No Brasil, intolerância religiosa nega e tenta inibir cultura mestiça
Formalmente, o Brasil é visto como um país de paz religiosa. Este consenso ideológico, no entanto, é desafiado quando observamos religiões sendo, cotidianamente, discriminadas por adeptos de outros grupos religiosos e excluídas das políticas públicas do Estado. Neste contexto, religiões de ancestralidades africanas são os mais frequentes alvos, indicando que a intolerância religiosa é, sim, uma questão a enfrentar grandes desafios na sociedade brasileira.
País mestiço de partida, o Brasil abriga religiões cujas fronteiras se tocam e avançam umas sobre as outras, num notório sincretismo entre doutrinas, tradições e ritos. Neste caldo cultural e religioso, diversos conflitos de poder se instalam, cujos principais agentes ativos de ataques e enfrentamentos são religiosos de referências neopentecostais, aderindo a práticas de exorcismo e tipificações do mal como demoníacas.
Para discutir o assunto, a Adital entrevistou, com exclusividade, o psicólogo Rafael Oliveira Soares, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisador das populações afro-brasileiras. Ele é também diretor-executivo da Koinonia, entidade ecumênica que presta serviços aos movimentos sociais e é composta por pessoas de diferentes tradições religiosas.
O cientista social destaca que é um movimento comum no convívio entre culturas as migrações de pessoas entre grupos, religiosos ou não, gerando novas visões e expressões de sua fé. Porém, práticas religiosas fundamentalistas imporiam, pelo medo ou pela lógica de resultados, que há migrações incompatíveis, negando a cultura. Isto deságua, primordialmente, em religiões nascidas da mescla com elementos da África. De acordo com Rafael, aos embates de contexto religioso, associam-se o racismo e o preconceito, que figurariam como “instrumentos sociais de segregação de toda a sorte, especialmente da contínua redução das religiosidades dos negros e de suas herdeiras em ações do mal, ‘negras’ na magia, nas intenções e na fé”.
Nesse cenário, o Estado reconhece, de fato, a diversidade religiosa do país, mas não de direito. Uma discrepância no respeito às religiões prossegue em espaços e instituições que, ao contrário, deveriam zelar pela pluralidade de religiões e garantir sua proteção por meio de políticas públicas de diversos aspectos. Para Rafael, o Estado não admite, oficialmente, dialogar e estabelecer relações formais com religiões de ancestralidade africana.
O Brasil é composto por uma grande diversidade de expressões religiosas, que são todas partes da nossa cultura. Podemos dizer que essa pluralidade é reconhecida pela população?
Há diversas abordagens para essa questão. Em geral, pessoas da população, se perguntadas sobre a aceitação de todas as religiões, tendem a responder positivamente, haja vista o consenso ideológico de que somos um país de paz religiosa. Mas a realidade diverge disso. Em geral, esse mito de paz se reproduz como verdade, quando vemos promoções de eventos inter-religiosos. Ninguém gosta, diria eu, jocosamente, de sair mal na foto, nem mesmo os fundamentalistas mais arraigados. Mas esse é outro capítulo.
No entanto, a questão muda completamente de figura quando se pensa a convivência da diversidade a partir dos conflitos existentes no Brasil. Notoriamente, entram em cena em diversos conflitos, como agentes ativos, os religiosos de matriz neopentecostal — e digo assim porque, depois de mais de 30 anos, quase 40, de neopentecostalismo no Brasil, este já ganhou ares de uma matriz religiosa repetida em muitas vertentes eclesiais, tradicionais protestantes e evangélicas ou não.
A nosso ver, o neopentecostalismo começa como uma reforma dentro dos adeptos da Umbanda e não dentro do mundo evangélico. Que assim, ligeiramente, poderíamos explicar como uma religiosidade que, e a partir de um certo ponto, decidiu aderir ao exorcismo e à tipificação de toda aparência do mal como demoníaca — para isso, as fontes bíblicas e da cultura evangélicas estavam à mão para este fim. Reforma dentro da Umbanda, nesse sentido de que a Umbanda aceita que manifestações do mal podem ser acolhidas, tratadas, curadas e encaminhadas para uma vida melhor.
