“O fundamental no caso das nacionalizações e reestatizações é o apoio político e popular”, diz Bercovici

“Precisamos tirar os EUA de dentro da Petrobrás”. Essa frase intitula a edição de 4/7 do “20 Minutos Entrevista”, programa do jornalista Breno Altman, em que ele entrevista Gilberto Bercovici: um dos grandes defensores da renacionalização da Petrobrás e da Eletrobrás. Professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Bercovici concedeu uma entrevista exclusiva ao Sinpro sobre o desmonte dessas duas empresas. A Petrobrás é a maior empresa de energia do País e uma das maiores do mundo. Com esta entrevista, o sindicato encerra a série “Em defesa da Petrobrás”.

 

O professor da USP explica o que ocorreu nos últimos anos no Brasil, os impactos na vida do País e afirma que todas as privatizações, embora ofereçam alguns impedimentos, podem e devem ser revertidas. “A privatização dessas empresas estatais significa a desestruturação do sistema energético integrado, fundamental para a manutenção de um mercado interno de dimensões continentais, como o brasileiro, e uma inserção internacional competitiva, não subordinada. A fragmentação das empresas estatais de infraestrutura substitui, na maior parte dos casos, o monopólio estatal pelo monopólio ou oligopólio privados, além de romper com o planejamento estratégico e integrado da rede de serviços básicos e com um sistema interligado de tarifas cruzadas”, afirma.

 

Segundo ele, no Brasil, os recursos provenientes da exploração das reservas petrolíferas do pré-sal e áreas estratégicas devem ser destinados ao Fundo Social, de natureza contábil, vinculado à Presidência da República (artigos 47 e 49 da Lei nº 12.351/2010). “O Fundo Social tem por objetivos ser uma fonte de recursos para projetos de combate à pobreza e desenvolvimento social e regional, constituir poupança pública de longo prazo com base nas receitas da União e mitigar as flutuações de renda e preços na economia nacional, decorrentes das variações geradas pela exploração de petróleo e demais recursos não renováveis (artigo 48 da Lei nº 12.351/2010). O destaque deve ser dado aos investimentos em educação, cultura e ciência e tecnologia (artigo 47 da Lei nº 12.351/2010). De acordo com a Lei 12.858/2013, metade dos recursos do Fundo Social devem financiar a educação pública, para que se cumpram as metas no Plano Nacional de Educação (PNE)”, completa.

 

Confira a entrevista com Gilberto Bercovici em que ele esmiúça o problema da privatização da Petrobrás, Eletrobrás e as ameaças à soberania do Brasil. Ele é doutor em Direito do Estado (2001) e Livre-Docente em Direito Econômico (2003) pela USP, ex-diretor (2015-2018) e presidente do Conselho Deliberativo (2018-2021) do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.

 

 

ENTREVISTA – Prof. Dr. Gilberto Bercovici

 

Sinpro-DF  – Por que a privatização da Petrobrás e da Eletrobrás é ruim para o País?

Gilberto Bercovici – O contexto histórico da luta dos países em desenvolvimento por independência política e emancipação econômica fez com que as empresas petrolíferas estatais e muitas empresas mineradoras estatais acabassem personificando o controle soberano sobre os recursos naturais. Afinal, as empresas estatais são instrumentos da política econômica nacional dos seus Estados, atuando de acordo com os objetivos estratégicos e de bem-estar social do Estado, indo muito além da mera busca de rentabilidade.

A nacionalização ou estatização não ocorre por acaso, permitindo o controle e a atuação estatais sobre os setores essenciais da economia, como energia e exploração de recursos minerais. As empresas estatais são uma das bases do poder econômico público, visando controlar e se contrapor ao poder econômico privado. O fato de pertencerem ao Estado não impede que as empresas petrolíferas e mineradoras estatais sejam eficientes, apesar do discurso que insiste em ver nestas empresas o grande modelo da “ineficiência estatal”, e constituam as forças mais dinâmicas da indústria extrativa, competindo com as empresas multinacionais em todos os setores.

