A escola sempre sob ataque: um perigoso termômetro social.

Simão de Miranda[1]: Professor aposentado, pós-doutor em educação e escritor.

 

Aconteceu de novo. Dia 5 de abril de 2023, criminoso invade escola de educação infantil em Blumenau — SC e com uma machadinha matou quatro crianças e feriu cinco. Em março um estudante entrou armado numa escola em Guarulhos – SP, matou uma professora e feriu outros. Em fevereiro um adolescente de 17 anos atirando uma bomba caseira pela janela de uma escola explodindo um banheiro, na cidade de Montemor – SP.

A CNN fez um histórico assombroso de ataques a escolas desde 2002:

Só em 2022, seis casos: na cidade de Ipassu – SP um rapaz de 22 anos invadiu uma escola esfaqueando duas professoras; em Aracruz foram duas escolas, quatro pessoas morreram e dez ficaram feridas; em Sobral – CE um aluno de 15 anos atirou em três colegas; em São Paulo, capital, um estudante de 13 anos esfaqueou dois colegas; em Morro do Chapéu – BA, um jovem esfaqueou a diretora e incendiou a escola; em Barreiras – BA, atirou contra dois colegas, uma aluna cadeirante morreu. Em 2021 em uma escola da cidade de Saudades – SC, um jovem de 18 anos matou três crianças e duas professoras. Em 2019 foram três casos: na cidade de Charqueadas-RS, um estudante de 17 anos atacou com machadinha seis alunos e uma professora; em Caraí – MG um aluno de 17 anos baleou dois colegas; em Suzano – SP, dois ex-alunos mataram a bala dez colegas e feriam onze. Em 2018 em Medianeira – PR, um estudante de 15 anos atirou em vários colegas. Em 2017 em Goiânia – GO, um garoto de 14 anos matou a tiros dois alunos e feriu quatro. Em 2012 em Santa Rita – PB dois jovens atiraram em um colega e feriram mais dois. Em 2011 em São Caetano do Sul – SP, uma criança de 10 anos atirou na professora e se matou; em Realengo – SP, um ex-aluno de 23 anos matou a tiros 12 crianças, suicidando-se. Em 2003, em Taiúva – SP um estudante e 18 anos disparou contra 50 colegas e cometeu suicídio. Em 2002 em Salvador – BA um adolescente de 17 anos matou a tiros duas colegas.

Estes relatos se referem apenas ao uso de armas físicas. Pois, a violência simbólica tem se manifestado também cruelmente. Impossível esquecermos do MBL babando ódio pelas ventas na invasão de escolas, extrema direita autorrotulada de Escola Sem Partido, patrulhando instituições de ensino, ordenando pais a invadirem salas de aula, praticando assédio, disseminando fúria e mandando filmarem, sem consentimento, professoras e professores no exercício do seu ofício.

Um dia desses, uma moça de alcunha MC Pipokinha, com K, note, denominada influencer. Algo que até hoje não decodifiquei: que profissão é essa, influencer? Bem, essa triste figura se dirigiu com extremo deboche aos professores, para sua plateia de seguidores, conforme contabiliza os números da sua rede social. E “seguidores” é o nome adequado. Seguidores seguem cegamente, com a escusa pelo uso infame da sinestesia, cuja figura de linguagem a moça que se diz compositora e cantora nunca ouviu falar.

No período crítico da pandemia da covid 19, muitas profissões adotaram o trabalho remoto, e tudo bem. Mas a escola e seus profissionais até de vagabundos foram nomeados.

Nesta semana o apresentador de TV Luciano Huck defendeu a manutenção do Novo Ensino Médio, que segrega, amplia as desigualdades sociais, tem claro interesse em enriquecer ainda mais os oligopólios educacionais. Mais uma vez essas declarações vêm de representantes da burguesia, sem qualquer lugar de fala, ignorantes tanto quanto ao tema, quanto à escola pública, sobremaneira. Mas que se acha autorizado a emitir juízos, que se entende competente para analisar políticas educacionais, como se seus filhos fossem alunos da escola pública. Disse ele: “revogar o Novo Ensino Médio é retrocesso. O esforço para oferecer uma escola mais atrativa para os alunos e conectada com as suas expectativas de vida e carreira deve ser permanente”. O que este burguês sabe sobre políticas públicas voltadas a educação? O que conhece das expectativas de vidas dos jovens da periferia? Defendeu tese sobre o tema? Sabe o estado da arte sobre a situação-problema? O riquinho quis mesmo foi lacrar! Como esta figura, existem aos borbotões, pois a elite não para de procriar.

