Participação social: nenhum passo atrás
Há exatamente 78 anos eram instituídos pela Lei nº 378 de 13/01/1937 a 1ª Conferência Nacional de Saúde (1ª CNS) e o Conselho Nacional de Saúde, em ato do então Presidente da República, Getúlio Vargas. Quatro anos depois, em 1941, foi convocada e organizada a 1ª CNS sob a coordenação do Ministério da Educação e Saúde.
Importante ressaltar que o formato da 1ª Conferência Nacional de Saúde difere substancialmente das práticas conferenciais que conhecemos hoje, sobretudo porque os debates e resoluções ficaram restritos ao governo federal e governos estaduais, sem a participação direta da sociedade civil, assumindo assim um caráter estritamente técnico e não de promoção da participação popular.
Entretanto, esta experiência assinala o início da concatenação que colocará a participação da sociedade civil no centro das discussões acerca da elaboração e acompanhamento de políticas públicas.
Quanto ao surgimento dos conselhos, a introdução deste instrumento na estrutura da administração pública ocorreu na área de educação, em 1911, com o Decreto nº 8.659 que criou o Conselho Superior de Ensino. Este modelo é o ponto de partida para a constituição dos conselhos nacionais de políticas públicas como os conhecemos hoje, ainda que não possa se confundir com os mesmos.
O resgate histórico da participação popular no Brasil se reveste de uma riqueza e de uma complexidade política e social imprescindíveis à compreensão dos processos participativos que se desenvolvem na atualidade, demandando estudos, formulações e práticas para o aperfeiçoamento de seus mecanismos e instâncias.
Neste sentido, a Secretaria-Geral da Presidência da República (SG-PR) desde 2003 se empenha em desenvolver ações de acompanhamento e articulação entre os diversos processos participativos, bem como de sistematização de seus resultados. O saldo de tais esforços se materializa na institucionalização da Política Nacional de Participação Social (Decreto 8.243/2013) e, sobretudo, no crescente protagonismo da sociedade civil no âmbito dos conselhos e das conferências nacionais.
Atualmente a SG-PR acompanha e se relaciona com 35 conselhos nacionais de políticas públicas e cinco comissões nacionais que atuam nos marcos da Política Nacional de Participação Social, principalmente no que se refere à sua composição, por apresentarem uma significativa participação da sociedade civil. Assim, temos observado o aumento do número de conselhos de políticas públicas, de conferências nacionais e temáticas abordadas, conforme dados apresentados a seguir.
De 1941 a 2014 foram realizadas 144 conferências nacionais, das quais 103 ocorreram entre 2003 e 2014 (destaque-se que mais de 70% do total de conferências nacionais ocorreram nos últimos 12 anos), abrangendo 45 áreas setoriais em níveis municipal, regional, estadual e nacional e mobilizando cerca de oito milhões de pessoas no debate de propostas para as políticas públicas.
Podemos destacar, ao longo das décadas, processos conferenciais emblemáticos que influenciaram a vida das pessoas, como a 8ª Conferência de Saúde, realizada em 1986 e presidida pelo professor Sérgio Arouca, um dos líderes e grandes entusiastas da Reforma Sanitária da década de 1980. A 8ª CNS foi marcada pela intensa participação da sociedade civil que impulsionou a reforma sanitária e as bases do Sistema Único de Saúde (SUS), consolidado na Constituição de 1988, garantindo assim o acesso à saúde como direito social universal.
Na seguridade social, outra conquista substancial ocorre na 4ª Conferência Nacional de Assistência Social, em 2003, que criou o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que tenciona viabilizar um projeto de universalização dos direitos à seguridade pública na forma de uma política de assistência social nacional.
As conferências nacionais são espaços de formulação de políticas, mas também de elaboração de diretrizes e formas de assegurar e efetivar políticas sociais já previstas em Lei. Este é o caso das cinco Conferências das Cidades, que colocaram na agenda pública e política questões referentes à reforma urbana que sempre foram postergadas ou tratadas apenas no âmbito local.
Estes processos conferenciais são fruto da mobilização dos movimentos nacionais de reforma urbana para a implementação da Lei 10.257 de junho de 2001 denominada “Estatuto da Cidade” que estabelece normas de ordem pública e interesse social e que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.
Outro exemplo são as nove Conferências Nacionais dos Direitos da Criança e Adolescente que têm ocorrido a cada dois anos desde 1995. Coordenadas pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente (Conanda), estas conferências, além de promover inovações metodológicas e temáticas, discutem e aprovam propostas no sentido de garantir, aperfeiçoar e implementar integralmente o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) que regulamenta o artigo 227 da Constituição Federal.
