A construção de um Brasil sem transfobia passa pela sala de aula
Ninguém escolhe ser lésbica, gay, bissexual, transexual, queer, intersexual, assexual ou ter outras variações de sexualidade e de gênero. Quem é LGBTQIA+ simplesmente é, mesmo que, em muitos casos, não queira ser. Um não querer provocado sobretudo pela heteronormatividade impositiva, opressora e assassina. E é na escola que o descobrimento da orientação sexual e da identidade de gênero se inicia, junto com uma série de dúvidas, medos e apreensões, principalmente quando envolve um processo transexualizador.
A escola, que deveria ser espaço de acolhimento, libertação e ter como princípio o ensino do respeito às diferenças, muitas vezes assusta e rejeita quem não se encaixa no padrão imposto. Um cenário que não é de hoje, mas que ganha fôlego diante do comportamento deliberadamente preconceituoso e reacionário do governo Jair Bolsonaro.
Segundo a Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil, realizada em 2016, 60% dos LGBT na escola se sentem inseguros por causa de sua orientação sexual e 43% se sentem inseguros por causa de sua identidade/expressão de gênero. O estudo ainda aponta que 27% dos/das estudantes LGBT foram agredidos/as fisicamente por causa de sua orientação sexual e 25% foram agredidos/as fisicamente na escola por causa de sua identidade/expressão de gênero. Mesmo assim, apenas 8,3% dos/das estudantes afirmou que o regulamento da escola tinha alguma disposição sobre orientação sexual, identidade/expressão de gênero, ou ambas.
Diante dos números assustadores, Ali Nacif, de 33 anos, acredita que seu processo de transição poderia ter sido muito menos doloroso caso as escolas por onde passou tivessem discutido sexualidade de forma ampla e sem barreiras conservadoras. “Teria tanto me ajudado a iniciar a transição mais cedo como não ter maculado o meu corpo. Na escola, se dá preferência para aulas onde uma criança pega um papel e cola bolinhas do que a gente falar sobre corpo. Se prefere uma professora falando sobre a Bíblia do que falando sobre sociedade”, diz a jornalista que mora no Ceará.
Já João Moura*, estudante de Artes Cênicas da Universidade de Brasília, acredita que a educação atua tanto na vertente do conhecimento, que combate a ignorância do preconceito com pessoas transexuais, como possibilita que pessoas trans tenham acesso aos espaços que quiserem.
“A educação dá oportunidade para que pessoas trans saiam desses lugares que são marginalizados. As pessoas geralmente olham uma mulher trans e pensam que é uma pessoa que faz programa, não pensam que é uma mulher trans que é professora de Direito, por exemplo. Mas a educação também esclarece a população. Tem gente que nunca teve contato com uma pessoa trans, mas com certeza teve contato com pessoas transfóbicas. E aí, se a pessoa for totalmente leiga, talvez ela acredite que o filho, ao ter contato com alguém trans, vai sair da escola e virar uma travesti fazendo programa”, analisa João que iniciou sua transição ao entrar na faculdade e esbarrou na resistência de professores a essa mudança.
O processo de transexualização se mostra tortuoso não só para alunos e alunas. Professoras e professores que iniciam a transição já em sala de aula também sofrem o revés do preconceito, a partir de um processo que inicia bem antes dos muros das escolas.
Graduada em Ciências Naturais pela Universidade de Brasília, a professora Eulla Brennequer estava trabalhando em uma unidade de internação quando externalizou sua transição, em 2018. “Era um contexto complexo, que requeria muita sensibilidade e, ao mesmo tempo, eu tinha que lidar com as minhas inquietações. Estava em um processo de sair de casa. Fui criada só pela minha mãe; tivemos uma relação muito difícil no início, e então optei por sair de casa”, conta.
Já formada e se colocando enquanto travesti, Eulla enfrentou também o desafio da pandemia do novo coronavírus e foi uma das 14 milhões de pessoas que ficou desempregada. “Infelizmente, tive que recorrer a outros ‘corres’ informais, que muitas pessoas trans têm que passar. Me deparei com muita dificuldade em conseguir um ‘trampo’ em uma escola particular. Sequer me convocavam para entrevista. Então, ou você passa em um concurso público ou processo seletivo ou é isso. Eu, enquanto travesti, não vou ser contratada por uma instituição privada. Foi um ano que sobrevivi com a solidariedade das pessoas e com os meus ‘corres’”, conta a professora de 27 anos, que mora na cidade de Planaltina.
