PROFESSOR É ASSALTADO NA FRENTE DA ESCOLA

Fazer experiência do crucificado é também e, sobretudo, um encontro entre crucificados. Ao ver um menino com seus 13 anos, sandálias e bermudas surradas, uma bicicleta sucateada e com uma arma na mão, me parecia mais um dos crucificados pela brutal desigualdade socioeconômica do que meramente um assaltante com a intenção de faturar alguma coisa. Foi desse encontro, ao mesmo tempo traumático e compreensivo, que tive uma ideia: os crucificados pelo sistema tendem a ser porta-vozes de si mesmos, ainda que mergulhados (as) na ausência do que consideramos “valor para a vida” e destituídos da sublime arte da autonomia. O que é valor em meio às cinzas que evaporam no ar feito carne e espírito.
Essa cena tende a empurrar as mentes para uma ideia que privilegia a morte. Sugere-se a pena de morte, a prisão perpétua e outras penalidades que remetam à tortura. Escolher instrumentos que matam com o pretexto de defender a vida é pura incoerência. Não se defende a vida desejando a morte, porque toda a vida humana é sagrada, ainda que os sistemas políticos e a produção econômica não a entendam como tal. É preciso nos perguntar: quem de fato defende a vida e quem produz esquemas que engendram a morte? Herbert de Souza (Betinho) dizia com precisão e realismo que “a alma da fome é política”. Pode-se dizer também sem perda de sentido que a alma da violência é política, da mesma forma que os crucificados são vítimas e vitimadores, a depender da situação.
Ponto também que merece lembrar é que o mesmo modo de produção econômico perverso e a organização política centrada na corrupção que fabricam “bandidos” são os mesmos que punem de alguma forma. Veja que Robert K. Merton ajuda a entender não um episódio, mas acontecimentos renitentes, ao considerar que a anomia se deve ao fato de as pessoas não conseguirem atingir as metas estabelecidas pela sociedade. Nesta perspectiva, o desvio social tem a ver com o jeito de como a sociedade está organizada política e economicamente.
O grito de muitos crucificados (as), às vezes abafado pelo poder do Estado que pune e silenciado por falas e lugares desumanizantes, ecoa sem pudor e com a força do instrumento vil, porque o discurso do ser reprimido, excluso, sem terno e gravata, sem casa digna e comida adequada, descuidado e rebotalho dos projetos autoritários irrompe na história na forma de “violência”, porque quem produziu o monstro tem a mesma força de sentenciar e até de exterminar, mas jamais de controlá-lo.
Na medida em que vamos estabelecendo encontros com os crucificados (as), que também são algozes na grande selva capitalista, nesta mesma proporção nos sentimos impotentes diante de situações adversas. O abandono é um fator importante para se entender as razões da violência. Ainda que não seja tudo, explica um pouco do que se vive nas sociedades humanas em que uns são protegidos, têm casa própria, tem escola murada, segurança, vestem roupas bonitas e até desviam recursos públicos para fins particulares e outros são abandonados, marginalizados e excluídos.
Experimenta-se diferentes faces de abandono no Distrito Federal, fruto do caos que se instaurou no plano ético-político que interfere nas relações intersubjetivas. Quais os referenciais críveis e autênticos as crianças, adolescentes e jovens têm para fundar as suas identidades? Seguramente as autoridades políticas vêm revelando uma ausência de pudor no tratamento do poder público, salvo raríssimas exceções. Para onde vamos com essa situação de abandono de nossas escolas públicas, com a insegurança no trabalho e tantas mazelas que afligem o educador (a) no ambiente de trabalho?
É nesse contexto de abandono e com base nesses interrogações que se encontra com o crucificado que crucifica. É no aqui e no agora da realidade do Centro de Ensino Fundamental Myriam Ervilha, explicitamente no dia 08 de março de 2010, às 22:30 que subitamente encontrei com o crucificado, de tal maneira que, na ânsia pela satisfação do prazer, não se sabe qual, mas se deduz que seja o de sobreviver, apontou uma arma e disse ser um “assalto”. Foi neste momento de sensibilidade e de dor, como em tantos de minha vida, que compreendi que nem sempre o encontro com o crucificado remete a uma experiência puramente sacrossanta, porque no chão da história humana não há separação rígida entre a cruz imposta, o crucificado, a reprodução da cruz e a páscoa-libertação. Denunciar quem? Fazer ocorrência de quem? Estou seguro de que a denúncia tem que ser feita. Precisa-se fazer ocorrência, mas o objeto deve ser a NEGLIGÊNCIA DO ESTADO, A NEGLIGÊNCIA DO PODER PÚBLICO.
Descobri que a memória de um lep top é muito pequena diante da mente humana, porque nós humanos fazemos memória histórica, enquanto a máquina armazena o que queremos. O menino armado, talvez uma criança, se quisermos, levou o meu instrumento de trabalho, mas deixou-nos uma grande lição: o crucificado precisou do lep top da mesma forma que precisamos de maior compreensão, compaixão, equidade, misericórdia e cuidado…
Reiterei a minha convicção a partir da experiência do absurdo de que não se nega o sentido da páscoa no caminho do calvário, no getsêmani ou com a espada no peito. Aprendi também que o instrumento vil apontado para a minha cabeça não teria nenhum efeito sem o seu articulador (a) que pode ser qualquer pessoa, pois a violência assume diferentes feições, inclusive a simbólica. Enfim, resgatei na experiência de negação da vida o sentido mais profundo do viver. Compreendi que nesta estrada surpreendente chamada vida todos somos caminheros (as), por isso podemos ter a certeza que os sinos tocam por mim, por ti e por todos…
Por Cristino Cesário Rocha