E um neopentecostal, acreditando nas mesmas coisas que um umbandista, rejeita a busca do equilíbrio entre o bem e o mal e cria sua versão de caricatura de demônios e eleva o exorcismo ao status de focal do seu fundamentalismo. Não é por acaso, então, que a negação das religiões de matriz afro-brasileira passe a ser a generalização e a própria identificação do mal por parte dos neopentecostais — saindo de um momento inicial da demonização de alguns seres encantados (orixás, inquices, voduncis, caboclos, entidades, conforme a tradição ou a nação) para a identificação de todas as manifestações de matriz africana como seres do mal.
Mutação esta esperada de um processo fundamentalista que se expande, mas também consequência de um crescimento das igrejas no mercado de fiéis, prioritariamente devotos que admitem, em sua visão de mundo, que o universo está habitado por encantados, os devotos de uma religiosidade de matriz africana principalmente ou simplesmente um brasileiro comum, formado em uma cultura que admite a existência de todas essas manifestações religiosas.
Essas reflexões colocam em perspectiva o que é cultural e o que não é.
Os instrumentos acessados pelos neopentecostais para a dinâmica do conflito estão presentes no mundo evangélico, mas não só. Estão presentes na cultura e não foram inventados pelos evangélicos. Trata-se de uma herança colonial, derivada da dominação de Estado feita pelo catolicismo. As formas de dominação latino-ibéricas, ao contrário das colonizações anglo-saxãs, não negaram nem os deuses nem a religiosidade dos colonizados, a lógica sempre foi da apresentação de um deus maior e vitorioso sobre todas as religiosidades e entidadesque habitam a colônia. Enfim: nada de novo em relação ao modo de guerra que estabelecem os neopentecostais.
Por último, e mais importante, na mesma cultura nasceu e sobrevive o racismo e o preconceito, instrumentos sociais de segregação de toda a sorte, especialmente da contínua redução das religiosidades dos negros e de suas herdeiras em ações do mal, “negras” na magia, nas intenções e na fé.
O sincretismo religioso do nosso país também desafia as fronteiras entre as religiões. De que maneira isso se expressa na convivência entre os grupos religiosos?
Há dois tipos de sincretismo. Aquele que a convivência entre as pessoas produz, como forma de compartilhar crenças, e aquele que se expressa nas relações de poder. O Brasil está mais eivado do segundo tipo, herdeiro de jogos de poder. Mas há uma tradição não planejada, de fazer o sincretismo refletido — ainda que a força tenha sido sua origem. Exemplo de sincretismo refletido é a própria constituição do Candomblé. Trata-se de uma religião de fontes africanas reinventadas aqui, na convivência com indígenas e com uma diversidade de africanos de diferentes nações, incorporando, inclusive, alguns elementos dos africanos muçulmanos trazidos para cá.
Outro exemplo é a tradução das características de santos católicos para as de entidades africanas — ressalto o tema das qualidades de cada um, pois isso é mais do que simplesmente ocultar a entidade africana e seus fundamentos em um santo do pau oco qualquer, para evitar a repressão, o santo católico foi escolhido, de forma refletida, para representar por similaridade o panteão africano.
Sobre fronteiras e o sincretismo que se produz sem conflitos, é bom lembrar que é necessária uma ampla aceitação da cultura brasileira, o que não é o caso dos missionários evangélicos que vieram para o Brasil. Sua tradição é a de negar a cultura, converter e não conviver, “a la colônias anglo-saxãs”. Isto é o que nos faz dizer que o neopentecostalismo não é herdeiro dessa tradição evangélica, porque ele não nega a cultura, apenas elenca aspectos que devem ser demonizados.
Já a Umbanda nasce de anos de sincretismo entre origens afros, religiosidades indígenas, kardecistas e outras a depender, com a vocação de ser a religião brasileira, conformada nos anos de 1930, no calor do nacionalismo vigente à época.
Nesses contextos, é natural que haja migrações de pessoas entre grupos que compartilham a mesma visão de mundo e isso ocorre muito, inclusive, entre expressões afro-brasileiras e ibérico-católicas, de certo modo isolando os evangélicos que ainda insistem em negar a cultura — o que não é o caso dos neopentecostais. O fundamentalismo não é barreira para a busca de migrações, mas impõe, pelo medo ou pela lógica de resultados, que há migrações incompatíveis e, é claro, falamos das religiões de matriz africana.
