Não é crise, é projeto: reformas estruturais que reduzem o Estado restringem o direito à educação
Nos últimos cinco anos, as reformas que reduziram o papel do Estado brasileiro na garantia dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais (DHESCA) impactaram negativamente nos avanços nas áreas sociais conquistados nas últimas décadas e precarizaram os serviços públicos. Com características de complementaridade e continuidade, as medidas alinhadas às demandas das elites econômicas atacam as bases do funcionalismo público – incluindo da educação pública – e reforçam as desigualdades estruturais brasileiras, situação que se torna ainda mais grave no contexto de pandemia.
É o que mostra o estudo “Não é uma crise, é um projeto: os efeitos das Reformas do Estado entre 2016 e 2021 na educação” produzido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, com apoio da organização internacional ActionAid, e com colaboração técnica da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), da Plataforma DHESCA, e da coalizão Direitos Valem Mais.
O estudo será lançado internacionalmente no dia 12 de outubro, através de link do Zoom da ActionAid, e nacionalmente no dia 13, em debate transmitido pelas redes sociais da Campanha. Mais informações abaixo.
O estudo é a colaboração brasileira a uma pesquisa global coordenada pela ActionAid sobre como políticas de austeridade estão precarizando o trabalho dos servidores públicos, em especial da educação, em diversos países onde a organização atua. Neste esforço, os países mapeiam os impactos que as reformas de austeridade fiscal provocadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) causaram aos direitos sociais em seus contextos.
“Faz anos que estamos denunciando e atuando sistematicamente contra uma série de reformas propostas no Executivo e Legislativo federais, que têm minado os direitos sociais, notadamente o direito à educação. Esse estudo vem coadunar com esse trabalho, mostrando em detalhe como se trata de uma agenda ampla, combinada e complementar, de reformas que se chocam com os preceitos constitucionais de direitos e pretende deformar o Estado; e está em curso”, afirmou Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha e uma das coordenadoras do estudo brasileiro.
Ela analisa, também, que é uma proposta muito íntima de agendas internacionais neoliberais, uma continuidade das reformas do Consenso de Washington, amplamente apoiadas pelo FMI, que ainda não foram completamente superadas, apesar do reconhecimento internacional de acadêmicos e chefes de Estado, assim como de organismos internacionais, de que é “uma agenda falida, tanto para os direitos humanos quanto para a economia global”.
“O acesso à educação é uma condição fundamental para superar a pobreza. Por isso, é mais que urgente denunciar todo o projeto de desconstrução das políticas públicas educacionais que está em curso no Brasil, especialmente nesse momento de crises econômica, climática e humanitária. A pesquisa confirma essa urgência de revisitar o papel redistributivo fundamental dos estados e de reimaginar o setor público, numa discussão realmente comprometida com o futuro do país”, afirma Ana Paula Brandão, diretora Programática da ActionAid.
O estudo brasileiro detalha parte das Reformas de Estado implementadas e em tramitação no país e seus impactos na educação. O marco escolhido foi a ruptura democrática, em 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff e a aprovação da EC 95/2016 (“Teto de Gastos”), até o momento atual, em que há uma série de reformas (trabalhista, tributária e administrativa) aprovadas ou em debate no Congresso Nacional. A análise sistematiza informações essenciais e analisa as justificativas apresentadas para as medidas, além de apresentar contra-argumentos que indicam os impactos e riscos das reformas para as áreas sociais e, mais detidamente, para a educação.
“Todas as medidas estudadas têm múltiplas camadas, como a redução do papel do Estado, a precarização dos vínculos trabalhistas e o desmonte dos serviços públicos. O estudo revela que os impactos dessas medidas na educação são significativos e apresentam riscos tanto para o financiamento das políticas educacionais como para a carreira e condições de trabalho do professorado brasileiro. Num contexto de pandemia, quando os indicadores sociais brasileiros apresentaram significativa piora, é urgente pautar o investimento robusto em políticas públicas que assegurem os direitos garantidos de forma universal pela Constituição Federal de 1988, como o direito à educação das e dos estudantes brasileiros”, afirma Vanessa Pipinis, uma das coordenadoras do estudo.