O Brasil necessita de uma infraestrutura complexa, capaz de articular as várias regiões do país. A prestação dos serviços públicos de energia e comunicações precisa ser acompanhada de preços básicos, o mais uniformizados possível, e instalações interligadas, para que não se excluam regiões e setores inteiros e importantes da possibilidade de participar do mercado interno e do mercado internacional. Com a Eletrobrás e a Petrobrás, o Brasil possuía empresas estatais globais pelo seu tamanho, capacidade técnica, financeira e organizacional para operar tanto no país como no exterior, que eram dotadas de um sistema de planejamento estratégico e que se responsabilizaram por grande parte da infraestrutura e do desenvolvimento tecnológico do país.

Especificamente em relação ao setor de petróleo, nunca é demasiado recordar que a Petrobrás é fruto de uma campanha de mobilização popular, a Campanha “O Petróleo é Nosso”. A proposta de sua criação surgiu das ruas. Essa empresa, criada por Getúlio Vargas em 1953, tinha e tem por objetivo garantir o abastecimento nacional de combustíveis e a segurança energética do Brasil. A Petrobrás em poucas décadas se consolidou como a maior empresa do país, estruturada como uma empresa integrada de energia, ou seja, atuando em todas as etapas da indústria petrolífera, sendo ainda a empresa que mais investe em ciência e tecnologia no Brasil.

Ao invés de dotar estas empresas de maior capacidade operacional e reforçar o controle público e a transparência sobre seus recursos, os Governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro, seguindo os passos dados durante a privataria tucana do Governo Fernando Henrique Cardoso, optaram por desmontá-las, cortar seus investimentos e desestruturar suas finanças, a fim de justificar a sua privatização.

A privatização dessas empresas estatais significa a desestruturação do sistema energético integrado, fundamental para a manutenção de um mercado interno de dimensões continentais, como o brasileiro, e uma inserção internacional competitiva, não subordinada. A fragmentação das empresas estatais de infraestrutura substitui, na maior parte dos casos, o monopólio estatal pelo monopólio ou oligopólio privados, além de romper com o planejamento estratégico e integrado da rede de serviços básicos e com um sistema interligado de tarifas cruzadas.

O desmonte do setor elétrico brasileiro, com a privatização da Eletrobrás, compromete de forma definitiva nossa soberania energética. A soberania energética é um componente essencial da soberania econômica nacional, pois abrange um setor chave da economia do país. O Estado deve tomar decisões autônomas sobre a produção e destino dos seus recursos energéticos, planejando o seu desenvolvimento e evitando a dependência tecnológica e de fatores externos para a produção de energia. Deste modo, o controle estatal sobre as fontes de energia consiste em um eixo central de um projeto democrático em que a política macroeconômica esteja a serviço dos interesses nacionais, além de poder propiciar um planejamento energético de longo prazo.

O que ninguém diz é que ao privatizar uma empresa estatal ou qualquer parcela do patrimônio público, o governo está expropriando a população de bens públicos que são de sua titularidade. Simples assim. Na privatização, o governo age do mesmo modo que na expropriação. Da mesma forma que desapropria uma propriedade privada, na privatização o governo aliena a propriedade pública. O problema é que o proprietário privado pode contestar e tem garantias, o povo não.

Todo processo de privatização é uma expropriação de bens que deveriam integrar permanentemente o patrimônio público de todos os cidadãos, decidida por uma autoridade política que exerce o poder temporariamente. No processo de privatização, o governo não vende o que é dele (governo). Na privatização, o governo vende o que pertence a todos nós. E sem nos consultar sobre isso.

 

Sinpro-DF  – Explique para nós o que significa essa política de preços dos combustíveis:

Gilberto Bercovici –  A política de preços da Petrobrás, desde 2016, é de paridade em relação aos preços dos combustíveis importados. A prática de preços mais altos que os custos de importação tem garantido a lucratividade da cadeia de importação e a competitividade dos combustíveis importados, em especial dos Estados Unidos. O combustível brasileiro mais caro perde mercado para o importado, o que resulta na ociosidade das nossas refinarias. O consumidor brasileiro paga preços vinculados ao petróleo no mercado internacional e à cotação do dólar, além dos custos estimados de importação, apesar do petróleo ser produzido no Brasil e de haver capacidade de refiná-lo no país.

 

Sinpro-DF – O que significa a atual política de distribuição de dividendos da Petrobrás? Quem é beneficiado por ela, o país ou os acionistas privados?