E pelo Estado? A diversidade religiosa é reconhecida de fato e de direito?
O Estado reconhece de fato, mas não de direito. Há uma discrepância original oriunda do século XIX, pelo menos, que deixou para a Igreja Católica (Icat) ares ou o status de religião oficial. Além disso, uma naturalização do Cristianismo como religião nacional e oficial em todos os espaços de função pública do Estado. Mas o pior está na falta de reconhecimento do mesmo direito para todas as religiões. Apenas para dar um exemplo, a imunidade fiscal, em geral, é aplicada à Icat, com alguns casos evangélicos oriundos de lobbies políticos, e uma grande ausência de tal reconhecimento para outras religiões — na maioria dos municípios, cobra-se Imposto Territorial Urbano de casas de religiões de matriz africana, o que não ocorre para a Icat e outros cristãos.
Há hierarquias/favorecimento/discriminação no trato com cada religião? Como isso se dá?
Além do já exposto acima, há os empecilhos ao atendimento religioso em hospitais, a falta de proteção a rituais funerários, também com impedimentos em cemitérios, fora o fato de que o Estado não admite, oficialmente, dialogar e estabelecer relações formais com religiões de matriz africana, exigindo que se constituam em associações civis.
O que pode ser considerado “intolerância religiosa”?
Desrespeito à liberdade de expressão, proibições de uso de vestimentas rituais em público, agressões físicas a pessoas e a monumentos religiosos, além do uso indevido de símbolos de outra religião com o fim de desmerecer, condenar ou mesmo demonizar a mesma.
Que diferenças há entre a intolerância religiosa no âmbito ideológico e no âmbito político?
No âmbito ideológico, estão a conformações do universo de compreensão do outro sobre o divino, sobre o sagrado, como em si erradas e passíveis de condenação, segundo os critérios de outras religiões. Em nível político, as questões se colocam basicamente no aspecto da igualdade de direitos, reconhecida e protegida pelo Estado (vide questão anterior), nos três poderes — fato raro no Brasil, haja vista, por exemplo, as bancadas no Congresso Nacional.
Há práticas de perseguição religiosa hoje no Brasil? Como ela pode se manifestar na contemporaneidade?
Infelizmente, já iniciamos esta entrevista apontando para o olhar sobre os conflitos, como necessário. Assim sendo, as diferentes formas de estruturas de conflito têm em foco, principalmente, os neopentecostais como autores. Avançando fortemente contra as religiões de matriz africana e também aumentando os casos de agressão a católicos e suas igrejas locais.
Não se pode imaginar que o foco da perseguição ou agressão seja diretamente ordenado pelos pastores em suas pregações, mas as consequências são quase que inevitáveis. Um pastor não manda que se quebrem os templos e os símbolos de outrem, mas a reiterada identificação dos outros como demônios leva a que membros mais exaltados tomem em suas próprias mãos a extirpação da fonte dos demônios.
Some-se a esse quadro outro, de caráter mais geral, quando se assimila exemplos relacionados com direitos sexuais, que acabam por gerar violência dupla, por intolerância religiosa e por, por exemplo, homofobia. O estado contemporâneo das religiosidades passa por essa fronteira crítica, dos fundamentalismos, que negam o outro. Se não buscarmos formas de superá-lo, podemos chegar à barbárie religiosa ou a um câncer social sem volta.
Quais tipos de religião mais sofrem de intolerância e perseguição no Brasil?
As religiões de matriz africana são as que mais sofrem perseguição e intolerância, com os casos recentes aumentados de agressões contra muçulmanos em janeiro (motivados pela questão do assassinato de profissionais da revista Charlie Hebdo, em Paris) e imagens e templos da Igreja Católica. Se tomarmos mais o ponto de vista ideológico, aí devemos ampliar para judeus, Fé’Bah’aí e Hare Krishna, todos estigmatizados pela história, com destaque para os judeus.
Ainda há falta de informação/preconceito entre a população sobre as inúmeras religiões que estão presentes no país? Esse desconhecimento sobre as variadas religiões seria uma questão ideológica?
