profissionais da educação mostram que o tempo fora da sala de aula não é sinônimo de pausa.
Francisca, que passou 34 anos na educação básica, mostra que a aposentadoria é só um novo começo: aos 60, sua rotina continua cheia de propósito. Izolete, aos 80, adora viajar, trocando saberes com quem passa por seu caminho. Modesto trocou o giz pelas vitrines e virou comerciante, encontrando no empreendedorismo um novo caminho. Já Custódia segue envolvida com a militância e até aprendeu francês. E tem ainda a professora Lourdes que trocou a lousa do passado pelos salões de dança, reinventando a própria rotina no ritmo da liberdade.
Mais do que trajetórias, eles representam um coletivo que resiste não só ao tempo, mas à ideia ultrapassada de que a aposentadoria é o fim de linha. Pelo contrário. Trata-se apenas de mais uma travessia.
Com malas prontas
Nem todo mundo encara a aposentadoria como um ponto final. Para muitas trabalhadoras da educação, ela representa apenas uma nova fase. É o caso de Izolete da Silva Kaminski, que se aposentou há dez anos do serviço público e, aos 80 anos, continua ativa e com a agenda cheia — de passeios, encontros e, principalmente, vida.
“Já faz dez anos que me aposentei”, diz, com a leveza de quem não parou no tempo. O cargo ocupado por Izolete era o de inspetora de alunos, e sua trajetória foi marcada por dedicação ao Colégio Alberto Gomes Veiga, em Paranaguá (PR).
Mas o fim da jornada oficial não significou, de imediato, descanso. “Quando eu me aposentei, acabei voltando para o mesmo colégio depois de um tempo”, relembra. O retorno durou um ano. O marido de Izolete adoeceu e, diante da situação familiar, ela decidiu sair definitivamente do trabalho. “Ele falava: ‘Chega, você já trabalhou 31 anos’”, conta.
Hoje, morando no Jardim Guaraituba, em Paranaguá (PR), Izolete valoriza a liberdade de escolher como aproveitar os dias. E, embora não tenha hobbies fixos além das viagens, demonstra toda sua energia: “Sabe que ninguém dá essa idade que eu tenho, 80? Ninguém me dá”.
Da sala de aula ao comércio de bolsas: o novo capítulo na história de vida do professor Modesto
Aposentar-se não foi o fim da jornada profissional de Ordalino Modesto de Carvalho, professor da rede pública de ensino em Primavera do Leste (MT). Aos 70 anos, ele segue com uma rotina ativa e empreendedora, conduzindo a própria loja de bolsas e mantendo o envolvimento com as escolas – agora como fornecedor e figura querida nas visitas aos antigos colegas de profissão.
“Eu me aposentei como professor em 2010, depois de 31 anos de serviço. Mas em 2014 comecei a trabalhar com bolsas. Hoje a loja se chama Modesto Bolsas e funciona na minha própria casa”, conta com entusiasmo.
A transição, no entanto, não foi imediata. Entre o fim da carreira na escola e o início no comércio, Modesto experimentou diferentes ideias. Chegou a cogitar abrir uma mercearia, mas, ao refletir sobre o ritmo e as exigências do negócio, buscou alternativas que lhe dessem mais autonomia e mobilidade.
E repensou. “Eu falei: se eu montar uma conveniência, vou ficar preso do mesmo jeito que era na escola. Então preferi abrir outro tipo de coisa”, disse. A escolha por um trabalho mais flexível o levou ao comércio de bolsas e, posteriormente, de roupas. “Vale a pena. Eu trabalho na hora que eu quero”, explica.
A liberdade na rotina foi um dos grandes ganhos da nova fase. “Eu trabalho praticamente duas horas e meia por dia”, afirma. “Eu faço com muito amor e dedicação”.
Sindicalizado com muito orgulho
Hoje, o ex-professor é microempreendedor individual (MEI) formalizado e mantém suas vendas por meio de visitas às creches e escolas estaduais. “É onde faço minhas vendas. Eu mesmo vou para a luta. Faço divulgação em grupos de WhatsApp também”.
