ProUni, dez anos depois

Envolto em polêmicas, críticas e elogios desde sua criação, o Programa Universidade Para Todos (ProUni) completa dez anos com o mérito indiscutível de ter mudado o panorama do Ensino Superior no Brasil. Um contingente de 1,6 milhão de jovens pobres e egressos da escola pública chegou ao mundo universitário graças às bolsas ofertadas. O preço de dar o acesso a essa parcela da população antes excluída foi, porém, uma renúncia fiscal por parte do governo que beneficiou instituições privadas, lucrativas, muitas sem compromisso com pesquisa ou com a qualidade do ensino ofertado.
A lei do ProUni (Lei nº 11.096, de 2005) determina que, para aderir ao programa, a instituição de ensino privada deve oferecer, no mínimo, uma bolsa integral para cada 10,7 estudantes pagantes matriculados no ano letivo anterior. Há, também, a opção de dar uma bolsa integral para cada 22 estudantes, complementadas com bolsas parciais com valor correspondente a 8,5% da receita anual da empresa. Podem concorrer às bolsas integrais estudantes que possuam renda familiar bruta por pessoa de, no máximo, 1,5 salário mínimo (1.182 reais). Já as bolsas parciais, de 50%, são destinadas a alunos com renda de até três salários mínimos (2.364 reais).
O critério de renda, porém, não é o único considerado. Conseguir uma das bolsas depende também de uma boa nota no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Apesar do número expressivo de bolsas, a concorrência pode ser dura.
Em Pernambuco, por exemplo, mais de 75% dos inscritos no Enem em 2014 tinham condições socioeconômicas para se candidatar a uma bolsa integral. Muitos dos estudantes com notas baixas nem chegam a se inscrever no programa e, ainda assim, há cursos cuja concorrência ultrapassa 20 candidatos por vaga.
Para quem tem condições para pagar a mensalidade em faculdade particular, a concorrência costuma ser baixa ou mesmo inexistente. Isso criou no Brasil um cenário único em termos de Ensino Superior, avalia o pesquisador Ruy de Deus e Mello Neto, que fez seus mestrado e doutorado sobre os alunos do ProUni. “É diferente de outras políticas afirmativas, porque você não está dando acesso a um lugar cujo acesso é difícil para todos, onde só entram os melhores. Para quem tem dinheiro, não há barreira. Então, é fácil para quem pode pagar, mas para quem não pode, há hiperseleção”, explica.
Essa característica única do ProUni fez surgir também um estudante ímpar: o bom aluno que se dedica ao extremo para se diferenciar ainda mais. “Eles passaram por um processo seletivo rigoroso: logo de partida são os melhores da sala. Mas nos primeiros anos de curso percebem que não adianta ser um bom aluno se você não tiver bons contatos, por exemplo. Então, eles têm de adotar estratégias para potencializar suas oportunidades, como estudar mais horas, participar mais de atividades voluntárias, sentar nas primeiras filas, se aproximar mais dos professores”, afirma.
Não é à toa que as maiores notas gerais médias do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), que avalia universitários, são dos estudantes com bolsa integral do ProUni. Os resultados dos Prounistas (49,35 acertos) são superiores à média nacional (43,19) e também à dos alunos de faculdades públicas (47,87), de acordo com um levantamento da Associação Brasileira para o Desenvolvimento da Educação Superior.
A pesquisa de doutorado de Mello Neto mostrou que os bolsistas logo percebem, nas suas perspectivas profissionais, o fenômeno descrito pelo sociológo francês Pierre Bourdieu como lei do rendimento diferencial do diploma. Segundo Bourdieu, mesmo com um diploma igual, jovens de classes sociais mais baixas tendem a obter remuneração menor do que seus colegas vindos das classes mais altas. “Nossos bolsistas, apesar do melhor desempenho, continuam sendo os mais pobres, os que moram mais longe, os que não têm dinheiro para participar das festas. Eles estão atrás até para competir por estágios, porque muitas vezes é preciso ter carro, disponibilidade de tempo, possibilidade de fazer um estágio sem remuneração”, constatou Mello Neto.
