Militarização x gestão democrática: o conflito de modelos de gestão na educação pública do DF
A Constituição Federal de 1988 consolidou a gestão democrática como princípio da educação pública. O entendimento foi fortalecido pela Lei nº 4.751/2012, que colocou a participação da comunidade escolar como elemento essencial para o funcionamento das escolas. Na contramão desse avanço histórico, o projeto das escolas cívico-militares, implementado pela Portaria nº 22/2020, instituiu uma lógica centrada na autoridade e no controle, afastando os fundamentos da democracia escolar.
As contradições entre os dois modelos são evidenciadas já nos próprios dispositivos legais. Enquanto a Lei da Gestão Democrática fortalece a autonomia das escolas e garante a construção coletiva no cotidiano escolar, a Portaria da Gestão Compartilhada (escolas cívico-militares) impõe regras que evidenciam sobreposição de competências, restrições e outros conflitos.
Uma das principais divergências entre os modelos de gestão é em relação à equipe gestora da unidade escolar. A lei que rege a gestão democrática prevê que diretores(as), vice-diretores(as) e os membros do Conselho Escolar — órgão deliberativo e fiscalizador — sejam escolhidos(as) pela comunidade escolar em eleição, com voto direto e secreto. Podem votar professores(as), orientadores(as) educacionais, estudantes (a partir de 13 anos), mães/pais e responsáveis e demais trabalhadores da unidade escolar.
Já a Portaria que implementa as escolas militarizadas, embora mantenha a gestão pedagógica sob responsabilidade da Secretaria de Educação, cria uma gestão paralela: a Gestão Disciplinar-Cidadã, que atua no mesmo nível hierárquico e é comandada por militares designados — sem eleição — pela Secretaria de Segurança Pública do DF.
“São dois modelos de gestão atuando na mesma escola, cada um com regras próprias e distintas. A Portaria determina que, em caso de conflito entre as gestões, a decisão caiba ao Comitê Gestor, composto por membros designados por Secretários de Estado. Na prática, porém, não é isso que ocorre. Em situações cotidianas — como a definição sobre o uso pedagógico do celular ou a existência de salas ambiente —, frequentemente prevalece a vontade da gestão militar, sobrepondo-se aos interesses didáticos da escola e do corpo docente”, afirma o diretor do Sinpro Herbert Anjos.
Para a diretora do Sinpro Ana Bonina, a inserção dessa direção externa traz prejuízos também à autonomia das escolas: princípio central da gestão democrática. A Lei da Gestão Democrática determina que as escolas têm liberdade para gerir recursos, formular e implementar seu projeto político-pedagógico. Entretanto, apesar de, em tese, manter essa condução, a Portaria das escolas militarizadas exige que as unidades implementem o Plano de Gestão Disciplinar-Cidadã. Esse documento é aprovado pelas Secretarias de Estado (SEEDF e SSPDF) e executado de forma autônoma pelos militares, fragilizando o poder decisório da direção eleita.
“A gestão compartilhada limita a capacidade de deliberação final da comunidade escolar, reduzindo sua influência sobre decisões pedagógicas e administrativas essenciais e transferindo poder para instâncias externas à escola. Trata-se de uma disputa de visões de dois modelos que não podem coexistir no mesmo espaço”, disse a sindicalista.
Participação restrita
O poder decisório da comunidade escolar também é bastante limitado no modelo de gestão compartilhada. A Lei da Gestão Democrática garante a participação de professores(as) e orientadores(as) educacionais, estudantes, mães/pais e responsáveis na definição e implementação de decisões pedagógicas, administrativas e financeiras, por meio de diversos mecanismos.
Em sentido contrário a esse princípio, a Portaria das escolas militarizadas restringe drasticamente essa participação ao retirar da comunidade escolar a autoridade sobre a disciplina, transferindo o comando dessa área para militares designados pela SSP/DF. Até mesmo a decisão sobre a adoção do modelo de gestão não está sob controle da comunidade. As audiências públicas realizadas a esse respeito têm caráter apenas consultivo, sem peso real nas decisões.
“As votações na gestão democrática são equilibradas: o voto da carreira do magistério tem o mesmo peso que o da comunidade escolar. Isso garante que todas as vozes sejam ouvidas de forma justa nas decisões da escola. Já na gestão compartilhada, esse princípio é rompido. O voto passa a ser universal, o que gera desigualdade por romper com a proporcionalidade e, consequentemente, preterir a categoria do magistério na construção coletiva do projeto pedagógico e todas as decisões que impactam quem está na escola”, disse o diretor do Sinpro Carlos Maciel.
Educar não é militarizar
No DF, a gestão cívico-militar foi implementada em 2019 de forma unilateral — via decreto do governador Ibaneis Rocha, sem qualquer debate com a comunidade escolar ou com o Sinpro. A escalada continuou nos últimos anos, e atualmente a capital federal conta com mais de 20 unidades escolares militarizadas.
Recentemente, o governador do DF, Ibaneis Rocha, anunciou a intenção de ampliar para 50 o número de escolas que adotam o modelo de gestão compartilhada na capital federal.
Diante do avanço do projeto, o Sinpro fortalecerá a campanha “Educar não é Militarizar”. Além de matérias abordando o tema, a iniciativa contará com cartazes, faixas, melequinhas, debates com a categoria e outras ações.
“Essa campanha é fundamental para reafirmar que a escola é um espaço de diálogo, liberdade e construção coletiva, não de controle e repressão. Precisamos barrar o avanço da militarização e defender um projeto de educação que forme cidadãos críticos e conscientes, capazes de transformar a realidade e fortalecer a democracia”, disse Ana Bonina.
Edição Vanessa Galassi