Apesar da popularização de feiras de empreendedorismo, Modesto prefere ficar fora desse circuito. “Participei duas vezes, mas achei propaganda enganosa. É caro para expor e nem sempre vende o suficiente. Não compensa”, avalia.
Além da lojinha, ele conta com uma renda proveniente de um imóvel alugado. “Para não ficar parado. Porque é muito triste ficar assim”, diz.
Mesmo fora da sala de aula há mais de uma década, Modesto segue ligado ao coletivo da educação. Ele é sindicalizado desde 1983 e continua contribuindo. “Eu penso assim: se eu ajudo a nossa classe, eu estou ajudando a mim mesmo. E ajudando os outros que ainda estão na luta”.
No entanto, ele reconhece as dificuldades que afastam muitos aposentados da possibilidade de retorno à docência. “Fui convidado pela escola para voltar, tentei, mas o clima é outro. Perdeu-se a autoridade, o respeito. Não vale mais a pena”, reflete com sinceridade.
Ao falar sobre a aposentadoria, Modesto não esconde a satisfação com o novo ritmo de vida. “Eu fiquei quase dois anos parado, pensando no que fazer. Mas quando montei a lojinha, fui muito feliz. Não me arrependo”.
E faz questão de valorizar o bem mais precioso dessa fase. “A coisa mais rica que eu tenho na minha vida é a saúde. Eu sou milionário em saúde. Isso é a base de tudo”.
Conselho para quem está se preparando para largar o giz
Mesmo com os desafios enfrentados ao longo do caminho, Modesto é exemplo de reinvenção. “Graças a Deus, fui muito feliz em tudo aquilo que eu peguei para fazer. Eu não tenho que reclamar de nada”.
Em Primavera do Leste (MT), onde mora há trinta e três anos, o professor que virou empreendedor continua circulando pelas escolas, não mais com livros ou provas, mas com bolsas e, segundo ele, um sorriso largo.
“A minha venda eu faço nas escolas. E continuo sindicalizado porque sei que, ajudando a nossa classe, ajudo a mim mesmo”.
Mesmo fora da sala de aula há mais de uma década, Modesto segue ligado ao coletivo da educação. Ele é sindicalizado desde 1983 e continua contribuindo. “Eu penso assim: se eu ajudo a nossa classe, eu estou ajudando a mim mesmo. E ajudando os outros que ainda estão na luta”.
Custódia: entre a militância e o francês, uma aposentadoria com voz e ação
A aposentadoria nem sempre significa pausa. Para muitos profissionais da educação pública, ela é apenas uma mudança de ritmo – e não de propósito. É o caso de Custódia Maria Nascimento Matos, professora e diretora que se dividiu entre a rede estadual de Sergipe e a rede municipal de Aracaju por décadas, e que hoje, mesmo fora da sala de aula, permanece ativa. Sua idade? 65 anos.
“No estado eu me aposentei na regência de classe com 25 anos de serviço. No município, me aposentei quando extinguiram a função de orientador pedagógico”, conta. Ao todo, são 14 anos de aposentadoria no Estado (desde 2011) e oito anos no município (desde 2017).
Quando se desligou definitivamente dos dois vínculos, Custódia não buscou uma nova atividade remunerada. O foco foi outro. “Fiquei à disposição da minha filha que estava no ensino médio”, lembra. A nova rotina de mãe em tempo integral acabou abrindo espaço para cuidar também de si.
“Eu tentei cuidar um pouco de mim na questão da saúde e fazer uma coisa que eu não podia por conta de dois vínculos. Comecei atividade física em 2018, por recomendação médica”, disse. Mas não parou por aí. “Em 2020, retornei a um curso que eu havia feito na adolescência como bolsista: francês. Resolvi continuar. É uma escolha minha. Muito bom”.
Militância que não se aposenta
A dedicação à profissão se transformou em engajamento. Aposentada sim, mas longe de inativa. Participações em assembleias, congressos e seminários nunca deixaram de fazer parte da sua agenda. “Nunca me atraí pelas atividades culturais do sindicato. Sempre preferi questões políticas e relacionadas aos direitos do professorado”, afirma.