Gilberto Bercovici –  Em relação aos dividendos pagos a acionistas, muito se tem dito e escrito sem que se preste atenção no significado concreto da natureza jurídica da Petrobrás como uma sociedade de economia mista. A sociedade de economia mista é uma espécie de empresa estatal, integrante da Administração Pública Indireta, dotada de personalidade jurídica de direito privado e cuja criação é autorizada por lei, como um instrumento de ação do Estado. Apesar de sua personalidade de direito privado, que se presta exclusivamente para fins operacionais, a sociedade de economia mista, como qualquer empresa estatal, está submetida a regras especiais decorrentes de sua natureza de integrante da Administração Pública. Estas regras especiais decorrem de sua criação autorizada por lei, cujo texto excepciona a legislação societária, comercial e civil aplicável às empresas privadas.

Na criação da sociedade de economia mista, autorizada pela via legislativa, o Estado age como Poder Público, não como acionista. A sua constituição só pode se dar sob a forma de sociedade anônima, devendo o controle acionário majoritário pertencer ao Estado, em qualquer de suas esferas governamentais, pois ela foi criada deliberadamente como um instrumento da ação estatal, devendo estar acima, portanto, dos interesses privados. A Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404, de 17 de dezembro de 1976), se aplica às sociedades de economia mista, desde que seja preservado o interesse público que justifica sua criação e atuação (artigo 235). O seu artigo 238 também determina que a finalidade da sociedade de economia mista é atender ao interesse público, que motivou sua criação. A sociedade de economia mista está vinculada aos fins da lei que autoriza a sua instituição, que determina o seu objeto social e destina uma parcela do patrimônio público para aquele fim. Não pode, portanto, a sociedade de economia mista, por sua própria vontade, utilizar o patrimônio público para atender finalidade diversa da prevista em lei, conforme expressa o artigo 237 da Lei das Sociedades Anônimas.

A necessidade da socidade de economia mista atuar de acordo com o interesse público também está determinado pela Lei das Empresas Estatais (Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016), em vários dispositivos (artigos 4º, §1º, 8º, 27, §1º, entre outros). Inclusive, a atual forma de distribuição de dividendos para os acionistas da Petrobrás é uma anomalia sem qualquer fundamento legal. É dever da Petrobrás estabelecer política de dividendos, que limite sua distribuição ao montante mínimo legal de 25%, com guarida legal no artigo 8º, V da Lei 13.303/2016, que estabelece que as sociedades de economia mista (caso da Petrobrás) deverão elaborar política de distribuição de dividendos, à luz do interesse público que justificou a sua criação.

Afinal, o objetivo essencial de uma sociedade de economia mista como a Petrobrás não é a obtenção de lucro, mas a implementação de políticas públicas. A legitimidade da ação do Estado como empresário (artigo 173 da Constituição) é a produção de bens e serviços que não podem ser obtidos de forma eficiente e justa no regime da exploração econômica privada. Não há nenhum sentido em o Estado procurar receitas por meio da exploração direta da atividade econômica. A empresa estatal Petrobrás não tem apenas finalidades microeconômicas, ou seja, estritamente “empresariais”, mas tem essencialmente objetivos macroeconômicos a atingir, como instrumento da atuação econômica direta do Estado.

 

Sinpro-DF  – O governo Bolsonaro está “fatiando” a Petrobrás e vendendo tudo fatiado? Qual a análise jurídica que o senhor faz dessa venda fatiada da Petrobrás?

Gilberto Bercovici – Todo esse patrimônio público vem sendo ameaçado com a política de desmonte e venda de ativos da Petrobrás. Enquanto se exporta o petróleo cru do Brasil, o país importa cada vez mais seus produtos refinados, a maior parte produzida nos Estados Unidos. Além disto, o desmonte da Petrobrás tem buscado encerrar a sua atuação como uma empresa integrada de energia de âmbito nacional para se restringir a uma exploradora do pré-sal no Sudeste do país, abandonando regiões e populações inteiras à própria sorte.