O título do projeto remete à frase de um dos grandes pensadores da educação brasileira, Darcy Ribeiro: “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”. Refere-se às estruturas sociais segregacionistas presentes no Brasil, cujas raízes Ribeiro procurou identificar e combater.
DIA DA MENINA (11) / DIA DA CRIANÇA (12) / DIA DO PROFESSOR (15)
As três efemérides acima que acontecem na semana de lançamento do estudo são representativas dos públicos mais atingidos pelas políticas de austeridade. O processo de desinvestimento em educação nos últimos anos impacta diretamente o direito à educação de crianças e adolescentes, por não ser possível alcançar as previsões legais do PNE (Plano Nacional da Educação) e do recém-constitucionalizado CAQ (Custo Aluno-Qualidade), que também ficam inviabilizadas até aqui sob políticas de austeridade, barrando a garantia de uma educação de qualidade no país.
O professorado, parte significativa dos servidores públicos, enfrenta graves ameaças, como a da Reforma Administrativa (PEC 32/2020). Por ser uma uma proposta estrutural de precarização do serviço público, ela pode atingir diretamente as e os servidores na perda da estabilidade, na proteção e garantia de direitos, na progressão da carreira, nas formas de contratação e no regime previdenciário e sindical. A precarização das condições de trabalho também apresenta riscos à prática pedagógica e, inclusive, à liberdade de cátedra.
As meninas, em especial as meninas negras, são especialmente impactadas pelas reformas de Estado. A EC 95/2016, do “Teto de Gastos”, por exemplo, ao congelar por 20 anos investimentos em áreas sociais, fragiliza ainda mais a capacidade de atendimento do Estado a grupos vulnerabilizados da população, justamente num período de agravamento de desigualdades e violências contra meninas e mulheres negras.
O tema será detalhado no Caderno 2 do estudo, em que as variáveis relacionadas a raça e gênero farão parte da análise das políticas de austeridade. O projeto seguirá aprofundando análises das medidas de austeridade na educação e já estão previstos novos cadernos temáticos para 2022, com temas emergentes na área, como a militarização da educação. A série pretende trazer ao público interessado análises temáticas na área educacional.
ARGUMENTOS DESBANCADOS
Alguns dos argumentos apresentados no estudo desbancam parte do discurso de corte de gastos públicos. O principal deles, de que o Estado brasileiro é inchado, não se sustenta. No setor público, o percentual de vínculos se mantém estável em torno de 5,8% desde 2012. Portanto, é incorreto afirmar que houve uma explosão do serviço público brasileiro nos últimos anos, pois a grande maioria dos empregos gerados no Brasil está no setor privado.
Ao contrário do que a agenda reformista afirma, a expansão da capacidade de atendimento do Estado brasileiro se deu através de vínculos públicos com ensino superior completo que, entre 1986 e 2017, cresceu de pouco mais de 9 mil para 5,3 milhões. Trata-se, portanto, de trabalhadores e trabalhadoras com alto grau de escolarização.
Apesar do aumento da escolarização entre 1986 e 2017, a média real salarial no serviço público municipal teve aumento médio real de 1,1% ao ano no mesmo período, passando de R$ 2.000 para R$ 2.800. Cerca de 60% das e dos funcionários públicos do Brasil são do âmbito municipal.
Em 2017, a remuneração média bruta mensal de docentes da rede municipal de ensino era de apenas R$ 3.111,10, muito aquém ao valor conferido a outras ocupações (Dados: Censo da Educação Básica/Inep/MEC). Educadoras/es e profissionais da saúde correspondem a 40% dos servidores municipais, com remunerações muito inferiores aos demais níveis federativos e poderes da União.
O maior aumento salarial no período analisado ocorreu de fato no Poder Judiciário com crescimento acumulado de 82%. Portanto, o discurso de que servidores públicos recebam muito mais que trabalhadores no setor privado apresenta uma falácia.
