Os efeitos perversos da pandemia para a educação

Em razão da pandemia, a educação, de forma inédita, teve as atividades escolares interrompidas e/ou modificadas, tanto na educação básica quanto na superior. Nesse caminho, o Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou o
Parecer nº 5/2020 que orientou a reorganização do calendário e abriu a possibilidade do uso de atividades pedagógicas não presenciais, para fins de cumprimento da carga horária.

Diante desta nova realidade, as redes de ensino passaram a reorientar o planejamento escolar,adotando o trabalho remoto como forma de possibilitar a sequência das atividades escolares.
A pesquisa “Trabalho Docente em Tempos de Pandemia”1 desenvolvida a partir da parceria entre o Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente da Universidade de Minas Gerais (Gestrado/UFMG) e a
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), realizada com mais de 15 mil professores da educação básica em diversas regiões do país, apresentou um retrato preocupante para a educação no contexto da
pandemia:

“Quase 90% dos professores não tinham experiência com aulas remotas antes da pandemia e 42% seguem sem nenhum tipo treinamento. 82% dos professores estão dando aulas dentro de casa. 82% dos professores disseram que as horas de trabalho aumentaram. 84% dos professores afirmaram que o envolvimento dos alunos diminuiu um pouco ou diminuiu drasticamente durante a pandemia. 80% dos entrevistados afirmam que a principal dificuldade dos estudantes é a falta de acesso à Internet e computadores.”

Diante dos dados, constatamos que os problemas apresentados com a adoção do trabalho remoto nas escolas revelam a possibilidade de uma verdadeira tragédia para a educação nas diferentes realidades do país, tais como: conversão rápida e improvisada às plataformas de educação a distância, falta de estrutura para o desenvolvimento adequado das atividades, dificuldade de acesso às tecnologias, dificuldade de acompanhamento das atividades por parte dos estudantes, aumento da sobrecarga de trabalho dos professores e das atividades escolares dos estudantes, ausência de um planejamento pactuado coletivamente como forma de responder aos problemas decorrentes da pandemia, dentre outros.

O novo cenário revela que, mais do que a volta a uma normalidade, a realidade é de profunda incerteza quanto ao futuro da educação, uma vez que muitas são as preocupações e polêmicas geradas pela adoção do trabalho remoto no momento atual.

A adoção do trabalho remoto não tem conseguido responder aos desafios impostos pela pandemia, revelando os seus limites e efeitos danosos. A difícil realidade em que se encontra a educação exige a necessidade de construção de políticas articuladas e sistêmicas, visando minimizar os problemas decorrentes da pandemia.

Todavia, o Ministério da Educação não tem assumido a função de articular e coordenar políticas de enfrentamento à crise. Assim, cada rede de ensino tem buscado saídas isoladas. No vácuo deixado pelo MEC, fundações e organizações privadas vão preenchendo esse espaço por meio da oferta de aplicativos e firmando um promissor mercado para seus negócios.2

Essas questões levantadas reafirmam que o quadro atual é de muita incerteza para o futuro da educação. A pandemia tem transformado a realidade escolar em um grande laboratório de experiências improvisadas de Educação a
Distância (EaD), presa fácil dos empresários da educação. E a adoção do trabalho remoto vem se movendo na lógica do imediatismo para tentar fazer com que algum tipo de atividade funcione no contexto da pandemia, mas sem as condições adequadas e deixando os alunos e professores à própria sorte, comprometendo, assim, a garantia do direito à educação conforme preconiza a Constituição Federal de 1988.

É importante desvelar os sentidos implícitos e explícitos que podem estar por trás da adoção aligeirada do trabalho remoto na educação. Esse é um exercício necessário para que possamos compreender de que forma esse processo poderá impactar diretamente na qualidade da educação.

Neste momento, cabe indagar: de que forma esta nova situação decorrente da pandemia afeta a qualidade na educação? Resposta definitiva a essa questão ainda não temos, mas os caminhos são sombrios. Apresentaremos, de forma exploratória, alguns pontos para reflexão visando contribuir com este debate:

– É preciso fazer valer o principio da gestão democrática na construção de propostas que apontem soluções aos problemas postos pela pandemia. Não podemos usar o isolamento social como pretexto para tomadas de decisão sem a participação da comunidade escolar, porque isso fere o artigo 206, inciso 6º, da Constituição Federal que trata sobre os princípios da gestão democrática.