Custo pessoal
Para superar as diferenças sociais, culturais e simbólicas que os deixam em desvantagem, os Prounistas se esforçam dobrado. Essas estratégias para se destacar, porém, representam um grande sacrifício pessoal. Oriunda da primeira turma do ProUni, Elisângela Fernandes teve de trabalhar e cruzar a cidade de São Paulo durante os quatro anos do curso de jornalismo. “Quando consegui a transferência para o noturno, passei a fazer dois estágios, um de manhã e outro à tarde”, lembra-se. Sem conhecidos que pudessem indicá-la a vagas, ambos os estágios eram em instituições públicas. “Quando você tem de trabalhar, perde parte da vida no ambiente universitário, que é muito rica. Foi muito sacrifício. Os bolsista se saem bem, mas a um custo pessoal muito alto”, acredita.
Esforço e determinação foram necessários para Elisângela mesmo antes de da bolsa. Durante seu último ano do Ensino Médio, em 2000, ela entrou em um cursinho popular. “Foi então que eu descobri que ser bom estudante de escola pública não adiantava em nada para entrar na faculdade. A maior parte do conteúdo que seria para revisão eu jamais tinha visto”, conta.
Naquele ano, não conseguiu entrar em uma universidade pública – ainda não havia o ProUni – e acabou fazendo um curso técnico em contabilidade. Assim que arrumou um emprego, matriculou-se em um cursinho particular noturno. “Queria ser jornalista e me formar em uma boa faculdade. Faria dez anos de cursinho se fosse necessário”, afirma. Graças ao ProUni, a espera não precisou ser tão longa. Elisângela foi a primeira de sua família a cursar o nível superior. Hoje, seu irmão mais novo cursa uma faculdade também com bolsa do programa.
Embora tenha se beneficiado, Elisângela não deixa de tecer críticas ao ProUni. “Reconheço que é uma grande política de inclusão, de democratização do ensino superior. Mas ainda acho que é paliativa, que precisaria haver uma expansão nas vagas públicas. Qual é a universidade que o estudante pobre tem acesso? Uma universidade com pesquisa, com moradia?”, questiona.
O empenho pessoal de Elisângela reflete um esforço mais antigo das camadas populares pelo acesso ao ensino. Sérgio José Custódio, coordenador nacional Movimento dos Sem Universidade (MSU), ressalta que o ProUni nasceu da sociedade civil e do embate da periferia pelo direito a cursar uma faculdade. “A luta pelo acesso ao Ensino Superior é uma atualização da luta dos séculos XIX e XX contra o analfabetismo”, disse. Assim, ele defende que o programa não foi um prêmio dado por um governo, mas uma vitória do povo. “Não foi uma princesa, o Papai Noel ou alguém superior que nos deu de presente. Foi tudo conquistado.”
Embora reconheça as contradições do programa – que ele prefere chamar de “sistema público de bolsa de estudos” que se dá dentro de instituições particulares –, Custódio diz que ele abriu portas para mais avanços. “Para os críticos, o ProUni é carne de segunda, mas nós, os pretos e os pobres, comemos pelas beiradas. Pelo seu efeito de massa, passamos a sentir o gosto da universidade – e a querer também o filé”, afirmou. Assim, o programa foi um primeiro passo, responsável por levar a democratização do acesso ao Ensino Superior para agenda da sociedade brasileira. “Se no mundo privado o muro era alto, no público era maior ainda. O ProUni nos deu atributos políticos para insistir numa luta que durou dez anos, que foi a lei da cotas. A lei de cotas não estaria aqui sem o ProUni”, afirmou. Portanto, ele é visto como uma conquista que possibilitou outras conquistas. “Na leitura da história do Brasil, é uma evolução”, avalia.
