Violência e corrupção na ditadura vêm à tona com onda pró-militar

Em 10 de maio, o site Opera Mundi divulgou o documento da CIA – encontrado por Matias Spektor, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas – revelando que o ditador Ernesto Geisel autorizou a manutenção da “política de execuções sumárias” iniciada por seu antecessor, Emilio Garrastazu Médici e coordenada por João Baptista Figueiredo, sucessor de Geisel. Cabia a Figueiredo decidir se um preso pelos órgãos de repressão do Estado era “perigoso” e deveria morrer.
Em 1º de junho, o jornal Folha de S. Paulo publicou um caso de corrupção envolvendo os governos dos generais Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974-1979). A revelação é parte das pesquisas do cientista político e historiador João Roberto Martins Filho, da Universidade Federal de São Carlos, que há mais de 30 anos pesquisa aspectos da ditadura militar.
Os documentos encontrados por Martins Filho na diplomacia britânica atestam que o governo brasileiro comprou seis fragatas superfaturadas pelo Reino Unido, e depois se recusou a receber a indenização – de 500 mil libras, o que hoje equivale a quase 3 milhões de libras, ou 15 milhões de reais – e de dar sequência nas investigações sobre o caso.
Não é tudo. Na segunda-feira 4, o jornal O Globo publicou um telegrama secreto enviado pela embaixada dos Estados Unidos no Brasil para o Departamento de Estado Americano em 1984 afirmando que casos de corrupção envolvendo o governo militar estariam abalando a confiança da população no regime local.
O documento faz parte dos 694 documentos enviados em um lote pelo governo do então presidente Barack Obama ao de Dilma Rousseff. Entre 2014 e 2015, três remessas foram enviadas à Comissão da Verdade, que investigou abusos de direitos humanos no período ditatorial.
A volta de militares atuando e falando publicamente sobre política, e o fato do pré-candidato Jair Bolsonaro (PSL) – defensor das forças armadas – estar bem avaliado nas pesquisas eleitorais, é um um dos principais motivos pelo interesse da grande imprensa pelo assunto no atual momento.
Os casos recentemente revelados podem ser apenas a ponta do iceberg da recôndita história da ditadura militar brasileira. “Vivemos um bom é período para os historiadores revelarem suas pesquisas, e para que povo brasileiro tenha mais informação sobre a ditadura militar no Brasil”, acredita o pesquisador.
CartaCapital: Professor, estamos vivendo uma onda da publicação de novos fatos sobre a ditadura brasileira. Por que o senhor acredita que o tema ganhou força recentemente?
João Roberto Martins Filho: De tempos em tempos a grande imprensa se volta para o tema da ditadura, seja porque o assunto é relevante para o leitor, seja porque há uma conjuntura em que a linha editorial precisa criticar a possibilidade de uma intervenção militar no Brasil. Acho que está acontecendo agora.
Neste momento tem a ver com os militares voltarem a falar publicamente sobre a conjunta política e intervir nela, além de termos um candidato à presidência (Jair Bolsonaro) que defende os militares, o que é uma combinação explosiva e faz com que alguns setores voltem a dar destaque para a ditadura.
CC: O que tem sido publicado recentemente pode ser apenas a ponta de um iceberg?
JRMF: De modo geral os historiadores têm muito documentos, mas não conseguem divulgar. E de modo geral há mais procura por documentos que estão em arquivos fora do País. Se tivéssemos acesso aos documentos que estão no Brasil, e se conseguíssemos furar esse traço da nossa cultura, os documentos gringos não teriam tanta relevância. Como pesquisador não consigo contar o lado brasileiro.
CC: O Estado Brasileiro não quer contar essa história?
JRMF: Os governos brasileiros estão sempre muito suscetíveis à argumentação do Itamaraty e das forças armadas de que os documentos têm de estar em sigilo. A história diplomática brasileira mantém em sigilo aspectos da Guerra do Paraguai, por exemplo. Então os historiadores têm de recorrer à documentação estrangeira. Foi só porque o governo Obama nos cedeu parte do arquivo que pudemos saber como agia a hierarquia militar de uma determinada época. Há muitas evidências que carecem de provas na nossa história.
Muita coisa ainda pode ser revelada porque a cerne da questão é que qualquer coisa que tenha a ver com segurança nacional é sufocada, e isso sempre pode nos levar a um regime ditatorial. Quanto mais coisa for escondida, mais impacto terá quando for revelada.
CC: Como o senhor avalia o documento que coloca o general Ernesto Geisel como figura importante da repressão?
JRMF: É fundamental saber sobre atuação do Geisel do subordinado João Baptista Figueiredo tinham pleno conhecimento das práticas de tortura e execução que ocorriam no País. O próprio historiador Elio Gaspari que se debruçou esse assunto não tinha tão claro que a tortura era autorizada pelo chefe da nação.
CC: Quais aspectos da ditadura militar o senhor considera mais relevante analisar desse período no Brasil?
JRMF: O comunismo era o que justificava a existência das forças armadas na política da América Latina. Os militares ficaram muito incomodados quando o comunismo perdeu força e os Estados Unidos ascenderam como potência única. Foi nesse momento que eles começam a defender, por exemplo, a floresta amazônica e o Brasil das invasões do primeiro mundo. Outro aspecto, a partir daí, é a influência do pensamento francês na ideologia das forças armadas, ainda que a doutrina de segurança nacional tenha vindo dos norte americanos.
CC: Qual o caminho dos historiadores até o que ainda não se conseguiu contar sobre esse período?
JRMF: Estudando as influências externas sobre os brasileiros é que conseguimos desvendar coisas novas. Na relação com a Grã-Betanha foi onde encontrei o primeiro documento oficial que comprava que os ingleses colaboraram para a construção do primeiro centro de tortura brasileiro, em 1971 do DOI-Codi no Rio de Janeiro. O Elio Gaspari já havia relatado essa história, mas não haviam provas.
CC: O senhor acredita que a Comissão da Verdade conseguiu ter relevância?
JRMF: A comissão caiu no esquecimento. Pouca gente leu o relatório, que é muito longo, e a imprensa noticiou, mas não se aprofundou pelo que ali está revelado. Acabou provocando pouco o debate, e tendo uma atuação moderada perto desses documentos estrangeiros, por exemplo. Ela atuou nos seus limites. O problema maior é que não existe no Brasil uma cultura de valorizar a história das ditaduras. Com isso de tempos em tempos os brasileiros voltam a pedir um governo militar porque eles não conhecem a verdadeira história.
CC: Existem muitas dificuldades para que a história seja recontada…
JRMF: Se continuar a tendência de divulgar documentos pela imprensa e o interesse da mídia vão aparecer mais coisas. Isso tá intimamente ligado à conjuntura política atual, que é uma conjuntura pré-eleitoral, e há uma parte da classe dominante que já deixou claro que estão interessados na eleição do Bolsonaro. Tampouco tem um candidato favorito, então é período bom para os historiadores revelarem suas pesquisas, e para que povo brasileiro tenha mais informação sobre a ditadura militar no Brasil.
(da Carta Capital)