Na sua ânsia de agradar os mercados, os governos Temer e Bolsomaro buscaram, além de uma política excessivamente rigorosa de garantia do pagamento do serviço da dívida pública em detrimento de todo e qualquer gasto público, implantar uma política de desnacionalização do que restou em poder do Estado extremamente rápida e agressiva. Desde a retirada da Petrobrás como operadora única do pré-sal (Lei nº 13.365, de 29 de novembro de 2016), os ativos da empresa estatal vêm sendo vendidos sem licitação, como determina a legislação brasileira (Plano Nacional de Desestatização – Lei nº 9.491, de 9 de setembro de 1997 e o artigo 29 da Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016). A Petrobrás não precisa vender ativos para reduzir seu nível de endividamento. Ao contrário, na medida em que vende ativos ela reduz sua capacidade de pagamento da dívida no médio prazo e desestrutura sua cadeia produtiva, em prejuízo à geração futura de caixa, além de assumir riscos empresariais desnecessários. O plano de negócios atual da Petrobrás tem viés de curtíssimo prazo e ignora a essência de uma empresa integrada de energia que usa a verticalização em cadeia para equilibrar suas receitas, compensando a inevitável variação do preço do petróleo, de seus derivados e da energia elétrica, característica essencial para minimizar os riscos empresariais. Na medida em que a Petrobrás seja fatiada, o agente privado tende a buscar o lucro máximo por negócio, majorando os custos ao consumidor, o que restringe o crescimento do mercado interno.

Não bastasse a ausência de licitação, a venda de ativos da Petrobrás vem ocorrendo a preços bem abaixo dos preços de mercado. Este tipo de “venda” pode ser equiparada ao crime de receptação. Um bem público foi subtraído do patrimônio público de forma ilegal, sem licitação, e vendido a preço vil, por um preço menor que o valor de mercado. A empresa compradora obviamente sabe que está adquirindo um ativo valiosíssimo por um valor abaixo do preço de mercado e sem concorrência pública. Ou seja, não há nenhum terceiro de boa-fé envolvido neste tipo de negócio. Neste tipo de situação, a obrigação do Estado brasileiro e dos órgãos de defesa do patrimônio público é anular a transação, recuperar o bem e buscar a responsabilização de quem promoveu o negócio.

 

Sinpro-DF – A deputada Gleisi Hoffmann postou em seu Twitter: “A gente precisando refinar o petróleo aqui pra parar de importar combustível dolarizado e o que o governo Bolsonaro faz? Retoma a venda de três refinarias, entre elas a do Paraná. É um entreguismo burro e criminoso que essa gente pratica”. Quantas refinarias já foram privatizadas? Qual a legalidade disso?

Gilberto Bercovici – O setor de refino, que é um monopólio constitucional (artigo 177 da Constituição) e legal (Lei 9.478/1997) da União, sofreu uma intervenção totalmente inconstitucional do órgão de defesa da concorrência, contribuindo para a constituição de monopólios privados. Houve o desvirtuamento da política de concorrência para o favorecimento de monopólios privados.

Para garantir o desmonte da Petrobrás, o Governo Jair Bolsonaro utilizou o órgão brasileiro de defesa da concorrência, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) para inviabilizar a atuação da empresa estatal em vários setores da cadeia produtiva, particularmente o refino, monopólio constitucional da União. Não apenas o CADE não tem competência para impor restrições ou sanções às atividades monopolizadas constitucionalmente e legalmente pela União, como a tentativa de impor a venda de ativos à Petrobras como parte do Termo de Compromisso de Cessação de Prática firmado em 11 de junho de 2019, é uma clara violação da legalidade por parte do CADE e da Petrobrás. A cláusula segunda do referido Termo estipula que a Petrobrás se compromete a alienar integralmente até o final de 2021 ao menos oito refinarias, metade do seu parque de refino instalado.

Foi privatizada completamente a Refinaria Landulpho Alves (RLAM), na Bahia, e estão em processo de conclusão as vendas da Refinaria Isaac Sabbá (REMAN), em Manaus, da Lubrificantes e Derivados de Petróleo do Nordeste (LUBNOR), em Fortaleza, e da Unidade de Industrialização de Xisto (SIX), no Paraná. A diretoria da Petrobrás tenta, ainda, privatizar a Refinaria Abreu e Lima (RNEST), em Pernambuco, a Refinaria Gabriel Passos (REGAP), em Minas Gerais, a Refinaria Presidente Getúlio Vargas (REPAR), no Paraná, e a Refinaria Alberto Pasqualini (REFAP), no Rio Grande do Sul.

