2020 e as questões sufocadas
Passamos por 2020. Um ano que será um marco na história da humanidade. O ano passado foi uma síntese dos questionamentos acerca do modo como nos organizamos como sociedade, de nossas relações sociais, interpessoais, políticas, econômicas, ambientais entre outras. A pandemia parece ter explicitado o que se limitava, muitas vezes, a conversas familiares ou a grupos de colegas. Da mesma forma, o novo vírus desnudou os limites da organização econômica e política majoritária nas sociedades atuais, assim como demonstrou a resistência dos discursos que pareciam superados pela suposta evolução do pensamento humano baseado no desenvolvimento científico.
2020 despiu a hipocrisia presente nos discursos religiosos, moralistas e pseudopatrióticos. Talvez uma das fotos mais representativas do ano passado seja o saldo de 196 mil mortes no dia 31 de dezembro, paralelamente à demonstração de ausência de empatia do Presidente da República celebrada em uma praia acompanhado de um punhado de pessoas, que, gritando “mito”, somavam-se a uma celebração insensível de um país que convive com mais de 14 milhões de desempregados; o fim do auxílio emergencial que impede o aumento da fome; o luto de centenas de milhares de famílias vítimas de uma doença que não é equivalente a uma “gripezinha”. Realidade de luto acentuada pelo aumento da quantidade de feminicídios noticiados nas últimas semanas de dezembro. Parece que o último mês foi uma síntese, explicitamente macabra, de 2020.
O último ano da segunda década do século XXI marcou, no mundo, a explicitação de discursos obscurantistas e de ódio às diferenças. Por todo o planeta, em graus diferentes, assistimos o fortalecimento do negacionismo da ciência, do preconceito étnico em relação a determinadas nações, do racismo e do machismo naturalizados, da indiferença em relação à fome e à miséria, da manipulação das informações e da hipocrisia em detrimento da empatia.
No Brasil, essas situações foram potencializadas pelos discursos do Presidente da República e os dos integrantes de seu governo. Jair Bolsonaro, por meio de suas entrevistas, lives, declarações, atitudes, gestos etc., não só deu voz, mas também amplificou o que antes se conversava em festas familiares ou atividades entre conhecidos. Eventos nos quais indivíduos expunham sem muito pudor visões preconceituosas, discriminatórias e violentas. Tais pessoas que se viam “acuadas” pela vergonha, assumiram, desavergonhadamente, as posturas antes somente vistas nas intimidades de lares, bares, vizinhança, grupos sociais. A triste constatação da consonância do discurso de Bolsonaro com parcela expressiva da população brasileira se materializa nos índices de aprovação de seu governo e no compartilhamento de mentiras (fake news) que negam fatos históricos e contemporâneos. O resultado da reverberação desse conjunto de discursos e atitudes foi a naturalização e, consequentemente, o aumento da violência contra LGBTQIA+, mulheres, crianças, negros/as, indígenas, lideranças populares e militantes de movimentos sociais, populações tradicionais e liberdade de expressão.
Dessa forma, o último ano da segunda década do século XXI deixa em aberto questões que devem ser enfrentadas, urgentemente, por nossa sociedade se quisermos, ontologicamente, afirmarmo-nos como Nação. Nessa perspectiva, os resultados políticos, sociais e econômicos decorrentes das opções, conscientes ou inconscientes, de nosso povo precisam ser analisados histórica e conjunturalmente para uma concreta redefinição ou correção de rumos. Modelo de democracia, responsabilidade social, econômica, ambiental e coletiva, projeto de Estado, empatia real versus solidariedade momentânea, concepção de Nação, são questões a serem, primordial e imperativamente, debatidas por nossa sociedade. Os resultados desses debates demonstrarão o quanto seremos capazes de superarmos os desafios que nos serão impostos pela história e o quanto poderemos afirmar nossa identidade como povo pertencente a uma Nação única e soberana.
Por Cleber Ribeiro Soares, diretor do Sinpro-DF e professor da SEEDF.