Há pouca formação e não produção de informação. Digo que, no plano educacional, tanto informal-popular como no âmbito formal-escolar, temos uma grande lacuna. Há problemas ideológicos, sim, mas de caráter de representação a fé de cada, deixadas à mercê da maioria ideológica que se impõe à minoria. Nesse sentido, a intervenção do Estado no plano educacional é fundamental, focando-se nos ditames da Constituição e garantindo o pleno exercício e visibilidade das minorias numéricas. Infelizmente, a Constituição não foi respeitada nos Estados do Rio de Janeiro e Bahia, que adotaram o ensino confessional nas escolas.
Como avalia a atuação do Estado brasileiro hoje com relação à intolerância religiosa?
Muito lento e burocratizado. Há melhoras com o Disque 100, da Secretaria Nacional de Direitos humanos, e há o caso ímpar do Estatuto da Igualdade Racial e contra a Intolerância Religiosa na Bahia. O Estado deveria configurar e desenvolver um Plano Nacional de Superação da Intolerância Religiosa, envolvendo, além da educação, saúde, direitos humanos e os setores fiscais e de formação de todos os quadros do Estado sobre o tema, no mínimo, em todos os níveis federal, estadual e municipal.
Há políticas públicas no país que contribuam para avançar na questão? Quais?
Muito pouco, como já citamos, e referências à Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, que atentam para as religiões de matriz africana.
Quais são as lacunas dessas políticas?
A nosso ver, é o amplo despreparo dos quadros do Estado para aplicá-las, além, é claro, da presença do preconceito nessas pessoas que, ainda que saibam, não aderem ao respeito ao outro.
Por um longo período da história brasileira, as religiões e práticas religiosas que contêm elementos africanos foram perseguidas e criminalizadas no país — pelo Estado e por outros grupos religiosos. Como está essa realidade hoje?
Comentamos esse tema acima, e acrescentamos aqui que há casos de morte por agressão por intolerância no Brasil. Veja aqui.
Quais os avanços nessa questão? Que problemas ainda temos de superar no respeito esses religiões em específico?
Não há muitos avanços se não considerarmos os movimentos sociais de combate à intolerância, que vêm reproduzindo diferentes mobilizações por direitos em níveis municipais e estaduais, com caminhadas, seminários, participações em outras movimentações da sociedade civil. Esse movimento social tem conseguido algumas conquistas. Por exemplo: no Rio Grande do Sul, com um Conselho da Diversidade Religiosa, e no Estado do Rio de Janeiro, com uma Política Estadual de Combate à Intolerância Religiosa já elaborada, aguardando sanção governamental, e também as políticas setoriais na área de saúde no Estado de São Paulo, com o GT [Grupo de Trabalho] Religiões.
Há uma diversidade de problemas a superar ainda, e já citamos a formação e educação do Estado. Os mais críticos são de caráter cultural, são muito graves, porque levaram séculos de elaboração, em um caldo de preconceitos, dominação cristã e racismo. A superação desse quadro exige um esforço de diálogos a longo prazo, convivências entre diferentes e ações para fazer o Estado cumprir seu papel, nem que seja às expensas de atos do Ministério Público.
Recentemente, um caso que chamou a atenção no Estado do Ceará foi a formação de grupos de jovens em programa intitulado “Gladiadores do Altar”. Eles marcham, batem continência e gritam estarem “prontos para a batalha” durante culto na Igreja Universal do Reino de Deus. O caso foi interpretado por alguns como a formação de “milícias” pelo “fundamentalismo religioso”. Como lidar com isso?
A mobilização de religiosos e religiosas junto à sociedade civil teve como acolhida, no Rio de Janeiro e na Bahia, uma ação do Ministério Público para investigar e acompanhar esse movimento no interior da Igreja Universal do Reino de Deus – Iurd. O receio das religiões de matriz africana baseia-se nos diversos atos sofridos de agressões por neopentecostais, cuja Igreja Universal do Reino de Deus é uma das maiores, senão a maior.
Fala-se de investigar, pelos mesmos motivos que apresentamos, de que a oficialidade de uma igreja vai negar que tenha promovido atos de violência e que tais possíveis atos seriam individuais ou de grupos não autorizados. Mas as imagens dos tais guardiões e um futuro próximo de possíveis agressões não podem ser descartados. Outrossim, é a primeira vez que o belicismo de aparência fascista toma corpo em uma igreja, a Iurd, com forte potencial para a guerra religiosa. Isso só facilitará a responsabilização da instituição caso haja casos..
