Mulheres se mobilizam contra CPI do aborto

Representantes da CUT e de várias entidades ligadas à defesa dos direitos das mulheres se reuniram ontem, 11, com o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP). O parlamentar recebeu uma carta da Secretaria da Mulher Trabalhadora da CUT documento em que a entidade expressa sua posição contrária à instalação de uma CPI do Aborto, prevista em requerimento do deputado Bassuma (PT-BA), aprovado recentemente pela Casa.
“Como esclarecemos na carta, é preciso sim que o Poder Legislativo e todo o Estado brasileiro reconheçam a existência da prática de aborto em nosso país. Mas ao invés de perseguir e condenar as mulheres, é preciso que eles assumam seu papel no debate sobre as causas e apresentem políticas públicas para combatê-las”, afirmou Rejane Pitanga, presidente da CUT-DF. Ela lembrou que foi naquela mesma Casa que os parlamentares se recusaram a discutir o projeto de lei que descriminaliza o aborto.
O presidente da Câmara disse que pessoalmente é contra a instalação da CPI, que depende agora que os partidos indiquem seus membros para começar a funcionar. Chinaglia afirmou que irá realizar na próxima terça feira uma reunião com a bancada feminina no Congresso para discutir a questão. Estiveram presentes na reunião as deputadas Maria do Rosário (PT-RS), Luiza Erundina (PSB-SP) e Jô do PCdoB (MG).
Leia abaixo a íntegra da carta entregue ao presidente da Câmara.

Excelentíssimo Sr. Deputado Arlindo Chinaglia
Presidente da Câmara Federal

A notícia de que a Câmara Federal está prestes a instaurar uma “CPI do Aborto” nos causa surpresa e indignação.
Há poucos meses, na Comissão de Seguridade Social e Família desta Casa, os mesmos parlamentares que ora apresentam o requerimento para instauração desta CPI, furtaram-se em aprofundar o debate acerca do tema e orquestraram a votação que derrotou, naquela Comissão, o Projeto de Lei que propunha a descriminalização do aborto (PL 1.135/91). Já faz alguns meses também que a justiça do Mato Grosso do Sul vem investigando mais de 1.200 mulheres acusadas pela prática de aborto ilegal naquele estado.
Que esses fatos devam ser objeto de interesse e ação do Poder Legislativo, não resta dúvida.
Além das 400 mil mortes anuais e dos inúmeros atendimentos realizados pelo SUS em decorrência de abortos mal sucedidos, a criminalização das mulheres, que estão tendo suas vidas devassadas pela ação do Poder Judiciário, constituem sim base material para que o Estado Brasileiro realize uma profunda reflexão sobre o papel que deveria cumprir na vida dessas mulheres.
Poderíamos começar realizando um profundo diagnóstico dos sistemas de saúde pública, educação e previdência, para entender por que a maioria das mulheres brasileiras não tem condições de decidir ou planejar uma gravidez, e para avaliar até onde o Estado tem assumido sua cota de responsabilidade na reprodução da vida, para que as mulheres possam optar pela maternidade sem precisar abrir mão de outros projetos pessoais.
Poderíamos também aprofundar o debate sobre o necessário enfrentamento à desigualdade de gênero e à violência doméstica, que expõem as mulheres à gravidez indesejada.
E, principalmente, deveríamos retomar o princípio laico do Estado, para que o diagnóstico e a solução desse grave problema social não sejam contaminados por convicções morais ou religiosas.
É preciso sim que o Brasil reconheça a existência da prática de aborto em nosso país, mas ao invés de perseguir e condenar as mulheres, é preciso que questione as causas que vieram a configurar essa dura realidade e apresentar uma solução definitiva. A condenação das mulheres que praticaram aborto e o fechamento das clínicas clandestinas só causarão mais mortes.
A criminalização do aborto não é um fato novo na história da humanidade, mas uma constante que caminha junto com a opressão das mulheres, que além de sempre terem recebido tratamento desigual da sociedade, foram alijadas do direito de decidir sobre sua própria vida. Criminalizar a prática do aborto é uma forma de controlar a vida, o corpo e a sexualidade das mulheres.
A maternidade implica muitas mudanças no aspecto físico e emocional da gestante, e em seu projeto de vida naquele momento. Por isso, a gravidez não pode ser imposição, castigo ou obrigação; deve ser uma decisão da mulher.
Há tempos exigimos que as mulheres tenham atendimento integral à sua saúde. A interrupção de uma gravidez é uma circunstância altamente desconfortável e, muitas vezes traumática para as mulheres.
Defender a legalização do aborto não significa, portanto, que as mulheres pretendam recorrer à sua prática como método contraceptivo. Trata-se de combinar a legalização do aborto com a ampliação do acesso das mulheres à informação, aos métodos contraceptivos e de criar condições para que elas negociem o uso de preservativos com seus companheiros de forma tranqüila, o que, muitas vezes, não ocorre. A interrupção da gravidez indesejada deve ser o último recurso. Em diversos países onde houve a legalização, os números provam que os casos de aborto não aumentam por conta da situação de legalidade.
Estamos falando, aqui, de um mecanismo de direito de liberdade da mulher sobre seu próprio corpo. Nossa vida está em constante risco pelo fato fundamental de sermos mulheres. Trata-se de construir um mundo de igualdade, o que não é possível enquanto existir tantas mulheres trabalhadoras, desempregadas, pobres, negras, jovens morrendo ou sendo presas por não terem direito de decidir sobre seus próprios corpos e seu destino.
A criminalização de um assunto que levanta questões tão polêmicas leva a um tipo de autoritarismo e fundamentalismo que não fazem bem a uma sociedade democrática e pluralista. Enquanto o mundo discute a questão do aborto sob a ótica civilizatória e democrática, o Parlamento brasileiro discuti-lo sob a ótica criminal, através de uma CPI, seria um retrocesso inaceitável após 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e 20 anos de Constituição Cidadã no Brasil.
Por isso, nós, mulheres trabalhadoras, rechaçamos com veemência a proposta de instauração desta CPI e reafirmamos nosso compromisso de luta pela legalização do aborto, em defesa de uma vida mais digna e de um mundo mais justo para todas as mulheres.

São Paulo, 11 de dezembro de 2008

SECRETARIA NACIONAL SOBRE A MULHER TRABALHADORA DA CUT