Para este momento, é necessário garantir e ampliar os espaços virtuais de participação da comunidade escolar nas tomadas de decisão que afetam a vida de todos. Não podemos perder de vista que a escola é um espaço de exercício
cotidiano da democracia, sendo que a construção da cidadania depende da relação com o outro e que não ocorre no isolamento.

– A elaboração de um protocolo de retorno às aulas exige amplo debate democrático e transparente, com a participação das autoridades das áreas sanitárias e da educação e, sobretudo, com a participação direta das
instituições de ensino e de seus profissionais, além dos estudantes e a comunidade. A ausência da construção coletiva cria obstáculos para um planejamento eficaz e que venha minimizar os efeitos da pandemia sobre a educação. Isto porque eleva a tensão e o desgaste, justamente em um momento crítico que exige ações pactuadas e construídas coletivamente.

– No afã de apresentar respostas para o prosseguimento das atividades escolares, tem prevalecido o discurso simplista da retomada do calendário escolar de qualquer jeito, a qualquer custo, alimentando uma visão de educação centrada apenas na lógica da acumulação dos conteúdos escolares, como o mais importante, e insensível às diferentes realidades dos estudantes e dos professores em decorrência dos efeitos da pandemia na educação. O
discurso da tecnocracia propaga que é necessário retomar tudo de onde parou, desconsiderando os efeitos socioemocionais da pandemia sobre a vida dos estudantes e dos profissionais da educação. O processo de planejamento escolar deverá ser pensado daqui para frente, a partir da nova realidade imposta pela tragédia da Covid-19. Nesse processo, a construção coletiva é necessária. Afinal, a escola não é uma sucessão de dias letivos, mas espaço de criação, vivência, socialização, descobertas e de construção de identidade.

– O processo de adoção do trabalho remoto de forma rápida e obrigatória, sem universalizar as condições adequadas de acesso, de suporte e de formação dos profissionais para compreenderem a atuarem nas plataformas de EAD, poderá trazer efeitos perversos para a educação, como a elevação das desigualdades educacionais por meio da eliminação do processo educativo daqueles que mais precisam de ajuda e de acompanhamento para o desenvolvimento das atividades escolares.

-Os sistemas de ensino não podem transferir a responsabilidade pela busca de acesso à Internet e a computadores para os estudantes, principalmente para aqueles que vivem em situação de vulnerabilidade social.
Cabe a estes sistemas ofertarem as condições de acesso, suporte e tecnologias adequadas aos estudantes, não deixando as famílias abandonadas nesse processo.

– Grande parte das propostas de retorno ao calendário escolar opera no improviso, no culto ao imediatismo, na falta de ações articuladas e que envolvam os diferentes sujeitos que participam da educação. Nesse processo, as entidades representativas dos trabalhadores da educação reiteram a reclamação de que não tem sido garantido espaço de participação ativa no processo de construção das propostas de enfrentamento à crise.

– Diante das incertezas estabelecidas com o avanço da pandemia, ganha centralidade a perspectiva de se pensar o calendário escolar dentro de um ciclo formativo único que contemple 2020/21, com processos avaliativos formativos visando à inclusão e que levem em consideração as diferentes realidades, com o acompanhamento e a assistência necessárias para que todos os estudantes possam ter o direito à educação assegurado.

– No modelo de gestão da educação, inspirado na lógica empresarial, prevalece a visão de curto prazo, a comparação, a performance, o desempenho, a elaboração de metas definidas de forma vertical, a gestão centrada em resultados e sem participação coletiva. Nesta perspectiva de gestão,o trabalho remoto poderá se transformar em grande fonte de sofrimento e de adoecimento no trabalho, o que coloca a defesa do princípio da gestão democrática como elemento imprescindível para o contexto educacional atual.