Moções e ações do Ministério Público não são suficientes, mas devem ser buscadas, pois, afinal, as religiões de matriz africana não têm sido contadas entre as maiorias religiosas, mas não se pode negar que são parte da maioria que construiu nossa cultura brasileira.
(Da Rede Brasil Atual)
Para discutir o assunto, a Adital entrevistou, com exclusividade, o psicólogo Rafael Oliveira Soares, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisador das populações afro-brasileiras. Ele é também diretor-executivo da Koinonia, entidade ecumênica que presta serviços aos movimentos sociais e é composta por pessoas de diferentes tradições religiosas.
O cientista social destaca que é um movimento comum no convívio entre culturas as migrações de pessoas entre grupos, religiosos ou não, gerando novas visões e expressões de sua fé. Porém, práticas religiosas fundamentalistas imporiam, pelo medo ou pela lógica de resultados, que há migrações incompatíveis, negando a cultura. Isto deságua, primordialmente, em religiões nascidas da mescla com elementos da África. De acordo com Rafael, aos embates de contexto religioso, associam-se o racismo e o preconceito, que figurariam como “instrumentos sociais de segregação de toda a sorte, especialmente da contínua redução das religiosidades dos negros e de suas herdeiras em ações do mal, ‘negras’ na magia, nas intenções e na fé”.
Nesse cenário, o Estado reconhece, de fato, a diversidade religiosa do país, mas não de direito. Uma discrepância no respeito às religiões prossegue em espaços e instituições que, ao contrário, deveriam zelar pela pluralidade de religiões e garantir sua proteção por meio de políticas públicas de diversos aspectos. Para Rafael, o Estado não admite, oficialmente, dialogar e estabelecer relações formais com religiões de ancestralidade africana.
O Brasil é composto por uma grande diversidade de expressões religiosas, que são todas partes da nossa cultura. Podemos dizer que essa pluralidade é reconhecida pela população?
Há diversas abordagens para essa questão. Em geral, pessoas da população, se perguntadas sobre a aceitação de todas as religiões, tendem a responder positivamente, haja vista o consenso ideológico de que somos um país de paz religiosa. Mas a realidade diverge disso. Em geral, esse mito de paz se reproduz como verdade, quando vemos promoções de eventos inter-religiosos. Ninguém gosta, diria eu, jocosamente, de sair mal na foto, nem mesmo os fundamentalistas mais arraigados. Mas esse é outro capítulo.
No entanto, a questão muda completamente de figura quando se pensa a convivência da diversidade a partir dos conflitos existentes no Brasil. Notoriamente, entram em cena em diversos conflitos, como agentes ativos, os religiosos de matriz neopentecostal — e digo assim porque, depois de mais de 30 anos, quase 40, de neopentecostalismo no Brasil, este já ganhou ares de uma matriz religiosa repetida em muitas vertentes eclesiais, tradicionais protestantes e evangélicas ou não.
A nosso ver, o neopentecostalismo começa como uma reforma dentro dos adeptos da Umbanda e não dentro do mundo evangélico. Que assim, ligeiramente, poderíamos explicar como uma religiosidade que, e a partir de um certo ponto, decidiu aderir ao exorcismo e à tipificação de toda aparência do mal como demoníaca — para isso, as fontes bíblicas e da cultura evangélicas estavam à mão para este fim. Reforma dentro da Umbanda, nesse sentido de que a Umbanda aceita que manifestações do mal podem ser acolhidas, tratadas, curadas e encaminhadas para uma vida melhor.
E um neopentecostal, acreditando nas mesmas coisas que um umbandista, rejeita a busca do equilíbrio entre o bem e o mal e cria sua versão de caricatura de demônios e eleva o exorcismo ao status de focal do seu fundamentalismo. Não é por acaso, então, que a negação das religiões de matriz afro-brasileira passe a ser a generalização e a própria identificação do mal por parte dos neopentecostais — saindo de um momento inicial da demonização de alguns seres encantados (orixás, inquices, voduncis, caboclos, entidades, conforme a tradição ou a nação) para a identificação de todas as manifestações de matriz africana como seres do mal.