Depois desta declaração imbecil, a reação foi imediata. Gente de bom senso, sim, elas ainda existem. Em extinção, mas ainda sobrevivem. Não se produz gente inteligente na mesma proporção que imbecis. Pois bem, estas pessoas deram várias respostas a altura. Como o vereador Paulo Pinheiro (PSol-RJ) que tentou ensinar para o Luciano que o Novo Ensino Médio, criado pelo Michel Temer (MDB), em 2017, “é uma máquina de moer futuros e que aliena nossas crianças e vai totalmente contra o que precisamos de uma sociedade: progresso”. Aposto que se Huck estivesse no quadro Quem Quer Ser um Milionário do programa que ele conduz, viria a fortuna do jogo ruir por não ter a mínima ideia do que é o Novo Ensino Médio, e pediria explicação da metáfora “máquina de moer futuros”.

Até Sergio Moro, dublê de juiz; dublê de dublê de senador; e agora dublê de dublê de dublê de comentarista de educação, disse: “a revogação do novo ensino médio é negacionismo”. Tanto internalizou a expressão “negacionismo” durante o tempo que foi capacho do Valdemort que a palavra domina grande parte do seu reduzido vocabulário.

O argumento do Huck foi de pronto repelido por quem exige a revogação da medida em função de problemas fulcrais, como a precarização do trabalho docente, a limitação da formação básica dos estudantes, a não percepção das desigualdades etc. Uma das vozes que se manifestou foi a do historiador Jones Manoel, que desferiu logo um cruzado de esquerda: “Prezado, você não é professor, não é educador, não é estudioso da área, não é estudante, não trabalha com ensino e não é líder político. Guarde sua opinião para você, foque no seu programa ruim e deixe de fazer lobby para grupos econômicos privados da educação”.

Essa agressão do Huck à educação não foi a primeira. Não faz muito tempo estrelou uma peça publicitária para a Faculdade Anhanguera, copiada em seguida pela Unopar, esta tendo Rodrigo Faro da Record como garoto propaganda. Foram muitas repercussões negativas nas redes sociais de quem não aceita menosprezo à nossa profissão. Outras vozes aplaudiram a infâmia. As desdenhosas propagandas ofertavam segunda graduação, com o seguinte bordão: “Seja professor e aumente sua renda!” Ou seja, ambas propagandearam que nossa profissão é um bico, quando deveriam defender que é o alicerce de todas as outras profissões e que todas precisam ser valorizadas para que ninguém precise fazer bico.

A educação brasileira, sobretudo a pública, quase sucumbiu nos últimos quatro anos nos projetos delituosos de um grupo político comprometido em entregá-la aos oligopólios. Nossas escolas, públicas e privadas, vivem entrincheiradas sob permanentes ataques físicos e simbólicos, alimentados pelo infindo combustível da intolerância, do ódio político-religioso, do horror às minorias. A escola sofre todos os dias o ato vil de ser colocada como inimiga da sociedade.

Preciso lembrar que a escola é porto seguro de centenas e centenas de crianças e jovens que a tem como a derradeira centelha de esperança. A escola, sob fogo cruzado, ainda resiste em ser o lugar de acolhida física e simbólica para novas gerações que possam resistir e a defenderem contra as forças burguesas que querem pulverizá-la. Não há, em uma sociedade egoísta e tacanha como a que vivemos, outro lugar, senão a escola, para amparo, guarida e alimento para os sonhos das populações minoritárias: pobres, negros, indígenas, membros da comunidade LGBTQIA+, pessoas com deficiências, minorias étnicas, culturais e religiosas.

Tentando ver por outro prisma, este quadro serve também para percebemos o quanto a escola é poderosa. Por isso gera medo, ódio, vingança, vira alvo dos seus detratores. Como Paulo Freire, acredito que se a escola não muda a sociedade, tampouco sem ela, a sociedade muda. Talvez não estejamos nos comprometendo o suficiente por uma pedagogia crítica, reflexiva, verdadeiramente emancipadora. O que tiro disso tudo é que a educação brasileira é mesmo uma fortaleza quase que inexpugnável, porque nós, profissionais da educação, somos tenazes e cônscios dos fins sociais da educação.

Concordando com François Mauriac, ao dizer lindamente que professoras e professores são quem instituem a humanidade no homem, conclamo que não silenciemos, enfrentemos, confrontemos cada figura que ouse desqualificar a escola e profissionais que nela atuam, cada sujeito que se arvore a lhe sonegar a função de libertar a humanidade; rechacemos toda e qualquer forma de violência, visíveis e invisíveis, que afronte nossas escolas.

 

 

 

[1] Simão de Miranda é Pós-Doutor em Educação, Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, é professor, escritor e palestrante. Realizou mais de 1.000 formações no Brasil, Argentina, Cabo Verde, Cuba, Portugal e São Tomé e Príncipe. Publicou mais de 70 livros sobre formação de professores e literatura para crianças. Tem obras traduzidas em Portugal e México, e uma distribuída em 27 países. Seus livros integraram catálogos das Feiras de Frankfurt/Alemanha, Bolonha/Itália. É professor em pós-graduações e Cidadão Honorário de Brasília. Contato: simaodemiranda@gmail.com

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