Essa disposição levou Custódia de volta à linha de frente do movimento sindical. “Um grupo insatisfeito com a direção do sindicato municipal me convidou. Formamos uma chapa e fomos eleitos. Hoje faço parte da direção do sindicato”, conta.
Em pleno vigor, a professora aposentada continua participando de atos públicos e encontros com autoridades. “Hoje de manhã mesmo estive em um ato. Fomos tentar conversar com o governador do estado sobre nossos direitos”, relata, mostrando que a luta não se encerra com a aposentadoria.
Apesar da nova rotina, Custódia admite que o início foi um pouco desorientador. “É muito estranho não ter um horário. A gente nunca se organiza para esse momento”, reflete. A saída da sala de aula, para muitos educadores, representa o fim de uma identidade construída ao longo de décadas. Mas para ela, foi também uma oportunidade de reencontro com desejos antigos, como o estudo do francês e com a liberdade de escolher como preencher o tempo.
“Dentro dessa vida atarefada de professora, com dois vínculos e as obrigações de casa e maternidade, eu decidi fazer algo que fosse uma escolha minha”, explica.
Um conselho para quem vem depois
Aos colegas que estão prestes a se aposentar, Custódia deixa um alerta e um chamado. “Se organizem. Se preparem. Tenham algo no horizonte para continuar ativos, seja nos sindicatos, seja em outras atividades”.
Ela também reforça a importância da coletividade, especialmente no atual cenário político. “Tanto quem está na ativa quanto quem está aposentado vai sofrer perdas. Sempre teremos que lidar com agressões e ameaças aos nossos direitos. A reforma administrativa está aí, de novo. Precisamos continuar lutando”.
Na cidade de Aracaju, aos 64 anos, Custódia é exemplo de que a aposentadoria não precisa ser um ponto final. Pode ser, sim, o parágrafo de um novo capítulo – mais livre, mas não menos combativo.
Aposentadoria com ritmo: os novos passos de uma educadora dançante
Depois de 33 anos dedicados à educação pública em Belo Horizonte, Maria de Lourdes Chagas Silva, de 76 anos, pendurou o quadro de avisos em 2024. Professora de português e literatura para o segundo ciclo do ensino fundamental, ela se aposentou da sala de aula, mas não da vida.
“Agora eu estou vivendo para mim”, diz, com a convicção de quem cumpriu sua missão. Apesar de não ter se engajado em nenhuma nova ocupação formal, Lourdes tem planos e sonhos. E, ao contrário do que muitos imaginam, ela não vê a aposentadoria como um fim, mas como uma nova fase.
“Por enquanto, eu estou cuidando de mim mesma. Dando oportunidade de viver melhor a minha vida. De fazer academia, de viajar um pouco”, afirma.
A nova rotina da professora inclui musculação, dança e o desejo de conhecer novos lugares. “Faço musculação. E dança também. Tipo dança de salão, mas faço outros ritmos, como forró… eu vou em todos os eventos. É um grupo da terceira idade”, explica. Ainda este ano, ela realizará um marco pessoal: sua primeira viagem de avião.
“É verdade. Eu nunca tive coragem, mas agora eu estou. Porque chegou a minha vez. Eu tenho o direito de conhecer lugares diferentes. De me arriscar. De ir mais além”, conta.
A paixão pela escrita também acompanha Lourdes desde cedo, herdada do pai jornalista. “Falam que eu escrevo muito bem. Eu tenho crônicas. Meu pai era cronista também. Ele era jornalista do Estado de Minas”, se orgulha. Ela pretende publicar suas produções e já tem até projeto para um livro.
“Quero escrever a história do pai do meu marido. É uma história muito linda. Ele vem de um lugar humilde da roça e conseguiu quase um império de comércio aqui em Belo Horizonte”, afirma.
O título da futura obra já está definido: Memórias de João Bahia, em homenagem ao sogro, fundador do famoso Café Bahia, ponto tradicional e boêmio da capital mineira.
Leia a Revista Vitalidade na íntegra: https://mla.bs/1dd1acd2
Fonte: CNTE