O Dia de Quem Cuida da Gente

Era dia de apresentação na Escola Classe Juscelino Kubitschek Sol Nascente. Estudantes do 2º ano da educação básica, que têm entre 7 e 8 anos de idade, cantavam uma música sobre dedicação, cuidado, amor. Pendurado no pescoço de cada um, um crachá com a foto de quem cuidava deles. A hora do refrão era esperada por todos: os crachás seriam levantados com entusiasmo para mostrar para quem os assistia aquele ou aquela pessoa especial. Neste momento, uma das crianças, um menino pequeno, desatou em choro. Ele havia perdido alguém que amava.

A maioria dos estudantes da Escola Classe Juscelino Kubitschek Sol Nascente entende o sentimento do coleguinha. Afinal, 70% dos mil alunos e alunas dessa unidade escolar, crianças de 4 a 11 anos, estão em vulnerabilidade social, e muitos deles moram em abrigos.

Dia de Quem Cuida da Gente realizado no dia 8 de julho de 2023

 

Mesmo diante de uma realidade dura – indimensionável para quem nunca passou por isso – as crianças da Escola Classe Juscelino Kubitschek Sol Nascente aprendem desde cedo que sempre há alguém que está por perto. O trabalho é feito durante todo o ano, mas tem culminância em abril, quando é realizado O Dia de Quem Cuida da Gente, que substitui a festa da família, realizada em outras unidades escolares.

“O Dia de Quem Cuida da Gente é um dia em que o objetivo principal é a criança compartilhar com quem ama, quem cuida, ainda que seja o cuidador ou a cuidadora do abrigo, as atividades da escola. São desenvolvidas oficinas, pintura de rosto, confecção de pipa, massinha de modelar. As crianças fazem homenagens de cunho afetivo. É um momento de troca de afeto, onde todos participam de forma igual”, explica a diretora da unidade escolar, Marilda Rosa Coelho.

Há 33 anos na rede pública de ensino do DF, a professora chegou à Escola Classe Juscelino Kubitschek Sol Nascente em 2020, ano de inauguração da unidade. Ela conta que ao ser convidada para assumir a diretoria da escola, abriu mão do cargo de assessora da regional de ensino que atuava, porque “queria muito” contribuir com a experiência adquirida nessas três décadas de carreira, além de querer o “desafio de aplicar as políticas públicas de educação à comunidade carente”.

Segundo a diretora Marilda Rosa, o carro-chefe do Projeto Político Pedagógico da EC JK são as histórias de vida dos estudantes, da comunidade escolar. “As histórias vão se fundindo, e essa rede vai se constituindo e fazendo todas essas maravilhas que só a educação consegue. Não tem nenhuma outra área que seja capaz de realizar o que a educação faz”, diz a diretora.

No contexto de vulnerabilidade social, as histórias levadas para dentro da EC JK são várias e, muitas vezes, tristes. São crianças que sofrem violência em casa, ou que a mãe é dependente de substâncias químicas, ou o pai está preso, ou ainda tudo isso junto. Mas para a diretora Marilda Rosa, se esse é o contexto, é preciso saber enfrentá-lo.

No projeto Dia de Quem Cuida da Gente, família tem várias formatações, e todas elas são muito bem vindas

 

“Nos dias de hoje, é muito difícil trabalhar a tristeza, a perda. Mas a gente precisa trabalhar isso nas crianças. A gente percebe que há diversos problemas gerados pela ausência de abordagem desses sentimentos. Trabalhar isso é importante para que as crianças se tornem adultos seguros, e saibam seguir em frente com suas próprias dores”, reflete.

A diretora do Sinpro-DF Mônica Caldeira participou do mais recente Dia de Quem Cuida da Gente, realizado em 8 de julho. Assim como muitas daquelas crianças, ela também pertenceu a um arranjo familiar sem pai nem mãe. Mônica foi criada pela avó materna, que faleceu quando a hoje professora e sindicalista tinha apenas 15 anos.