No entanto, essa venda de ativos jamais poderia ter sido imposta pelo CADE por meio de Termo de Compromisso de Cessação de Prática, muito menos aceita pela Petrobrás. Trata-se de uma violação expressa à Lei do Programa Nacional de Desestatização (Lei nº 9.491/1997). O artigo 3º da referida lei determina que as atividades de competência exclusiva da União segundo o artigo 177 da Constituição, como o refino de petróleo, estão excluídas da alienação ou transferência de ativos previstas no Programa Nacional de Desestatização. Ou seja, a privatização ou alienação de ativos das empresas que exerçam as atividades de competência exclusiva da União previstas no artigo 177 da Constituição, no caso, o refino, estão vedadas expressamente por lei. Se a Lei nº 9.491/1997 proíbe, um Termo de Compromisso de Cessação de Prática firmado entre uma autarquia vinculada ao Ministério da Justiça e uma sociedade de economia mista vinculada ao Ministério das Minas e Energia não pode autorizar. Um ato administrativo não pode prevalecer sobre uma lei.

No presente caso, estamos diante de uma explícita violação ao disposto na Constituição e em várias leis vigentes no país. A atuação do CADE e da Petrobrás viola a legalidade, firmando documentos nulos de pleno direito que podem trazer sérios impactos econômicos não apenas para os acionistas da Petrobrás, mas para toda a sociedade brasileira. Em suma, não há previsão legal de instauração de procedimento investigativo com finalidade sancionatória contra a Petrobrás por ter exercido sua competência constitucional e legal de desenvolver as atividades do monopólio da União no setor de refino de petróleo (artigo 177 da Constituição). Não bastasse isso, a Lei nº 9.491/1997 proíbe expressamente a alienação ou transferência para a iniciativa privada às empresas estatais que exerçam atividades de competência exclusiva da União de que trata, entre outros, o artigo 177 da Constituição. Qualquer ato tendente a impor medidas restritivas ao exercício do monopólio constitucional do refino, inclusive a venda de ativos, é abusivo e, portanto, nulo, pois fora dos limites de competência dos órgãos de defesa da concorrência.

 

Sinpro-DF – É possível a renacionalização da Petrobrás? E da Eletrobrás? Qual a base jurídica que permite anular as privatizações?

Gilberto Bercovici – Para a reversão deste quadro e a reconstrução do aparato estatal brasileiro destruído nos últimos anos, a nacionalização ou reestatização de vários setores privatizados ou alienados se fará necessária. Para tanto, em termos jurídicos, não há nenhum empecilho na Constituição brasileira de 1988. A constituição encarregou o legislador ordinário da tarefa de decidir se efetua ou não as nacionalizações. O artigo 173 da Constituição de 1988 diz respeito à exploração direta pelo Estado de atividade econômica, não à excepcionalidade da intervenção estatal no domínio econômico. Isto porque há vários outros casos de exploração estatal direta de atividade econômica previstos no texto constitucional (como o artigo 177 ou a possibilidade de exploração direta pelo Estado dos serviços públicos do artigo 175), cuja prestação é dever constitucional do Estado. O disposto no artigo 173 autoriza o Estado a explorar diretamente a atividade econômica quando esta for necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. Cabe ao Estado, portanto, a decisão sobre a quantidade de recursos destinada para a reprodução do capital e sobre a quantidade dirigida a atender os objetivos sociais previstos nas fórmulas emancipatórias da Constituição.

Em termos do direito internacional, não há restrição alguma à reestatização ou nacionalização, especialmente de setores estratégicos. Desde a aprovação da Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas nº 1803 (XVII), de 14 de dezembro de 1962, a Resolução sobre a Soberania Permanente dos Estados sobre os Recursos Naturais, entende-se que cada Estado tem o direito de regular, da forma que entender melhor, sobre o tratamento ao capital e aos investimentos estrangeiros, bem como, se necessário, de expropriá-los ou nacionalizá-los, de acordo com as normas vigentes. Mas a principal determinação da soberania permanente sobre os recursos naturais é o reconhecimento de que os Estados têm o direito de dispôr de seus recursos naturais e riquezas para utilizá-los em seu processo de desenvolvimento nacional e para o bem-estar de seu povo.

 

Sinpro-DF – Quais são as dificuldades para uma reestatização? O governo Lula não conseguiu reestatizar a Vale. Quais são as dificuldades?