Mutação esta esperada de um processo fundamentalista que se expande, mas também consequência de um crescimento das igrejas no mercado de fiéis, prioritariamente devotos que admitem, em sua visão de mundo, que o universo está habitado por encantados, os devotos de uma religiosidade de matriz africana principalmente ou simplesmente um brasileiro comum, formado em uma cultura que admite a existência de todas essas manifestações religiosas.
Essas reflexões colocam em perspectiva o que é cultural e o que não é.
Os instrumentos acessados pelos neopentecostais para a dinâmica do conflito estão presentes no mundo evangélico, mas não só. Estão presentes na cultura e não foram inventados pelos evangélicos. Trata-se de uma herança colonial, derivada da dominação de Estado feita pelo catolicismo. As formas de dominação latino-ibéricas, ao contrário das colonizações anglo-saxãs, não negaram nem os deuses nem a religiosidade dos colonizados, a lógica sempre foi da apresentação de um deus maior e vitorioso sobre todas as religiosidades e entidadesque habitam a colônia. Enfim: nada de novo em relação ao modo de guerra que estabelecem os neopentecostais.
Por último, e mais importante, na mesma cultura nasceu e sobrevive o racismo e o preconceito, instrumentos sociais de segregação de toda a sorte, especialmente da contínua redução das religiosidades dos negros e de suas herdeiras em ações do mal, “negras” na magia, nas intenções e na fé.
O sincretismo religioso do nosso país também desafia as fronteiras entre as religiões. De que maneira isso se expressa na convivência entre os grupos religiosos?
Há dois tipos de sincretismo. Aquele que a convivência entre as pessoas produz, como forma de compartilhar crenças, e aquele que se expressa nas relações de poder. O Brasil está mais eivado do segundo tipo, herdeiro de jogos de poder. Mas há uma tradição não planejada, de fazer o sincretismo refletido — ainda que a força tenha sido sua origem. Exemplo de sincretismo refletido é a própria constituição do Candomblé. Trata-se de uma religião de fontes africanas reinventadas aqui, na convivência com indígenas e com uma diversidade de africanos de diferentes nações, incorporando, inclusive, alguns elementos dos africanos muçulmanos trazidos para cá.
Outro exemplo é a tradução das características de santos católicos para as de entidades africanas — ressalto o tema das qualidades de cada um, pois isso é mais do que simplesmente ocultar a entidade africana e seus fundamentos em um santo do pau oco qualquer, para evitar a repressão, o santo católico foi escolhido, de forma refletida, para representar por similaridade o panteão africano.
Sobre fronteiras e o sincretismo que se produz sem conflitos, é bom lembrar que é necessária uma ampla aceitação da cultura brasileira, o que não é o caso dos missionários evangélicos que vieram para o Brasil. Sua tradição é a de negar a cultura, converter e não conviver, “a la colônias anglo-saxãs”. Isto é o que nos faz dizer que o neopentecostalismo não é herdeiro dessa tradição evangélica, porque ele não nega a cultura, apenas elenca aspectos que devem ser demonizados.
Já a Umbanda nasce de anos de sincretismo entre origens afros, religiosidades indígenas, kardecistas e outras a depender, com a vocação de ser a religião brasileira, conformada nos anos de 1930, no calor do nacionalismo vigente à época.
Nesses contextos, é natural que haja migrações de pessoas entre grupos que compartilham a mesma visão de mundo e isso ocorre muito, inclusive, entre expressões afro-brasileiras e ibérico-católicas, de certo modo isolando os evangélicos que ainda insistem em negar a cultura — o que não é o caso dos neopentecostais. O fundamentalismo não é barreira para a busca de migrações, mas impõe, pelo medo ou pela lógica de resultados, que há migrações incompatíveis e, é claro, falamos das religiões de matriz africana.
E pelo Estado? A diversidade religiosa é reconhecida de fato e de direito?
