Pela democratização de acesso às margens do Lago Paranoá

Em março deste ano acompanhamos a desocupação do Sol Nascente, na Ceilândia, área carente de infraestrutra básica na periferia de Brasília.  Famílias pobres viram suas casas, mal acabadas e construídas a muito custo, serem derrubadas sem a menor possibilidade de diálogo.
Agora, nos últimos dias, a mídia vem divulgando massivamente a desocupação da margem do Lago Paranoá, área também pública, mas invadida por mansões luxuosas de propriedade da elite brasiliense. Diferentemente do que ocorreu no Sol Nascente, na margem do Lago houve diálogo com a associação dos moradores. Tomou lugar na mídia o apelo deles pela manutenção dos privilégios, justificada por um suposto merecimento.
O tratamento diferenciado faz pensar como cercas, pieres, quadras de esportes e até heliportos são tão mais importantes que a única moradia mal acabada de algumas pessoas. O que faz pensar que um rico morador do Lago Sul trabalhou mais que qualquer outro morador de Brasília e tem mais direito de acesso a esse espaço que qualquer outro? O que faz pensar que uma pessoa tem mais direito de ter um espaço privilegiado à beira lago do que alguém ter direito à moradia?
Importante ressaltar, mais uma vez, que a desocupação das margens do lago que vimos nos últimos dias está longe de ser como as realizadas nas áreas da periferia de Brasília. Primeiro porque o GDF realiza essa ação não por empenho ou por responsabilidade socioambiental do governo, mas sim por determinação do Ministério Público. Diferentemente do que faz em áreas de população mais pobre, o Estado teve a preocupação de chamar a associação de moradores da beira do Lago para ouvir suas reivindicações sobre um processo que já dura 10 anos, coisa que deveria ser feita com maior cuidado também nas áreas mais vulneráveis do DF.
Depois, em segundo lugar, porque houve a tentativa de alteração da legislação. Numa clara resposta ao financiamento das campanhas eleitorais, boa parte da Câmara Legislativa do DF esteve nos últimos dias tentado alterar a legislação ambiental vigente para salvaguardar o interesse de um grupo de maior poder econômico e político. Tentou-se alterar a exigência de uma margem livre de 30 metros para 5 metros, usando da justificativa de que o lago é artificial.
Ora, a necessidade de uma margem livre no mínimo de 30 metros vai além do interesse deste ou daquele grupo. É uma necessidade ambiental, de preservação do lago, ainda que artificial. Não é apenas o fechamento da barragem que abastece o Lago Paranoá.  Sua preservação depende da chuva também. Nos últimos anos o que vemos são construções à beira lago alterando o ciclo hídrico, fazendo com que a água da chuva escoe sem o filtro do solo, arrastando para dentro do lago folhas e todo tipo de lixo ou entulho, provocando assoreamento. Já é visível a redução do lago em virtude dessa ocupação irregular.
Combate à segregação
Entretanto, a discussão vai além da diferença entre as formas utilizadas pelo Estado para desocupação de áreas públicas e de preservação ambiental: passa pela possibilidade de acesso e uso destas áreas à população do Distrito Federal.
Brasília posssui uma estrutura arquitetônica e urbanística de grandes espaços livres, porém de difícil acesso, somente feito por carro ou ônibus. E quando analisamos o preço das passagens, a forma como é organizado o nosso transporte público, constatamos a difícil mobilidade e de acesso a bens públicos pela população mais pobre. Aí fica gritante a segregação social, espacial e urbana.
Essa questão está inserida da mesma forma em outros grandes debates em nossa sociedade. A discussão sobre a lei do silêncio, por exemplo, vai além da questão da tranquilidade e da ausência de barulho. Trata-se de determinar quem ou que grupo social pode ocupar e circular em determinados espaços.
Se conseguirmos de fato avançar na utilização do espaço à beira do Lago Paranoá, possibilitando que toda população de Brasília, especialmente os moradores distantes, tenha acesso democraticamente às margens que são de todos, como se comportariam os moradores daquela região que entendem que merecem aquele privilégio?
A indagação nos remete à discussão ocorrida, por exemplo, para a construção da linha do metrô até o bairro Jardins em São Paulo. A comunidade de altísssimo poder aquisitivo dessa área considerava negativa a obra, pois atrairia população de menor renda, a qual  chama eufemisticamente de ‘gente diferenciada’.
Os moradores do Lago Sul estariam prontos para conviver com ‘gente diferenciada’  próxima às suas casas? Ou se comportariam como moradores dos Jardins ou como os da Asa Norte tem tratado o calçadão a beira do lago, tentando cercá-lo, impedindo a utilização daquele espaço para atividades culturais, sob a justificativa da lei do silêncio?
Pelo ardor com que clamam por medidas e investimentos públicos de reforço à segurança policial, é possível que fizessem como um grupo de moradores da Asa Sul e do Sudoeste. Recentemente, eles se mobilizaram contra a construção de uma creche e de uma escola, argumentando que aquelas áreas deveriam ser destinadas da forma que bem entendessem os residentes próximos dos espaços.  Esses moradores comportaram-se como se a área pública devesse ser privativa de determinado grupo, iu seja, deles.
Diante da abominável segregação, que se reflete de forma cruel e injusta na ocupação espacial, a CUT Brasília entende ser imprescindível a discussão ampla, envolvendo todos os movimentos sociais e as instituições governamentais, sobre  formas de democratização de acesso ao nosso espaço público, pensando na destinação dos espaços de acordo com os interesses da totalidade da população e na mobilidade urbana que assegure o acesso ao bem público.
* Vanessa Sobreira Pereira é secretária do Meio Ambiente da CUT Brasília e diretora do Sindicato dos Bancários de Brasília