Militarização das Escolas Públicas no Distrito Federal: Contradições Legais e Impactos Educacionais

Amaral Rodrigues Gomes[1]

 

Resumo

A militarização das escolas públicas no Distrito Federal, intensificada entre 2019 e 2020, gerou debates importantes sobre seus efeitos na educação. A distinção entre escolas militares e militarizadas ajuda a compreender os impactos dessa política, que apresenta contradições com a Constituição Federal, a LDB, o ECA e o Currículo em Movimento do DF. A pesquisa demonstra que a militarização compromete a gestão democrática, restringe a autonomia pedagógica e reforça a subordinação social, colocando em xeque os princípios da escola pública democrática.


Palavras-chave

Escola militar e escola militarizada. Contradições com a legislação. Impactos educacionais.

 

Introdução

A militarização das escolas públicas no Distrito Federal teve início no governo de Ibaneis Rocha, em 2019, apoiada em discursos alinhados ao ideário bolsonarista no âmbito federal e apresentada como uma suposta solução para os problemas de violência e indisciplina escolar. Nesse cenário, quatro escolas públicas, todas situadas em áreas periféricas, foram militarizadas, configurando um movimento contraditório com a lei da gestão democrática na rede pública educacional. Essa medida, contudo, foi criticada por intelectuais da educação e o sindicato dos professores do Distrito Federal, pois mobilizou resistências e expôs tensões relacionadas ao papel social da escola pública, bem como às disputas em torno de sua função educativa.

Nesse sentido, analiso a militarização a partir da diferença entre escolas militares e militarizadas, buscando identificar as contradições entre essa política e os marcos legais que orientam a educação no Brasil. Ao mesmo tempo, examina-se como docentes percebem o processo e de que maneira ele afeta a cultura escolar e a formação crítica dos estudantes. Dessa forma, a análise articula a dimensão legal com as experiências concretas relatadas por professores que atuaram em escolas militarizadas no período da pesquisa que compreendeu o período de 2019 a 2020.

Diferença entre escola militar e escola militarizada

As escolas militares constituem instituições tradicionais vinculadas às Forças Armadas, a exemplo dos colégios militares do Exército, os quais funcionam sob legislação específica. O ingresso nessas unidades é, historicamente, direcionado prioritariamente aos filhos de militares, embora também contemple a participação de civis por meio de concursos seletivos. Ademais, essas instituições dispõem de recursos financeiros próprios e de infraestrutura diferenciada, o que lhes assegura condições significativamente distintas em comparação às escolas públicas regulares.

As escolas militarizadas, por outro lado, pertencem à rede pública de ensino, mas passam a operar em regime de gestão compartilhada, aqui no Distrito Federal com corporações militares. Nesses casos, a direção pedagógica continua sob a responsabilidade de gestores civis, enquanto as atividades disciplinares e administrativas ficam a cargo de policiais militares ou bombeiros. Esse modelo foi implantado no Distrito Federal em 2019, quando quatro escolas foram submetidas a essa lógica em convênio com a Secretaria de Segurança Pública.

A distinção entre os dois modelos é fundamental, pois evidencia que a militarização não cria novas escolas, mas transforma unidades públicas já existentes. Enquanto as escolas militares têm autonomia própria e infraestrutura consolidada, as militarizadas impõem à comunidade escolar regras externas que alteram profundamente o sentido democrático da educação. Essa diferença reforça as críticas sobre o caráter autoritário e excludente da política implementada no DF.

Essa dinâmica impõe aos estudantes, em especial àqueles que mais necessitam da presença do Estado, um processo de sujeição a um conjunto de normas rígidas. Por meio da escola, espaço em que o Estado se faz presente de maneira mais efetiva, esses alunos são obrigados a se adequar às regras que incidem inclusive sobre seus corpos, como o corte de cabelo e o uso de adereços, restringindo a vivência de suas identidades. Tal imposição acaba por compelir aqueles que não se ajustam a essas exigências a buscar outra instituição de ensino, muitas vezes localizada em áreas distantes de sua comunidade escolar. Nesse sentido, Gomes (2021, p. 128) ressalta que “os jovens das periferias não precisam de militares ou policiais, mas de políticas públicas do Estado que os tirem da invisibilidade, que os acolham e que sejam mais incluídos, pois estão em movimento contrário em razão da rigorosidade imposta pelo militarismo nas escolas públicas”.

Contradições com a legislação educacional

A militarização das escolas públicas do Distrito Federal evidencia contradições em relação à Constituição Federal de 1988, que garante, em seu artigo 206, a gestão democrática do ensino público. Conforme relatado pela Docente A, a princípio a votação ocorreria por aclamação entre os professores; entretanto, ao perceberem que o resultado não seria favorável, optou-se pela realização de uma eleição em que:

os pais e os alunos iam votar, aí houve uma manipulação maior ainda,   porque não seguiram a lei da gestão democrática, não queriam deixar os alunos menores de idade votar,  porque onde e que estava a maior resistência era  dos alunos, não permitiram, foi assim um cabo de guerra para conseguir deixar que os maiores de dezesseis anos votassem,  porque nem isso eles queriam permitir que votassem, né, e aí eles usaram  o tempo entre essa decisão e o dia da eleição para penetrar na comunidade através  das lideranças evangélicas,   através, não sei você conhece a realidade de Ceilândia, mas em Ceilândia tem muita igrejinha  evangélica nas quadras, né,  então se utilizaram dessas lideranças  para se infiltrar na comunidade, e aí sim acabou que deu um resultado favorável para a militarização. (Gomes, 2021, p.96)

Dessa forma, ao restringir a participação de toda a comunidade escolar, manipular assembleias e excluir estudantes de processos decisórios, a política viola o princípio constitucional da democracia no espaço escolar. Nesse sentido, a militarização reduz a escola a espaço de obediência, afastando-se de seu papel de formação cidadã.