O Estado reconhece de fato, mas não de direito. Há uma discrepância original oriunda do século XIX, pelo menos, que deixou para a Igreja Católica (Icat) ares ou o status de religião oficial. Além disso, uma naturalização do Cristianismo como religião nacional e oficial em todos os espaços de função pública do Estado. Mas o pior está na falta de reconhecimento do mesmo direito para todas as religiões. Apenas para dar um exemplo, a imunidade fiscal, em geral, é aplicada à Icat, com alguns casos evangélicos oriundos de lobbies políticos, e uma grande ausência de tal reconhecimento para outras religiões — na maioria dos municípios, cobra-se Imposto Territorial Urbano de casas de religiões de matriz africana, o que não ocorre para a Icat e outros cristãos.
Há hierarquias/favorecimento/discriminação no trato com cada religião? Como isso se dá?
Além do já exposto acima, há os empecilhos ao atendimento religioso em hospitais, a falta de proteção a rituais funerários, também com impedimentos em cemitérios, fora o fato de que o Estado não admite, oficialmente, dialogar e estabelecer relações formais com religiões de matriz africana, exigindo que se constituam em associações civis.
O que pode ser considerado “intolerância religiosa”?
Desrespeito à liberdade de expressão, proibições de uso de vestimentas rituais em público, agressões físicas a pessoas e a monumentos religiosos, além do uso indevido de símbolos de outra religião com o fim de desmerecer, condenar ou mesmo demonizar a mesma.
Que diferenças há entre a intolerância religiosa no âmbito ideológico e no âmbito político?
No âmbito ideológico, estão a conformações do universo de compreensão do outro sobre o divino, sobre o sagrado, como em si erradas e passíveis de condenação, segundo os critérios de outras religiões. Em nível político, as questões se colocam basicamente no aspecto da igualdade de direitos, reconhecida e protegida pelo Estado (vide questão anterior), nos três poderes — fato raro no Brasil, haja vista, por exemplo, as bancadas no Congresso Nacional.
Há práticas de perseguição religiosa hoje no Brasil? Como ela pode se manifestar na contemporaneidade?
Infelizmente, já iniciamos esta entrevista apontando para o olhar sobre os conflitos, como necessário. Assim sendo, as diferentes formas de estruturas de conflito têm em foco, principalmente, os neopentecostais como autores. Avançando fortemente contra as religiões de matriz africana e também aumentando os casos de agressão a católicos e suas igrejas locais.
Não se pode imaginar que o foco da perseguição ou agressão seja diretamente ordenado pelos pastores em suas pregações, mas as consequências são quase que inevitáveis. Um pastor não manda que se quebrem os templos e os símbolos de outrem, mas a reiterada identificação dos outros como demônios leva a que membros mais exaltados tomem em suas próprias mãos a extirpação da fonte dos demônios.
Some-se a esse quadro outro, de caráter mais geral, quando se assimila exemplos relacionados com direitos sexuais, que acabam por gerar violência dupla, por intolerância religiosa e por, por exemplo, homofobia. O estado contemporâneo das religiosidades passa por essa fronteira crítica, dos fundamentalismos, que negam o outro. Se não buscarmos formas de superá-lo, podemos chegar à barbárie religiosa ou a um câncer social sem volta.
Quais tipos de religião mais sofrem de intolerância e perseguição no Brasil?
As religiões de matriz africana são as que mais sofrem perseguição e intolerância, com os casos recentes aumentados de agressões contra muçulmanos em janeiro (motivados pela questão do assassinato de profissionais da revista Charlie Hebdo, em Paris) e imagens e templos da Igreja Católica. Se tomarmos mais o ponto de vista ideológico, aí devemos ampliar para judeus, Fé’Bah’aí e Hare Krishna, todos estigmatizados pela história, com destaque para os judeus.
Ainda há falta de informação/preconceito entre a população sobre as inúmeras religiões que estão presentes no país? Esse desconhecimento sobre as variadas religiões seria uma questão ideológica?
Há pouca formação e não produção de informação. Digo que, no plano educacional, tanto informal-popular como no âmbito formal-escolar, temos uma grande lacuna. Há problemas ideológicos, sim, mas de caráter de representação a fé de cada, deixadas à mercê da maioria ideológica que se impõe à minoria. Nesse sentido, a intervenção do Estado no plano educacional é fundamental, focando-se nos ditames da Constituição e garantindo o pleno exercício e visibilidade das minorias numéricas. Infelizmente, a Constituição não foi respeitada nos Estados do Rio de Janeiro e Bahia, que adotaram o ensino confessional nas escolas.