– Na perspectiva neoliberal de educação, a conversão das atividades no formato remoto/síncrono/ sem mediações próprias da EAD cria uma zona de oportunidades para os empresários da educação, para novas formas de privatização do processo educacional, por meio da padronização de pacotes de ensino feitos por “especialistas” externos à escola, perda da autonomia do trabalho docente, redução da contratação de professores concursados e da
dependência das escolas aos grandes grupos privados e fundações que dominam as plataformas e os programas educacionais de EAD. Tendo como referência o processo recente de reformas educacionais e de flexibilização das
leis trabalhistas no país, esse é um caminho perigoso que vai impactar irremediavelmente as relações de trabalho e as práticas escolares.

– A adoção do trabalho remoto na educação sob a ótica produtivista poderá aumentar o processo de individualização do trabalho, a perda dos laços de solidariedade no ambiente escolar, inviabilizando a construção de ações coletivas em defesa dos direitos dos cidadãos, notadamente dos trabalhadores, acarretando no aumento do processo de adoecimento no trabalho.

– É necessário ficarmos atentos para que o trabalho remoto não impacte o tempo livre do trabalhador. A realidade tem mostrado que o trabalho remoto na educação tem contribuído para romper as fronteiras entre o tempo de
trabalho e o tempo da vida privada, sobrecarregando o professor e elevando a jornada de trabalho por meio da diminuição do tempo que poderia ser dedicado as suas horas de lazer, por exemplo.

– O contexto atual exige uma escuta sensível: ouvir alunos, pais, profissionais da educação na busca por alternativas que alimentem a esperança de um futuro com expectativas melhores para os nossos estudantes. No momento, ganha relevância para o debate educacional, o desenvolvimento de projetos sobre temas candentes da existência humana
para melhor compreensão da realidade. O momento exige que a escola se aproprie de saberes significativos e indispensáveis para uma formação cidadã, solidária e comprometida com a formação integral e com o combate às
múltiplas formas de injustiças sociais.

– As profundas transformações na educação exigem a adoção de política pública sistêmica na formação dos profissionais que atuam no setor. Uma política de formação ampla, não só centrada em métodos e no uso das tecnologias digitais, mas formação continuada que dialogue sobre o sentido da escola e da prática docente, com o foco nas finalidades da educação. Uma formação que contemple as dimensões técnica, ética e política, para que os
profissionais da educação tenham clareza da complexidade do ato educativo, dos desafios e das contradições postas pela realidade e do sentido do que fazem, para que possam se inserir como sujeitos sociais ativos no processo
transformação da educação.

– Para não alimentarmos as desigualdades educacionais, é necessário não considerar as atividades remotas como obrigatórias, mas sim como atividades opcionais para que os estudantes desenvolvam em caráter de regime especial, até que a situação da pandemia seja superada e todos possam retomar às atividades escolares em condição de igualdade no espaço escolar.

– A pandemia eleva as desigualdades sociais e expõe a crise de legitimidade de um modelo de educação individualista, excludente, concorrencial e subordinado às demandas do mercado. A crise econômica e o
desemprego crescentes comprometem a promessa de que a educação é um meio seguro de garantia de inclusão de todos no mercado de trabalho. A pandemia acirra e revela a crise de legitimidade da escola capitalista, gerando
mais instabilidades e incertezas quanto ao seu futuro.

Esses são alguns pontos que buscamos refletir sobre a nova realidade da educação no contexto da pandemia. O momento exige ampliação do debate sobre o sentido da escola, o que passa pela necessidade de superação do
modelo de educação subordinado aos interesses imediatos do mercado, que concebe a educação como valor de troca, como mercadoria, que limita e empobrece seu papel no processo de formação humana.

A tragédia da pandemia exige que busquemos um outro sentido para a escola, tornando-a em um laboratório de exercício permanente dos valores democráticos, espaço que estimule a curiosidade, o gosto pela aprendizagem,
a criação e a capacidade de o estudante intervir no mundo. Uma escola que rompa com o trabalho alienante centrado na memorização e na reprodução de conteúdos abstratos e distantes da realidade dos estudantes. Uma escola como espaço de exercício diário da cidadania, onde se pratica a solidariedade e que ajude a combater todas as formas de injustiças sociais. Uma escola crítica e de resistência, que cultiva a vida e projeta a esperança de um mundo melhor.

Adilson Cesar de Araujo – Doutor em Educação pela FE-UnB. Foi Pró-Reitor de Ensino do IFB (2013-
2019)