Para Eulla, a educação é fundamental no processo de construção de um Brasil – que hoje lidera o ranking de país que mais mata pessoas trans no mundo – sem transfobia. A professora enxerga o espaço escolar como definitivo neste processo, sendo ao mesmo tempo lugar de acolhimento e de responsabilidade social.
“A escola tem uma dívida histórica com as travestis e as pessoas trans, que foram expulsas desses espaços e não retornaram. Muitas não sabem ler, não sabem escrever. E estão na prostituição há 20 anos, pois encontram nisso a única forma de sustento. No espaço escolar não se fala sobre transexualidade. Até fala-se, mas sobre o ponto de vista biológico, que é totalmente transfóbico. Não temos referência. E para uma pessoa que está no processo de transição é importante ter referência. Depois disso, é acolher. O espaço da escola também é um espaço de fuga. Penso como deve estar sendo difícil para alguns adolescentes estar em casa neste momento de pandemia, pois é na família que, muitas vezes, as pessoas LGBT sofrem violência”, esclarece a professora.
E foi justamente na escola que o professor da Secretaria de Educação do DF Hugo Abas** encontrou acolhimento. Ele dedica 18 dos seus 46 anos à docência.
Hugo, que sonha em ter um filho, tomou a primeira dose de hormônio masculino na metade de 2018. O passo foi grande e cheio de coragem e certeza. Ele conta que passou a infância inteira taxado como errado. “A minha irmã falava: senta direito, fecha essas pernas! Parece um macho! E minhas amigas falavam: anda direito. E eu pensava: como será andar direito? Então eu sempre andei errado, falei errado, comi errado. Eu estava num mundo errado”.
Depois de adulto e certo do que queria, Hugo iniciou sua transição. E mesmo se colocando pela primeira vez no mundo como se identificava, o professor foi considerado uma aberração por familiares. Coisa que na escola não aconteceu. “Foi um processo muito ‘massa’. Eu conversava com as professoras na copa e elas me davam todo apoio. O acolhimento foi dez mil vezes melhor do que na minha família”, lembra.
Sempre muito direto e desaforado, como ele mesmo se autodenomina, professor Hugo não teve medo de se impor no local de trabalho ao fazer sua transição. “Quando a minha diretora falava qualquer coisa no feminino, eu logo corrigia. Na época, eu estava com crianças do terceiro ano. Aí conversei com elas. Falei: olha, agora pode chamar de tia ou de tio. Mas isso eu só ia aceitar até o fim do ano. A partir do ano seguinte, eu não ia aceitar mais, pois meus documentos estavam todos trocados. E eu disse para a minha diretora: a partir do ano que vem, eu quero meu nome na porta da sala como professor Hugo”, fala orgulhoso.
Por ter encontrado na escola seu principal local de apoio, Hugo acredita que este espaço pode ser sim de transformação social. Entretanto, para ele, isso depende “principalmente do comportamento dos professores e professoras que conduzem os alunos e as alunas”. “O temperinho que a gente joga na turma durante o ano, é seu. Cada professor é que vai fazer a mudança na sua sala de aula. A criança já traz algumas coisas dela e outras de casa. Mas ela ainda tem um terreno fértil que dá pra gente plantar muitas sementinhas. A gente pode sim construir de pouquinho em cada uma delas”, diz didaticamente, como um bom professor.
Foi com a certeza de que as salas de aula são um espaço de transformação que o professor da Secretaria de Educação do DF Alexandre Magno Maciel Costa e Brito encabeçou de peito aberto o projeto Diversidade na Escola, realizado no Centro de Ensino Fundamental 01 de Planaltina, o Centrinho.
O projeto iniciado em 2013 permanece vivo e aborda de maneira didática e transversal questões como orientação sexual e expressão e identidade de gênero. Os resultados, segundo o professor, foram imediatos e extremamente relevantes. “Famílias saíram do armário. Pessoas se sentiram seguras para tratar dessa questão. Houve melhora na taxa de evasão escolar. E a escola, que tinha o estigma da violência, hoje é considerada a escola da diversidade”, diz.
