Precisamos parar com a nossa cegueira sistêmica

Vamos, primeiro, alimentar nosso povo, para depois de vencida a etapa da sobrevivência sanitária, prosseguirmos na garantia do acesso universal à educação

 

Muito louvável a iniciativa do GDF de não suspender as atividades curriculares enquanto passamos por este crítico momento. Entretanto, precisamos parar com a nossa cegueira sistêmica. De boas iniciativas, daquelas tomadas por espasmos criativos e sem o devido aprofundamento baseado em experiências socioeducativas, o inferno encontra-se cheio.

A determinação de aprendizagem via conteúdo online, anunciada pela Secretaria de Educação durante a emergência do novo Coronavírus, apresenta em si uma enorme contradição – continua a educação mas retira do processo aqueles que não dispõem de condições sociais para tal.

Até hoje, em pleno 2020, o governo é incapaz de gerir a Educação de forma satisfatória para todos os seus alunos. Ano após ano, inúmeras matérias da imprensa relatam dificuldades já conhecidas de toda a população: Matrículas que não atendem à demanda, infraestrutura precária, má distribuição de materiais escolares e pedagógicos, dentre tantas outras já conhecidas de todos nós.

Ressalto, ainda, a distorção entre idade-série no Distrito Federal, em que alunos com 2 anos de atraso é de aproximadamente 25% nos anos finais do ensino fundamental e chega a 32% no primeiro ano do ensino médio, segundo dados da Codeplan (Companhia de Planejamento do Distrito Federal de 2018). Problemas estes ainda sem solução enérgica e que, por hora, encontram-se minimizados frente ao mais urgente que passa nossa sociedade.

No âmbito da Ciência e da Tecnologia, projetos robustos e importantes, como o de implantação acesso wi-fi gratuito em espaços públicos, bem como a implantação de redes de internet nas próprias escolas, são iniciativas ainda muito distantes da realidade brasiliense – e estamos falando de um dos maiores IDHs do País.

Vi uma notícia até bonita, talvez romântica, de que agora a rede pública faria aulas online paras crianças durante o confinamento. Isso, vale ressaltar, já é uma dinâmica comum nas escolas particulares. Então, pergunto a você, caro leitor, onde se encontra o equívoco?

Se consideramos apenas o aspecto educativo, em separado do sociológico, não conseguimos depreender o que tal ideia, bonitinha porém ordinária, parece propor. Estamos falando aqui de crianças que, muitas vezes, não têm o que comer em suas casas.

Temos, ao menos, 70 mil famílias que, segundo o mesmo governo que agora decreta a modernização compulsória do sistema educativo do DF, receberão bolsas para matar a fome durante a suspensão das atividades escolares – decreto este publicado no dia 15 de março.

Pois bem, apresentado o cenário, proponho uma reflexão nem tão profunda e de resposta bastante óbvia: Como imaginamos que estas crianças tenham condição de assistir videoaulas pela internet? Com cerca de 35 mil famílias em situação de miséria absoluta no nosso quadradinho, me parece de uma ingenuidade sem tamanho, além de uma falta de prioridades de gestão, propor tal ação nesta altura do campeonato.

Vamos, primeiro, alimentar nosso povo, para depois de vencida a etapa da sobrevivência sanitária, prosseguirmos na garantia do acesso universal à educação, necessidade primordial dentre tantas outras igualmente urgentes.

A manutenção do calendário de aulas mediante implementação do modelo virtual acaba por trazer à tona mais um abismo social, o que agora se encontra no mundo digital. Apesar de sabermos, também, que Brasília – dentre as cidades brasileiras, é a que conta com o maior acesso à internet, com 85,3% (dado do IBGE de 2016), o grande uso se dá pela troca de mensagens em aplicativos, cuja necessidade de pacote de dados é quase irrelevante.

A Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios 2018 (Codeplan) mostra que não mais de 68% dos domicílios têm acesso à internet por banda larga por assinatura, bem como apenas uma minoria possui computadores ou tablets, dispositivos ideais para o ensino.

O que farão estes alunos quando, vencidas as dificuldades momentâneas, retornarem ao modelo tradicional de ensino? Se já havia inúmeras condicionantes que determinavam a desigualdade entre camadas sociais baseadas na educação, sem dúvida, neste nosso tempo, a falta de acesso ao virtual implica na criação de mais um indicativo: Os inviabilizados educacionalmente pelos modelos digitais.

Para quem ainda sente fome, tal sugestão é um acinte. Arrisco a dizer que a referida medida deve aprofundar ainda mais as desigualdades entre os setores público e privado e impactar diretamente a defasagem idade-série na rede pública.

Nossos gestores precisam cair na real. O mundo não se resume à nossa realidade de classe média, confortavelmente sobrevivendo aos impactos do vírus. Existe um abismo social digital que não enxergamos porque ele não adentra a bolha de nossas redes sociais.

Pela jornalista Rayssa Tomaz