Os países da OCDE, a título de comparação, gastam 2,2 vezes mais que o Brasil com servidores. Em relação ao gasto per capita em saúde e educação, o investimento brasileiro também é muito inferior, inclusive em relação aos demais países emergentes. Com relação à educação, por exemplo, em 2018, o gasto público brasileiro por aluno de instituições públicas do ensino fundamental e médio era, em média, em torno de US$ 3,800.00, por ano, menos da metade da média dos países da OCDE (US$ 9,300.00) (Dados: Education at a Glance, 2019).
Edição de 2021 do relatório Education at Glance mostra que professores dos anos finais do ensino fundamental têm o menor salário inicial (US$ 13,9 mil anuais) entre os 40 países analisados. A média nos países membros e parceiros da OCDE analisados é de US$ 35,6 mil.
O estudo demonstra que as medidas estudadas não promoveram crescimento econômico, geração de emprego e distribuição de renda e, em relação ao funcionalismo público, pavimentam, entre outros ataques, a redução salarial, a diminuição da jornada de trabalho e a precarização das condições de trabalho, atingindo, na ponta, a garantia do atendimento à população, o que se torna ainda mais grave num contexto de pandemia.
Além disso, esse conjunto de medidas, aliado ao cenário econômico internacional, impactou negativamente alguns avanços sociais que ocorreram nos primeiros 15 anos do século 21, graças à implementação de políticas como a valorização do salário mínimo, o Bolsa Família, a evolução do FUNDEF para o FUNDEB, o piso salarial para professores, a expansão da educação básica para 12 anos obrigatórios e a expansão e valorização do ensino superior.
O resultado é o aprofundamento das múltiplas desigualdades que estruturam a sociedade brasileira e que atingem, com mais intensidade, as populações historicamente vulnerabilizadas, como a população negra e as mulheres. A análise das medidas implementadas e em debate no país nos últimos anos a partir de três eixos bem definidos: o tributário, o trabalhista e o administrativo, considerando ainda as políticas de cortes que perpassam todos eles, nos permitem inferir um projeto de desmonte do Estado brasileiro, colocando em risco direitos historicamente conquistados, entre eles, o direito à educação.
MEDIDAS ANALISADAS E IMPACTOS NO SERVIÇO PÚBLICO E NA EDUCAÇÃO
– A EC 95/2016 (“Teto de Gastos”), em vigor desde 2016, congela os gastos públicos por 20 anos. É a única medida fiscal de tão longa duração no mundo e inviabiliza, entre outras políticas públicas, o PNE.
– A EC 109/2019 (“Controle das Despesas Públicas”) se propõe a reduzir os gastos públicos sociais por via de medidas como congelamento de salários, suspensão de concursos e a limitação de investimentos públicos.
– A PEC 13/2021 (“Calote na educação”) desobriga o cumprimento dos gastos mínimos constitucionais com MDE (manutenção e desenvolvimento da educação), colocando em risco mais uma vez o financiamento da educação.
– A PEC 32/2020, atualmente em debate no congresso brasileiro, apresenta significativos impactos em diversas frentes, como o risco à estabilidade das e dos servidores, medida que pode, em última análise, colocar em risco o princípio constitucional da liberdade de cátedra; a ampliação da contratação de trabalhadores temporários e ainda a possibilidade de ampliação de terceirização. A PEC 32/2020 propõe alterações que podem levar a uma maior rotatividade no serviço público, o que implica em aumento de despesas com treinamentos de novos servidores, e a uma possível descontinuidade e/ou fragilização na execução dos serviços prestados à população.
– As PECs 45/2019 e 110/2019 (Reforma Tributária) aumentariam o imposto sobre a educação privada dos atuais 3,65% para 12%, o que encareceria as mensalidades e tornaria o acesso inviável a praticamente 90% do público atendido, oriundos de famílias com renda per capita de até 3 salários-mínimos, impactando o PROUNI (Programa Universidade para Todos).
– A Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017) alterou e flexibilizou direitos trabalhistas e sindicais e pode fazer com que professoras/es sejam remuneradas/os apenas pelas aulas ministradas, precarizando a docência e impactando diretamente na qualidade do ensino.
Fonte: CNTE