Do mesmo modo, a política colide com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, 1996), que orienta a formação integral e crítica dos estudantes. Ao substituir o diálogo pedagógico pela hierarquia militar, a escola militarizada deixa de ser espaço de emancipação e passa a reproduzir padrões de adestramento. Essa inversão revela o esvaziamento do papel social da escola pública, comprometendo a construção de autonomia intelectual e política.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990) também é afetado pela militarização, já que garante direitos à liberdade, à diversidade e à dignidade dos jovens. Práticas como padronização de cortes de cabelo, continência obrigatória e vigilância ostensiva configuram restrições a esses direitos, submetendo os estudantes a um regime disciplinar incompatível com sua condição de sujeitos de direitos. Assim, a militarização reforça práticas discriminatórias em ambientes que deveriam valorizar a pluralidade.

Por fim, o Currículo em Movimento do DF (2012), que orienta a rede pública local, enfatiza a diversidade, a autonomia e a gestão democrática. Ao impor a padronização cultural e a obediência hierárquica, a militarização fere diretamente os princípios desse documento. Desse modo, a política não apenas contraria normas nacionais, mas também se distancia das próprias diretrizes educacionais do Distrito Federal.

Militarização no Distrito Federal: abrangência e impactos

O processo de militarização alcançou, em 2019, quatro escolas públicas localizadas em regiões periféricas do Distrito Federal. Esse dado demonstra que a política foi direcionada a comunidades de maior vulnerabilidade social, reforçando o caráter seletivo e disciplinador da iniciativa. A escolha dessas localidades revela a intenção de impor controle sobre a juventude pobre, sob o argumento da segurança e da ordem.

As consequências relatadas pelos docentes são significativas, incluindo vigilância sobre professores, restrição da liberdade de cátedra e exclusão de estudantes que não se adaptaram ao modelo. Além disso, práticas cotidianas de obediência, como continência e imposição de uniformes rígidos, alteraram a identidade escolar e reduziram a autonomia pedagógica. Nesse cenário, a escola perdeu seu caráter plural, transformando-se em ambiente de controle disciplinar (Gomes, 2021; Gomes e Rêses, 2024).

Esses elementos confirmam que a militarização não resolve os problemas estruturais da educação, como a falta de investimentos, a precarização da infraestrutura e a desvalorização docente. Ao contrário, transfere a responsabilidade por tais falhas para regras militares, desviando a atenção da necessidade de políticas públicas efetivas. Assim, a militarização reforça desigualdades sociais e contribui para a criminalização da juventude periférica.

Considerações finais

A análise demonstra que a militarização das escolas públicas no DF constitui uma política incompatível com os princípios democráticos da educação brasileira. Ao impor práticas autoritárias, fere a Constituição, a LDB, o ECA e o Currículo em Movimento, esvaziando a função social da escola pública. Dessa forma, evidencia-se que essa medida não é um projeto pedagógico, mas um mecanismo de controle social.

Enquanto as escolas militares possuem lógica própria das Forças Armadas, as militarizadas impõem a disciplina militar em unidades públicas voltadas à população em geral. Essa diferença reforça a crítica de que o modelo afeta de forma desigual as comunidades pobres, especialmente as situadas em áreas periféricas do Distrito Federal. Assim, a militarização se mostra seletiva, excludente e voltada ao disciplinamento da classe trabalhadora.

Conclui-se que a militarização não contribui para a qualidade da educação, mas compromete a autonomia pedagógica, a diversidade cultural e a formação crítica dos estudantes. É necessário reafirmar a defesa da escola pública democrática, com valorização docente, gestão participativa e investimentos estruturais. Apenas assim será possível garantir uma educação inclusiva, emancipadora e coerente com os princípios da sociedade democrática brasileira.


Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1990.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1996.

BRASIL. Lei nº 9.786, de 8 de fevereiro de 1999. Dispõe sobre o ensino no Exército Brasileiro e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1999.

DISTRITO FEDERAL. Lei nº 4.751, de 07 de fevereiro de 2012. Dispõe sobre o sistema de gestão democrática do ensino público do Distrito Federal. Diário Oficial do Distrito Federal, Brasília, DF, 2012.

GOMES, Amaral Rodrigues. Militarização de escolas públicas do Distrito Federal (2019-2020): que dizem os professores. 2021. 152 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de Brasília, Brasília, 2021.

GOMES, Amaral Rodrigues; RÊSES, Erlando da Silva. Militarização das escolas públicas: posicionamento de docentes do Distrito Federal (2019-2020). Boletim de Conjuntura (BOCA), Boa Vista, ano VI, v. 17, n. 49, p. 455-464, 2024.

 

 

[1]Doutorando em Educação pela Universidade de Brasília (UnB), na linha de pesquisa Educação Matemática (EduMAT). Mestre em Educação pela UnB, com ênfase em Políticas Públicas e Gestão da Educação. Especialista em Docência com ênfase na Educação Básica (IFMG) e em Gestão e Orientação Educacional (Faculdade Darwin). Graduado em Matemática pela Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS) e em Pedagogia pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Professor efetivo da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (desde 2001) e ex-professor da Rede Municipal de Novo Gama-GO (19992006). Possui experiência no Ensino Fundamental (anos iniciais e finais), na Educação de Jovens e Adultos (EJA), além de ter atuado em cargos de coordenação e direção escolar. Exerceu a função de assessor na Coordenação Regional de Ensino do Gama, gerente da Gerência de Manutenção de Serviços Administrativos (GMASA/SEEDF) e monitor na disciplina de Sociologia da Educação na Universidade de Brasília (UnB). E-mail: amarodri@gmail.com