Gilberto Bercovici – A reestatização enfrenta obstáculos políticos muito mais do que jurídicos. O Governo Lula sequer tentou reestatizar a Vale do Rio Doce, em um período de que dispunha de forte maioria legislativa e grande apoio na opinião pública. Deste modo, o Governo Lula permitiu que a mineradora continuasse em mãos privadas e dominada pela lógica mercantil, passando a atuar de forma a maximizar a produção, incorrendo em falhas e omissões que poderiam dar causa a grandes desastres ambientais e humanos. A exploração predatória margeia a legalidade, com a Vale operando no limite da capacidade máxima produtiva – ou além dele. O resultado foram duas das maiores tragédias ambientais da história brasileira: o rompimento das barragens em Mariana e em Brumadinho, ambos em Minas Gerais, em 05 de novembro de 2015 e em 25 de janeiro de 2019, respectivamente.

Há dois grandes obstáculos para a retomada do controle público sobre as empresas estatais, notadamente a Petrobrás e a Eletrobrás: a negociação de ações das empresas estatais brasileiras na Bolsa de Valores de Nova York e a atual maioria neoliberal que compõe a cúpula do Poder Judiciário brasileiro.

Fernando Henrique Cardoso, além de “flexibilizar” o monopólio do petróleo (Emenda Constitucional nº 9, de 1995), vendeu cerca de 30% do capital da Petrobrás que era de titularidade da União na Bolsa de Valores de Nova York. O resultado foi a ampliação dos interesses dos acionistas privados, em sua grande maioria estrangeiros, na gestão da empresa, além da sua submissão às leis e regras do mercado de capitais estadunidense, propiciando a interferência dos interesses dos Estados Unidos diretamente na Petrobrás, seja por intermédio do órgão regulador do mercado de capitais (U.S. Securities and Exchange Commission – SEC), seja por ações judiciais interpostas pelos acionistas minoritários privados na justiça estadunidense que geraram vultosas indenizações a partir da Operação Lava Jato. O mesmo se aplica à Eletrobrás, que também tem parte de suas ações negociadas em Nova York.

Portanto, a medida mais urgente para que o Estado brasileiro reassuma o controle efetivo da Petrobrás e da Eletrobrás é a retirada das ações das empresas estatais da Bolsa de Valores de Nova York. Essa retirada pode se dar por meio da recompra das ações ou por meio de desapropriação dessas ações (artigo 236, parágrafo único da Lei das Sociedades Anônimas), a depender de decisão política governamental.

O outro obstáculo à renacionalização talvez seja a cúpula do Poder Judiciário, mais uma vez um obstáculo político, não jurídico como pode parecer para alguns. O processo de interferência do Poder Judiciário brasileiro na política nacional é um fenômeno mais amplo e mais profundo, vinculado à estrutura da Constituição de 1988 e à atuação do sistema político nacional. No período do Governo Fernando Henrique Cardoso, por uma série de circunstâncias, o embate contra as privatizações foi mais político e menos contestado judicialmente, embora a privatização da Vale do Rio Doce, perdida em alguma gaveta do Poder Judiciário, talvez ainda possa ser julgada algum dia.

Já em relação às privatizações dos governos Temer e Bolsonaro, houve, equivocadamente em minha opinião, uma maior judicialização e há uma maioria circunstancial no STF a favor de pautas neoliberais. Não custa recordar que os atuais ministros do STF foram favoráveis à destruição dos direitos trabalhistas por meio da reforma de 2016, explicitamente inconstitucional, mas preservada por eles como uma medida de “modernização” do direito brasileiro. Do mesmo modo, a atual maioria neoliberal do STF se aproveitou de uma ação proposta por partidos de esquerda e conseguiu criar jurisprudência favorável às privatizações, sem nenhum efetivo fundamento jurídico ou constitucional, apenas com base em discursos ideológicos ou repletos de chavões pró mercado. Em resumo, uma estratégia política equivocada de partidos de esquerda possibilitou que a atual maioria neoliberal dos componentes do Supremo Tribunal Federal aproveitasse as circunstâncias e legitimasse judicialmente as privatizações.

O fundamental no caso das nacionalizações e reestatizações é o apoio político e popular. Um projeto de reconstrução nacional só gera efeitos quando está presente no imaginário coletivo da sociedade, sob pena de não sair do papel. Afinal, não é um simples plano de governo, mas uma construção coletiva que busca essencialmente os objetivos de uma sociedade melhor, mais igualitária e mais democrática no futuro. Neste sentido, a proposta do referendo revogatório das privatizações é de enorme importância. A consulta ao verdadeiro proprietário dos recursos estratégicos do país, o povo, é um instrumento essencial para garantir força política às nacionalizações.