É indiscutível o amadurecimento político e o crescente nível de mobilização de segmentos sociais historicamente excluídos e invisibilizados do processo político-participativo, que progressivamente assumem, a partir dos últimos anos, o saldo positivo do protagonismo das suas lutas por meio da organização e participação na elaboração e controle de políticas públicas, tendo nos conselhos e conferências nacionais espaço privilegiado para o debate de suas principais pautas.
Nesta esfera podemos enumerar diversos exemplos, mas alguns se destacam pela profunda dimensão de exclusões e desigualdades ensejadas e reproduzidas em prejuízo de inúmeros grupos (as minorias quantitativas e qualitativas), como as mulheres, que caminham rumo a 4ª Conferência Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres, sob a organização de seu Conselho Nacional.
O Conselho Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial é uma conquista de décadas de lutas dos movimentos que promovem a igualdade racial, encontrando nas três conferências nacionais realizadas desde 2003 a concretização de valorosas vitórias.
Outro exemplo pertinente é o da população LGBT, que não dispunha de canais de diálogo diretos com o governo e que em 2015 realizará a sua 3ª Conferência Nacional sob a coordenação do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT).
Nos últimos anos, agendas polêmicas para alguns, temas áridos para outros, tornaram-se matérias centrais de diversas conferências nacionais. O exercício do direito de participar empoderou a população brasileira, e nada escapa ao seu olhar crítico e sugestivo. A sociedade democrática moderna impõe a necessidade de uma revisão dialética para a interpretação da realidade, ante as novas e explícitas contradições promovidas pelo desenvolvimento tecnológico-científico.
A ampliação da participação e as inovações metodológicas proporcionaram o debate de temas inéditos em nosso país, com a realização das seguintes conferências nacionais: de Políticas Públicas de Juventude; dos Direitos da Pessoa com Deficiência; dos Direitos da Pessoa Idosa; de Aquicultura e Pesca; do Meio Ambiente; de Desenvolvimento Rural Sustentável; de Economia Solidária; do Esporte; de Segurança Pública; de Cultura; de Saúde Ambiental; de Comunicação; de Defesa Civil; de Educação; sobre Transparência e Controle Social; de Emprego e Trabalho Decente; de Desenvolvimento Regional; sobre Migrações e Refúgio.
Potencializar o impacto destes espaços – conselhos e conferências nacionais de políticas públicas – é um desafio permanente e que prescinde dos princípios, valores e práticas da educação popular em sentido stricto, de forma a balizar e empoderar os indivíduos e entidades que ocupam os espaços dos conselhos nacionais, bem como a sensibilizar e mobilizar a sociedade civil como um todo de forma a consolidar entre nós a lógica de que a participação social na esfera das políticas públicas é um direito, reafirmando o princípio de que tais espaços estão abertos e aptos a receber todo/a e qualquer cidadão/ã brasileiro/a que tenha interesse em contribuir para os diferentes debates relacionados a inúmeras áreas de intervenção das políticas públicas ora em curso.
Há que se refletir acerca de um paradoxo que envolve o tema: diante da longa trajetória dos mecanismos de participação social no âmbito das políticas públicas no Brasil, porque este debate nos parece tão “novo” e porque carecemos tanto de informações sobre o as conferências nacionais?
A resposta está no cerne das eventuais polêmicas que contornam a PNPS (Política Nacional de Participação Social): em que pese a construção histórica e processual da política de participação social – não sem luta por parte da sociedade civil – são os últimos 12 anos de governo que irão consolidar e promover a popularização com institucionalização destas esferas.
Neste cenário, são inquestionáveis os méritos do agora ex-ministro Gilberto Carvalho à frente da SG-PR, que deu continuidade ao trabalho desenvolvido por Luiz Dulci durante sua gestão, e promoveu consideráveis avanços, fortalecendo e ampliando as bases para a elaboração da PNPS.
Com o novo ministro Miguel Rosseto, as expectativas são em torno dos necessários avanços e da consolidação de tantas conquistas. Parafraseando a presidenta Dilma Roussef em seu discurso de posse: “‘Nenhum direito a menos, nenhum passo atrás'”! Sem nos furtar de reconhecer as possibilidades que a PNPS enseja, seguimos proclamando que os próximos passos estão condicionados aos resultados do atual debate, envolvendo a sociedade como um todo, setores críticos e favoráveis à participação social, de forma dialógica, amplamente democrática e participativa – princípios e condições inexoráveis para tal.
(Do Brasil 247)