Nota de pesar: Morre Nêgo Bispo, intelectual quilombola criador do “contracolonialismo”

 

 

Fogo!… Queimaram Palmares, Nasceu Canudos

Fogo!… Queimaram Palmares,

Nasceu Canudos.

Fogo!… Queimaram Canudos,

Nasceu Caldeirões.

Fogo!… Queimaram Caldeirões,

Nasceu Pau de Colher.

Fogo!… Queimaram Pau de Colher…

E nasceram, e nasceram tantas outras comunidades que os vão cansar se continuarem queimando.  

Porque mesmo que queimam a escrita,

Não queimarão a oralidade.

Mesmo que queimem os símbolos,

Não queimarão os significados.

Mesmo queimando o nosso povo

Não queimarão a ancestralidade.

(Antônio Bispo dos Santos. Este é um dos poemas de Nêgo Bispo para repensar a colonização)

 

 

O Sinpro-DF lamenta a falecimento de Antônio Bispo dos Santos, ocorrido nesse domingo (3/12),  no Quilombo Saco-Curtume, em São João do Piauí (PI), aos 63 anos, vítima de uma parada cardíaca. O velório acontece nesta segunda-feira (4) e o sepultamento está previsto para as 17h, no quilombo onde ele viveu, no Piauí.

Mais do que um símbolo da resistência negra, o Brasil perdeu um de seus maiores intelectuais quilombolas. Conhecido também como Nêgo Bispo, ele passou mal durante à tarde e foi levado ao Hospital Estadual Teresinha Nunes de Barros, localizado na cidade de São João do Piauí — a 450 km da capital Teresina. Lá, teve duas paradas cardíacas e não resistiu. A causa ainda não foi revelada.

O Sinpro lembra que Bispo deixa um legado imenso no campo do conhecimento e da sabedoria. Ele que semeou a contracolonização e sempre se posicionou como um mensageiro e embaixador do povo quilombola. Intelectual nordestino e quilombola, Bispo se alfabetizou para defender a sua comunidade e cultivou semeou em todo o País a semente do anticolonialismo e da soberania nacional.

Bispo se autodenominava “lavrador de palavras” e traduzia, em sua obra, o olhar de quem nasceu em um quilombo sobre os modos de habitar e de se relacionar com a terra. Filósofo, poeta, escritor, pensador, professor e ativista social e político. Ele ganhou notoriedade em movimentos sociais, na década de 1990, quando chegou a se filiar a partidos políticos, que abandonou anos depois. Desde então, se voltou para a defesa dos povos quilombolas.

Escreveu com uma profunda produção em todos os campos das letras, ele escreveu poesias, artigos e livros sobre a história de luta do povo negro e propôs o conceito de contracolonialismo, uma atitude de reforçar a cultura, práticas, organização social, todas as manifestações coletivas de povos colonizados contra os esforços de imposição dos colonizadores. Segundo o conceito criado por ele, a contracolonização seria o “antídoto” contra a colonização, que definia como “veneno”.

ele atuou em organizações como a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e em movimentos sociais do Piauí e, em seu pensamento, fazia uma comparação entre o modo de vida dos quilombos e o da sociedade nacional em seu último livro “A Terra Dá, A Terra Quer” (Ubu, 2023). Nessa obra, ele também propôs um novo modo de viver, a contracolonização, em resposta a problemas atuais ligados à ecologia, ao clima, ao trabalho e à alimentação.

“Colonizar um povo é como adestrar um boi. Ambas ações consistem na remoção da identidade, mudança de território e condenação do modo de vida alheio”: essa é a associação que o pensador fez em seu livro. O contracolonialismo, segundo ele, seria a recusa de um povo à colonização, o que seria praticado há séculos por africanos, indígenas e quilombolas.

Em uma entrevista à Folha de S. Paulo, o pensador chegou a dizer que não via diferença entre a esquerda e a direita na relação com os quilombolas. “A direita e a esquerda são maquinistas que dirigem o mesmo trem colonialista. Escolher o vagão permite decidir os passageiros com quem você vai viajar. Mas a viagem é a mesma, vai para o mesmo caminho”, disse.

Segundo informações o jornal, a editora Companhia das Letras prepara um novo livro que reúne o pensamento do líder quilombola. “Colonização e Quilombo, Milagres e Feitiços”, trabalhado com a editora há 2 anos e meio e deverá sair em 2024. O Sinpro lamenta e se solidariza com a família, amigos, todos(as) os(as) quilombolas e toda a população negra e todos(as) os(as) brasileiros(as) que tem em Nêgo Bispo uma referência.

 

Nêgo Bispo, presente!

 

Com informações Folha de S. Paulo, G1 e USP.

 


Vida e obra de Nêgo Bispo

 

A Enciclopédia de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) apresenta um breve currículo de Antonio Bispo dos Santos. Confira e conheça a importância deste nordestino quilombola para o Brasil e o mundo.