 

Sinpro-DF – Quais países do mundo que venderam empresas nacionais do porte e importância da Petrobrás e Eletrobrás? Por que os países ricos não vendem suas empresas de energia e as  mantêm públicas e controladas pelo Estado?

Gilberto Bercovici – Esse modelo de privatização de todo o setor energético foi praticado no Chile do General Pinochet e no auge do neoliberalismo, na década de 1990, em países como a Argentina, a Bolívia ou, parcialmente, no México. Na Bolívia e na Argentina houve a renacionalização ou reestatização dessas empresas privatizadas, como a reestatização do setor de gás no Governo Evo Morales e a reestatização da YPF, empresa estatal petrolífera argentina privatizada por Menem, no Governo de Cristina Kirchner e da energia elétrica nos governos de Néstor Kirchner e Alberto Fernández. No Chile este debate sobre a renacionalização é muito forte no movimento que levou à convocação da atual Assembleia Constituinte e vem sendo cogitado na atualidade. O México, por sua vez, perdeu o controle de parte do setor energético em reformas neoliberais e o atual governo de Lopez Obrador vem reestatizando e retomando o controle estatal para assegurar a soberania energética do país. Isso para nos limitarmos à América Latina.

Segundo estudo do Transnational Institute (TNI), centro de estudos em democracia e sustentabilidade baseado na Holanda, as reestatizações são uma tendência mundial e estão crescendo. Entre 2000 e 2017, 884 serviços foram reestatizados no mundo, sendo 83% deles de 2009 em diante. Preços altos e falta de investimentos estão entre reclamações mais comuns, tendência é especialmente forte na Europa, mas acontece em países de todo o mundo. A Rússia reestatizou e renacionalizou todo o seu setor energético e de hidrocarbonetos após o desastroso Governo de Boris Yeltsin e vemos hoje a importância estratégica desses ativos com a situação gerada pela guerra na Ucrânia e seus impactos no restante da Europa.

Os Estados Unidos também não admitem a perda de controle da soberania energética. Nos poucos lugares onde ocorreram privatizações, como nos setores de energia elétrica da Califórnia ou do Texas, se seguiram crises de abastecimento energético que geraram bilhões em prejuízos e a revisão total ou parcial dessas medidas.

A dimensão estratégica do controle do Estado norte-americano sobre o setor energético pode ser ilustrada com o famoso caso da tentativa de aquisição da empresa petroleira norte-americana Unocal Corporation, detentora de reservas consideráveis de petróleo e gás na América do Norte e Ásia, pela empresa estatal chinesa CNOOC (China National Offshore Oil Corporation), em 1995. A reação à oferta de compra da estatal chinesa foi a adoção de algumas medidas legislativas, impulsionadas pelo Partido Republicano, no Congresso estadunidense para impedir a venda das reservas energéticas a uma empresa estrangeira. O argumento dos republicanos se baseava na ideia de segurança nacional. Juntamente com os representantes do Partido Democrata, foi aprovada, na Câmara dos Deputados, a Resolução nº 344, de 30 de junho de 2005, que determinava a necessidade de o Presidente da República analisar as implicações econômicas e de segurança nacional presentes na oferta chinesa.

Além disto, os opositores à compra pelos chineses passaram a utilizar a “Exon-Florio Amendment”, uma emenda aprovada em 1988 ao Defense Production Act de 1950, que autoriza o Poder Executivo a rever todo investimento estrangeiro nos Estados Unidos que possa ser considerado prejudicial aos interesses nacionais. Uma série de projetos de lei sobre o tema foram apresentados e foi aprovada, em 26 de julho de 2005, uma emenda ao Energy Policy Act, proposto pelo então Presidente George W. Bush em 2001, determinando ao Departamento de Energia que conduzisse uma investigação sobre as políticas energéticas chinesas.