O professor fala que, no início, o projeto esbarrou em algumas questões internas e externas ao ambiente escolar. “Nas questões externas, estávamos diretamente ligados às famílias, às questões religiosas, todos esses processos que a gente conhece bem quando a trabalhamos com minorias. Algumas pessoas reagiram negativamente, mas tivemos uma grande resposta positiva da sociedade. Muita gente tinha consciência de que não conseguiria trabalhar essas questões em casa e que era importante que a escola trabalhasse”, relata.
Já no ambiente interno, Alexandre conta que a resistência que havia dentro das escolas foi facilmente deslegitimada pelo marco legal, que é o Currículo em Movimento, orientador das diretrizes do ensino no DF. Nele, está garantida a discussão de gênero e orientação sexual, bem como questões ligadas à raça.
Atualmente afastado para realizar seu doutorado, que aborda a questão da transexualidade, professor Alexandre destaca a importância do Currículo em Movimento, mas afirma que o que realmente fará a diferença é a presença de pessoas trans nas escolas, tanto na condição de alunas e alunos como de professoras e professores.
“Por mais que a gente tenha essa pedagogia do afeto, da empatia, da solidariedade, ela não consegue alcançar a dimensão do que cada pessoa é, sente ou vive. A gente faz esse esforço, que é importantíssimo, transformador, revolucionário, mas ele tem limites. Pois a gente está cansado de falar sobre; a gente está querendo falar com. E é importante que essas pessoas estejam dentro das escolas, ocupem esses espaços para que elas possam falar de si e não precisarem de um professor que é gay, mas é cis e branco. A gente precisa da presença. E só conseguiremos isso com a mudança da estrutura”, ensina Alexandre.
A estrutura que menciona Alexandre, todavia, está cada vez mais intoxicada pelo avanço do fascismo no Brasil. Após o golpe de 2016, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi revisada e suprimiu os termos “gênero” e “orientação sexual” do texto que tem como objetivo nortear os objetivos de aprendizagem para estudantes da Educação Básica no Brasil.
Para a diretora da Secretaria de Raça e Sexualidade do Sinpro-DF Ana Cristina de Souza Machado, a mudança mostra “o avanço do conservadorismo que estamos vivenciando no país”. “A escola está deixando de ser um lugar de inclusão, para se transformar em um lugar de dor e sofrimento para os estudantes LGBTQIA+, sobretudo estudantes trans”, afirma.
Embora a mudança na BNCC tenha sido um dos principais ataques à educação democrática e inclusiva, o secretário de Direitos Humanos da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), José Christovam de Mendonça Filho, avalia que temáticas como a transexualidade sempre ficaram à margem dos currículos escolares. Entretanto, as proporções ganharam peso com o governo Bolsonaro.
“Ouso dizer que a própria Base (Base Nacional Curricular) já foi uma construção da conjuntura fascista que começamos a viver no governo Michel Temer, a partir do golpe de 2016. Não dá para dizermos que as dificuldades que temos hoje são resultado da Base. Elas são resultado de uma conjuntura completamente desfavorável, machista, homofóbica, transfóbica, que está sendo construída com ainda mais rigor no governo de Bolsoanro”, diz o sindicalista.
Se de um lado há o avanço do comportamento e de políticas que tentam legitimar a transfobia, do outro a resistência se constrói na mesma proporção. Exemplo disso é a coragem da estudante Ali, do estudante João; da professora Eulla, dos professores Hugo e Alexandre; da luta organizada construída conjuntamente para que a educação siga sendo um ato político, como acreditava Paulo Freire, formando pessoas críticas e transformadoras de suas realidades.
“É urgente a superação das relações sociais historicamente assimétricas, balizadas em uma heteronormatividade infundada e tóxica. E é na educação escolar, com uma escola pública, laica, democrática e inclusiva, que está a chance de iniciarmos uma história sem transfobia”, acredita a diretora da Secretaria de Assuntos de Raça e Sexualidade Márcia Gilda.
* Os nomes Hugo Abas e João Moura são fictícios a pedido das fontes
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