 

AUTOR | Antonio Bispo dos Santos

 

Antonio Bispo dos Santos nasceu em 1959, no Vale do Rio Berlengas, Piauí. Formou-se pelos ensinamentos de mestras e mestres de ofício do quilombo Saco-Curtume, município de São João do Piauí; completou o ensino fundamental, tornando-se o primeiro de sua família a ter acesso à alfabetização. Nego Bispo, como também é conhecido, é autor de artigos, poemas e dos livros Quilombos, modos e significados (2007) e Colonização, Quilombos: modos e significados (2015). Como liderança quilombola, atuou na Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ/PI) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). Destaca-se por sua atuação política e militância, que estão fortemente relacionadas à sua formação quilombola, evidenciada por uma cosmovisão a partir da qual os povos constroem, em defesa de seus territórios tradicionais, símbolos, significações e modos de vida.

O pensamento de Bispo constrói-se a partir da experiência e concepções das comunidades quilombolas e dos movimentos sociais de luta pela terra. Dessa perspectiva, desenvolveu algumas proposições epistemológicas a partir dos saberes tradicionais dos povos “afro-pindorâmicos”, segundo a sua expressão para referir-se aos descendentes africanos e indígenas/pindorâmicos em substituição às designações empregadas pelo colonizador. Seu pensamento vem despertando debates dentro e fora da academia, sobretudo a partir do conceito de “contracolonização”, que postula uma relação entre regimes sociopolíticos e cosmológicos. O autor compreende a colonização como um processo etnocêntrico que busca substituir uma cultura pela outra, por meio de práticas de invasão, expropriação e etnocídio. Como sugere o pensador quilombola, o conceito de “contracolonização” inscreve no processo colonial a ressignificação da matriz cultural dos povos e de suas práticas tradicionais, de modo a ancorar a enunciação e as formas de resistência à colonização.

Colonização, quilombos: modos e significações (2015) propõe um novo ponto de vista acerca dos estudos decoloniais, ainda que não dialogue diretamente com essa literatura. A obra, que traz ensaios e poemas, elabora uma perspectiva própria sobre as formações “orgânicas” – como Bispo nomeia esse regime de subjetivação – das comunidades tradicionais, retomando a história da resistência de Palmares, Canudos, Caldeirões e Pau de Colher. A crítica epistemológica que o livro apresenta é engendrada pela cosmovisão dos povos contracolonizadores, indissociável de suas práticas. A contracolonização localiza-se, portanto, no âmbito de um debate teórico e prático, oferecendo instrumentos para examinar os modos de resistência de povos negros e indígenas que não se permitiram colonizar. A perspectiva crítica do autor repousa na experiência “orgânica” e política do povo quilombola, de forma que o pensamento contracolonialista mostra-se uma prática que se dá por meio da cosmovisão afro-pindorâmica.

Outro pilar que constitui o conceito de contracolonização é a relação entre discurso e prática, permitindo o que o autor chama de “confluência”, isto é a convivência entre elementos diferentes entre si e que, ainda assim, se aproximam em suas cosmovisões. Segundo ele, a confluência é o que tem mobilizado o pensamento dos povos tradicionais, oriundo da cosmovisão pluralista dos povos politeístas. A “transfluência”, em contrapartida, rege as “relações de transformação dos elementos da natureza”, estando associada a processos, discursos e práticas derivados da concepção monista, vinculados a um pensamento eurocêntrico e monoteísta. Esses dois pontos são importantes para a compreensão do que o autor denomina “pensamento orgânico” e “pensamento sintético”: o orgânico se refere ao saber constitutivo do desenvolvimento do ser, à organicidade advinda do processo de subjetivação e potência empírica da trajetória dos povos afro-pindorâmicos; o sintético seria o saber canonizado na academia, caracterizado por uma prática colonialista, constituindo-se pela ênfase no “ter.” Enquanto o orgânico é o saber da confluência, o sintético seria o da transfluência.

O pensamento de Nego Bispo busca oferecer contribuições políticas e acadêmicas aos movimentos de luta pela terra, com destaque para as organizações político-sociais dos povos indígenas e quilombolas. Ao reforçar as manifestações coletivas e ao colocar o acento político na oralidade, vem ocupando um lugar na reestruturação conceitual dos estudos decoloniais. Impulsionando o debate acadêmico, Bispo realiza palestras, conferências e cursos, tendo participado como professor e mestre convidado do projeto Encontro de Saberes (UNB/INCT). Ministrou aulas no Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Como citar este verbete: PORFÍRIO, Iago & OLIVEIRA, Lucas Timoteo de. 2021. “Antonio Bispo dos Santos”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/antonio-bispo-dos-santos ISSN: 2676-038X (online). Ficha catalográfica de Antônio Bispo dos Santos. FFLCH. Acesse: https://ea.fflch.usp.br/autor/antonio-bispo-dos-santos

 

No card de divulgação da nota de pesar, o Sinpro traz um trecho do poema a seguir:


Não fomos colonizados


“Quando nós falamos tagarelando

E escrevemos mal ortografado

Quando nós cantamos desafinando

E dançamos descompassado

Quando nós pintamos borrando

E desenhamos enviesado

Não é por que estamos errando

É porque não fomos colonizados”.

Clique no link a seguir e acesse algumas obras de Antônio Bispo dos Santos:  < https://livroecafe.com/2023/07/3-poesias-de-antonio-bispo-dos-santos-para-repensar-a-colonizacao/>

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