A multinacional Chevron entrou na disputa, recebendo a aprovação oficial do Governo dos Estados Unidos. Apesar de a oferta da CNOOC ter sido a maior até então oferecida por uma empresa estrangeira para a compra de uma companhia estadunidense (cerca de 18,5 bilhões de dólares, maior que a oferta de 16,5 bilhões de dólares feita pela Chevron), os aspectos determinantes na aquisição da Unocal foram políticos, não econômicos. A empresa estatal chinesa, diante da reação da opinião pública e do sistema político estadunidenses, retirou sua oferta em 2 de agosto de 2005 e, no dia 10 de agosto, os acionistas da Unocal votaram pela aceitação da oferta da Chevron. O caso Unocal é a demonstração evidente de que o discurso estadunidense de defesa do livre mercado não é acompanhado pela prática. Os interesses estratégicos do Estado norte-americano prevaleceram sobre os mecanismos ditos de mercado. Nos setores petrolífero e energético, nem a principal potência econômica do mundo abre mão da garantia da sua soberania.

 

Sinpro-DF – Qual é o prejuízo das privatizações para a educação pública?

Gilberto Bercovici – As privatizações afetam a vida de todas as pessoas ao retirarem o interesse público da prestação de serviços e bens essenciais, como energia elétrica, combustíveis, água, saneamento, etc. Esses serviços e bens passam a ser prestados ou oferecidos dentro da lógica mercantil que visa exclusivamente o lucro privado da forma mais rápida possível. Programas de assistência ou facilitação de acesso a infraestruturas e serviços básicos, como o Programa Luz para Todos, por exemplo, deixam de fazer sentido para os interesses dos concessionários ou proprietários privados dos serviços concedidos ou das empresas estatais e ativos públicos alienados.

Não bastasse a maior dificuldade e aumento de custos na obtenção de serviços essenciais, como energia e água, especificamente no caso da educação pública, há um impacto direto relacionado ao desmonte do setor petrolífero estatal no Brasil.

O petróleo é parte da renda nacional, com a vantagem potencial de poder financiar investimentos públicos que sejam parte de uma estratégia de desenvolvimento coerente. A utilização dos recursos petrolíferos tem, geralmente, quatro destinos possíveis: preservar as reservas inexploradas ou transformar as rendas em ativos financeiros (fundos de investimento), ativos físicos (investimentos em infraestrutura) ou capital humano (melhorias na educação e na tecnologia). A transformação de um recurso não-renovável em um recurso renovável se dá pelo investimento, doméstico ou no exterior, das rendas obtidas da extração mineral ou petrolífera de modo a aumentar a capacidade produtiva e elevar os padrões de vida da geração atual, assim como das futuras gerações. O método mais prático tem sido a criação de fundos de investimento nos quais a renda petrolífera é canalizada.

No Brasil, os recursos provenientes da exploração das reservas petrolíferas do pré-sal e áreas estratégicas devem ser destinados ao Fundo Social, de natureza contábil, vinculado à Presidência da República (artigos 47 e 49 da Lei nº 12.351/2010). O Fundo Social tem por objetivos ser uma fonte de recursos para projetos de combate à pobreza e desenvolvimento social e regional, constituir poupança pública de longo prazo com base nas receitas da União e mitigar as flutuações de renda e preços na economia nacional, decorrentes das variações geradas pela exploração de petróleo e demais recursos não renováveis (artigo 48 da Lei nº 12.351/2010). O destaque deve ser dado aos investimentos em educação, cultura e ciência e tecnologia (artigo 47 da Lei nº 12.351/2010). De acordo com a Lei 12.858/2013, metade dos recursos do Fundo Social devem financiar a educação pública, para que se cumpram as metas no Plano Nacional de Educação (PNE). Portanto, a utilização adequada dos recursos arrecadados com a exploração do pré-sal poderia criar uma alternativa de financiamento que superasse algumas das grandes barreiras estruturais da história do desenvolvimento brasileiro, notadamente a educação.

Como complemento de sua política de desmonte do Estado brasileiro, o Governo Jair Bolsonaro encaminhou projeto de lei (Projeto de Lei nº 1583/2022) ao Congresso Nacional em junho de 2022 autorizando a União a vender sua parcela do óleo do pré-sal de contratos de partilha e desvinculando as receitas que serão obtidas com a venda desses ativos do Fundo Social. Ou seja, se propõe a destruição do mecanismo financeiro que poderia garantir importante aporte de recursos para a educação, saúde e ciência e tecnologia. O desmonte da atuação estatal no setor energético, particularmente no setor petrolífero, atinge diretamente o financiamento da educação pública no Brasil.♦

 

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