“Era muito difícil para mim. Eu sempre gostei muito de dançar, de interpretar. E eu me apresentava para ninguém. Não tinha o Dia da Avó. E isso influenciou muito na minha personalidade e na minha aprendizagem. Na aprendizagem porque eu não me sentia pertencente à escola, não me identificava com os livros didáticos, que sempre traziam esse arranjo familiar composto por pai, mãe e filhos. Na minha personalidade, porque as apresentações que eu fazia reforçavam a ausência. Cresci com reflexos na autoestima, na coragem, no reconhecimento, questões que influenciam, inclusive, na aprendizagem”, relata.

Durante a festa do Dia de Quem Cuida da Gente, Mônica se emocionou não apenas por reviver a infância, mas por ver que aquelas crianças têm a oportunidade de crescer com inclusão, direito de todos e de todas. “É uma felicidade ter uma escola com esse pedagógico cuidadoso. Gera esperança”, afirma.

Monica Caldeira, diretora do Sinpro (esquerda), e Marilda Rosa, diretora da EC jJuscelino Kubitschek

 

Ferramenta pedagógica
O Dia de Quem Cuida da Gente também se configura como uma ferramenta pedagógica. A essência do projeto é trabalhada de forma transversal durante todo o ano, e os resultados são surpreendentes.

“Quando a gente fala de alguém da família, de alguém que cuida, a criança já vai construindo as suas atividades de desenho, pintura, trabalhando os eixos transversais que estão no currículo. O coral que as crianças participam, por exemplo, serve para a produção de texto. São coisas que instigam, que provocam, que trazem prazer; e isso favorece as aprendizagens”, explica a diretora da EC JK, Marilda Rosa.

“Trabalhamos muito a desconstrução da ideia de que a criança não aprende porque tem uma família desestruturada, que não a acompanha. A gente aproveita todo o tempo dela na escola para favorecer as aprendizagens”, diz.

Barreiras
A diretora da Escola Classe Juscelino Kubitschek Sol Nascente conta que a preparação para o Dia de Quem Cuida da Gente é longa. “Há todo um envolvimento, contato com a família, convencimento das famílias irem para dentro da escola”, diz.

Embora toda a disposição da equipe e a grandiosidade do projeto, são impostas barreiras à realização da ação.

“Nossa escola é nova, mas o espaço não é adequado. Todas as nossas atividades, por exemplo, são feitas em uma quadra esportiva. Mas a falta de recursos humanos é o nosso principal problema. Nossa escola não tem pessoas suficientes para dar conta de um trabalho desse âmbito. Então, a gente se desdobra, a gente faz coisa que nem é da nossa função”, diz a diretora da EC JK.

Oficina de pipa é uma das atividades realizadas no Dia de Quem Cuida da Gente

 

Atualmente, a unidade escolar que tem a demanda de mil estudantes – e mil famílias – conta apenas com cinco pessoas na equipe gestora, três coordenadoras, um pedagogo, uma orientadora educacional e 42 professores regentes. “Do grupo de professores, apenas nove são efetivos”, relata a Marilda Rosa.

Exemplo
A Escola Classe Juscelino Kubitschek Sol Nascente é uma referência para a comunidade do Sol Nascente. É neste espaço que as famílias – em todos os seus arranjos – se encontram, se divertem, são acolhidas.

“A comunidade é grata à escola. Aqui é baixíssimo o número de abandono. A escola é um espaço de referência”, conta com alegria a diretora da EC JK, Marilda Rosa.

Mas não são só os estudantes e suas famílias/cuidadores que têm a escola como espaço de aprendizado e afeto. A diretora da unidade, por exemplo, diz que a EC JK é uma “escola mágica”. “Eu tenho gratidão pela oportunidade. Estou quase finalizando meu ciclo, pois estou perto de aposentar, e com o coração cheio de alegria por ter contribuído com meu trabalho e com meu amor pela educação”, relata.

A EC JK está muito além de salas de aula, quadros, calendários, cronogramas. A maior lição da escola é saber viver a vida, e a construção desse aprendizado é mútuo, sem hierarquização. É a educação que liberta.

MATÉRIA EM LIBRAS