Como avalia a atuação do Estado brasileiro hoje com relação à intolerância religiosa?
Muito lento e burocratizado. Há melhoras com o Disque 100, da Secretaria Nacional de Direitos humanos, e há o caso ímpar do Estatuto da Igualdade Racial e contra a Intolerância Religiosa na Bahia. O Estado deveria configurar e desenvolver um Plano Nacional de Superação da Intolerância Religiosa, envolvendo, além da educação, saúde, direitos humanos e os setores fiscais e de formação de todos os quadros do Estado sobre o tema, no mínimo, em todos os níveis federal, estadual e municipal.
Há políticas públicas no país que contribuam para avançar na questão? Quais?
Muito pouco, como já citamos, e referências à Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, que atentam para as religiões de matriz africana.
Quais são as lacunas dessas políticas?
A nosso ver, é o amplo despreparo dos quadros do Estado para aplicá-las, além, é claro, da presença do preconceito nessas pessoas que, ainda que saibam, não aderem ao respeito ao outro.
Por um longo período da história brasileira, as religiões e práticas religiosas que contêm elementos africanos foram perseguidas e criminalizadas no país — pelo Estado e por outros grupos religiosos. Como está essa realidade hoje?
Comentamos esse tema acima, e acrescentamos aqui que há casos de morte por agressão por intolerância no Brasil. Veja aqui.
Quais os avanços nessa questão? Que problemas ainda temos de superar no respeito esses religiões em específico?
Não há muitos avanços se não considerarmos os movimentos sociais de combate à intolerância, que vêm reproduzindo diferentes mobilizações por direitos em níveis municipais e estaduais, com caminhadas, seminários, participações em outras movimentações da sociedade civil. Esse movimento social tem conseguido algumas conquistas. Por exemplo: no Rio Grande do Sul, com um Conselho da Diversidade Religiosa, e no Estado do Rio de Janeiro, com uma Política Estadual de Combate à Intolerância Religiosa já elaborada, aguardando sanção governamental, e também as políticas setoriais na área de saúde no Estado de São Paulo, com o GT [Grupo de Trabalho] Religiões.
Há uma diversidade de problemas a superar ainda, e já citamos a formação e educação do Estado. Os mais críticos são de caráter cultural, são muito graves, porque levaram séculos de elaboração, em um caldo de preconceitos, dominação cristã e racismo. A superação desse quadro exige um esforço de diálogos a longo prazo, convivências entre diferentes e ações para fazer o Estado cumprir seu papel, nem que seja às expensas de atos do Ministério Público.
Recentemente, um caso que chamou a atenção no Estado do Ceará foi a formação de grupos de jovens em programa intitulado “Gladiadores do Altar”. Eles marcham, batem continência e gritam estarem “prontos para a batalha” durante culto na Igreja Universal do Reino de Deus. O caso foi interpretado por alguns como a formação de “milícias” pelo “fundamentalismo religioso”. Como lidar com isso?
A mobilização de religiosos e religiosas junto à sociedade civil teve como acolhida, no Rio de Janeiro e na Bahia, uma ação do Ministério Público para investigar e acompanhar esse movimento no interior da Igreja Universal do Reino de Deus – Iurd. O receio das religiões de matriz africana baseia-se nos diversos atos sofridos de agressões por neopentecostais, cuja Igreja Universal do Reino de Deus é uma das maiores, senão a maior.
Fala-se de investigar, pelos mesmos motivos que apresentamos, de que a oficialidade de uma igreja vai negar que tenha promovido atos de violência e que tais possíveis atos seriam individuais ou de grupos não autorizados. Mas as imagens dos tais guardiões e um futuro próximo de possíveis agressões não podem ser descartados. Outrossim, é a primeira vez que o belicismo de aparência fascista toma corpo em uma igreja, a Iurd, com forte potencial para a guerra religiosa. Isso só facilitará a responsabilização da instituição caso haja casos..
Moções e ações do Ministério Público não são suficientes, mas devem ser buscadas, pois, afinal, as religiões de matriz africana não têm sido contadas entre as maiorias religiosas, mas não se pode negar que são parte da maioria que construiu nossa cultura brasileira.
(Da Rede Brasil Atual)