21 de janeiro | Combater a intolerância religiosa é também combater o racismo

Dia 21 de janeiro é o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A data foi instituída pela lei nº 11.635, sancionada pelo então presidente Lula em 2007. Ela marca um fato triste, revoltante e, infelizmente, mais comum do que se pensa: há 22 anos, a Iyalorixá Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum, foi fatalmente vitimada por um ataque cardíaco, que lhe acometeu em decorrência de uma sequência de ações de intolerância e racismo.

 

Na época, fundamentalistas da Igreja Universal do Reino de Deus invadiram e depredaram o terreiro de Candomblé Ilê Axé Abassá de Ogum em Itapoã (BA). Dois meses após o crime, o jornal “Folha Universal”, da mesma igreja, apresentou uma foto da Iyalorixá e um texto que dizia: “Macumbeiros charlatões levam a vida e o bolso de clientes”. Seu coração não resistiu a tamanha injustiça e crueldade.

Mesmo após duas décadas, a realidade, infelizmente, ainda é a mesma. Todos os anos, casos e mais casos se refletem em números crescentes de violência. No Brasil, a cada 15 horas, um terreiro é vítima de ataques. Só em 2019, dados revelados pelo portal Brasil de Fato mostram que houve um aumento de 56% nas denúncias de casos de intolerância religiosa, sendo, a maior parte delas, registradas por praticantes de Umbanda e Candomblé.

Em um caso recente, acontecido em 26 de agosto de 2021, a imagem de Ogum na Praça dos Orixás, nas margens do Lago Paranoá, no DF, foi totalmente destruída por vândalos. A estátua, que originalmente ficava sobre um pedestal, foi queimada, e sua cabeça foi arrancada e pendurada em uma árvore – numa terrível referência a ações genocidas praticadas contra o povo negro nos EUA.

A imagem, que ficava originalmente sobre um pedestal de concreto, foi encontrada no chão e sem a cabeça / Foto: Mãe Baiana de Oyá

 

No Rio de Janeiro, o “Complexo de Israel”, área assim batizada por criminosos que se dizem evangélicos, proíbem, em seus domínios, práticas de religiões afro-brasileiras. A região de favelas entre Cordovil, Brás de Pina, Parada de Lucas e Vigário Geral, na Zona Norte do Rio, dominada por milícias e traficantes, é demarcada por bandeiras do Estado de Israel e ameaça a comunidade negra em seus domínios e expressões. Terreiros tradicionais de Umbanda e Candomblé foram atacados, e as roupas brancas usadas pelos seus frequentadores foram proibidas. Sem contar as tantas denúncias que relatam  sessões de tortura e espancamentos.

A perseguição às religiões de matriz africana vem desde a formação da sociedade brasileira. Desde muito tempo atrás, pessoas negras escravizadas foram levadas, pelo cristianismo do homem branco, a abandonarem suas crenças e tradições. Entretanto, sempre houve resistência, luta por reparação histórica, por reconhecimento e liberdade de crença. 

É urgente e necessário reforçar as políticas públicas de igualdade, especialmente na Educação, com destaque ao ensino da cultura e da histórica africana nas escolas. Essas são iniciativas que trazem a verdadeira história e realidade atual para contrastar com a intolerância e as “fake news”.

Roda de Camdoblé / Foto: Lionel Scheepmans

 

De acordo com a Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e Entorno, no DF existem cerca de 400 terreiros. Um levantamento realizado pela Decrin (Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa, Orientação Sexual, ou Contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência), em 2019, mostrou que, só na capital, 59% dos crimes de intolerância religiosa têm como principal alvo as religiões de matrizes africanas. O dia a dia dos negros e negras que segue suas tradições é uma luta inconstante na busca pelo respeito e tolerância.

O ativista Daniel Kibuku defende que a intolerância religiosa é uma prática ligada unicamente ao racismo, ressaltando que os ataques criminosos, em sua grande maioria, são contra religiões de matrizes africanas.

“Se desejamos ter uma democracia de fato em nosso país, é necessário trabalhar diariamente em prol de uma cultura de paz e respeito à diversidade religiosa”, ressaltou kibuku.

Ao Sinpro, Kibuku respondeu algumas questões.

O que explica de fato tanto ódio contra as religiões de matriz africana?

O ódio contra as religiões de matriz africana é mais uma expressão do racismo. Essa história faz parte da construção do Brasil. Não superamos ainda os efeitos da escravidão e por isso até hoje vivenciamos o extermínio físico e simbólico das nossas raízes africanas. Podemos constatar isso tanto nos ataques aos terreiros como no extermínio da população negra.

Acredita que a ignorância esteja ligada à intolerância?

Não é apenas uma questão de ignorância. É evidente que a educação, assim como os meios de comunicação e de cultura, tem um papel importante em difundir conhecimento e informação para acabar com os preconceitos. Entretanto, o racismo é uma ideologia estruturante que dispõe de diversos mecanismos para bloquear a difusão e o acesso à história e à cultura de matriz africana. Portanto, é necessário superar também essa barreira, atacando sua dimensão política, econômica e social.

Em sua opinião, o que o Estado poderia fazer para combater a intolerância religiosa? Acredita que políticas públicas sejam capazes de contribuir nesta questão?

Penso que, além do enfrentamento dos casos de violência, é necessário sim que haja políticas públicas de reparação ao genocídio da escravidão. Mesmo que não haja um apartheid formal, não há democracia real ainda no Brasil. É necessária a construção política que vise ao reconhecimento dos territórios tradicionais de matriz africana, a salvaguarda do patrimônio cultural material e imaterial e o desenvolvimento econômico e social dessas populações.

Márcia Gilda, coordenadora da Secretaria de Raça e Sexualidade do Sinpro-DF, ressalta que a intolerância religiosa é, na maioria das vezes, uma violência racista. “A desinformação, a mentira e a discriminação são armas poderosas dos intolerantes, por isso confiamos na educação para interromper o ciclo de ódio e promover a igualdade e os direitos humanos.

Basta de intolerância! Basta de racismo!

Edição: Alessandra Terribili

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