Custo e ganho social
Ao financiar o setor privado por meio da renúncia fiscal, o dinheiro público acaba sendo aplicado segundo a lógica mercantil vigente na educação particular. Nesses dez anos, os três cursos com mais bolsas do ProUni foram Pedagogia, Administração e Direito, os mesmos com mais matrículas no País, de acordo com o último Censo da Educação Superior. São cursos mais baratos, por não exigir laboratórios. “Cursos mais caros estão concentrados nas instituições públicas. Há dez anos você praticamente não encontrava cursos de Medicina particular fora do Sudeste. Acho que o governo tinha de direcionar vagas para cursos de maior necessidade”, opina Ruy de Deus e Mello Neto.
Há também quem questione se é ético beneficiar com isenção fiscal empresas lucrativas, que abrem capital na Bolsa e fazem fusões. “Se juntar o ProUni com o Fies, grande porcentagem dos alunos das faculdades particulares é, na verdade, paga pelo governo. Hoje, a educação é um negócio, que sai barato. Claro que o setor privado tem seu papel no Ensino Superior, mas o lucro não deve ser a única entrega por parte dele”, afirmou José Marcelino Rezende Pinto, presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação e professor do Departamento de Educação da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto.
Embora tenha suas críticas, ele reconhece que o ProUni também serviu para moralizar a relação entre governo e as instituições de ensino não lucrativas. “Existem duas categorias de particulares, as lucrativas e não lucrativas. Historicamente, as não lucrativas já recebiam uma série de isenções e ofereciam alguma espécie de contrapartida, como bolsas. O ProUni veio para deixar a contrapartida mais clara”, avalia.
Para Rezende Pinto, o governo deveria buscar outras saídas para expandir a oferta de Ensino Superior sem depender tanto do setor privado. “Claro que o custo por aluno na universidade pública é mais alto. Mas se você pensar que muitas bolsas do ProUni são noturnas, existe de forma geral uma ociosidade das universidade públicas à noite”, constata. Usar esse potencial, diz, não seria tão mais caro. “Outra saída é utilizar o modelo dos Institutos Federais, sem o foco em pesquisa. Levar o modelo universitário público atual para massas será muito difícil”, sugere.
O Brasil hoje tem uma taxa de matrícula bruta (alunos de 18 a 24 anos) no ensino superior de 32%. “Na Argentina chega a 50%, nos países ricos vai de 70% a 80%”, compara Rezende Pinto. A meta do Plano Nacional de Educação (PNE) é chegar a 50% em 2024.
O sociólogo Lindomar Boneti, professor na Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), ressalta que o fato de beneficiar o setor privado não tira os méritos do programa. “Ele aumentou o acesso de uma população historicamente excluída. Todos os países do mundo tem algum tipo de política afirmativa”, disse. Para Boneti, a diversificação do público do Superior beneficia o ensino de forma geral. “Como o grupo é menos homegêneo, há mais diferenças de experiências; essas diferenças constroem mais trocas”. É bom também para toda a sociedade, ao trazer novos conceitos sobre a pobreza e a raça, acredita: “Derruba a ideia de quem é pobre e o negro são menos esforçados”.
Sem perder de vista a crítica de que o ProUni reforça as tendências de privatização, com concentração e condições mais precárias de trabalho para o professor, Bárbara Lopes, responsável pela área de Juventude da Ação Educativa, vê com uma vantagem a aproximação entre a faculdade e os alunos da escola pública. Diferentemente da decepção de Elisângela ao perceber no ano 2000 que não poderia cursar uma universidade, hoje é mais fácil que um bom estudante de escola pública chegue ao nível superior. “É um estímulo e também responde a uma demanda que já existia. Quando se ampliou o acesso ao Ensino Médio, naturalmente passamos a ter mais gente apta e desejando o Superior”, afirmou.