Julgamento sobre titulação de territórios ameaça direitos quilombolas
“Se não fizermos nada vamos acabar na senzala novamente.” Essa frase de Makota Kidoiale expressa, de algum modo, a forma através pela qual não apenas sequestraram nossa democracia mas, como também estão reduzindo, confiscando ou ignorando direitos duramente conquistados por meio de históricas lutas sociais, tais como os trabalhistas, agora, e, não havendo as devidas resistências, também os previdenciários.
Por Lilian C. B. Gomes e Cesar Augusto Baldi*
Os quilombolas, por exemplo, passam por um momento de grande tensão e ameaça de perda de garantias, uma legislação que, nos últimos 14 anos, ainda não tornou mais célere a titulação dos territórios, tal como previsto na Constituição há quase 30 anos atrás. Para compreender o que está em risco, é preciso relembrar como foi a conquista quilombola ao território.
A introdução na Constituição de 1988 do direito quilombola ao território, através do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), pode ser considerada como uma das ações na história do Brasil com maior potencial de justiça, democratização do espaço público e reconhecimento dos quilombolas como sujeitos de direitos. Representava, por outro lado, também o reconhecimento parcial de longo histórico de opressão, de uma “democracia racial” nunca efetivamente realizada e de um profundo racismo estrutural permanentemente negado, dentro de um imaginário de nação harmônica, cordial e tolerante.
O Decreto 4.887/2003, que regulamenta o art. 68 do ADCT, em substituição ao anterior Decreto 3.912/2001, está sub judice, devido à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) nº 3.239 de 2004, ajuizada pelo Partido da Frente Liberal (PFL), hoje denominado Democratas (DEM), buscando obter a declaração de inconstitucionalidade deste.
Em 18 de abril de 2012 foi iniciado o julgamento, tendo sido proferido o voto do ministro relator, Cezar Peluso, acatando todos os pedidos, ainda que modulando os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Sem entrar numa análise detalhada do teor do referido voto, pode-se afirmar que primou pela ideia de um “discurso jurídico colonizado pela noção de segurança jurídica, voltado para a repetição do passado no presente e pouco adequado às funções jurídico-constitucionais de transformação e construção de um futuro livre, justo e solidário”[i] (Camerini, 2012: 178) .
Fundou-se numa concepção que mantém um regime jurídico-civilista da propriedade, fazendo vistas grossas ao que se passa no real dos grupos quilombolas com suas formas de criar, fazer e viver, também, reconhecidas na CF/88 no art. 216. Um discurso tecnicista e eurocentrado, ignorando a realidade social e, em especial, a histórica usurpação de territórios negros no país.
No mesmo dia, a Ministra Rosa Weber pediu vistas, devolvendo o processo em 25 de março de 2015, manifestando-se contra a referida ação. Dentre os inúmeros argumentos proferidos, é importante destacar:
“É a própria Constituição, portanto, o nascedouro do título, ao outorgar, aos remanescentes de quilombos, a propriedade das terras por eles ocupadas. Constatada a situação de fato – ocupação tradicional das terras por remanescentes dos quilombos –, a Lei Maior do país confere-lhes o título de propriedade. E o faz não só em proteção ao direito fundamental à moradia, mas à própria dignidade humana, em face da íntima relação entre a identidade coletiva das populações tradicionais e o território por elas ocupado. A injustiça que o art. 68 do ADCT visa a coibir não se restringe à “terra que se perde, pois a identidade coletiva também periga sucumbir” (Brasil, STF, Rosa Weber, 18/03/2015).
Ou seja, reconhece a permanência no território quilombola não apenas como direito à moradia, mas também à dignidade humana e ao risco de – não tendo esse direito garantido, assegurado e reconhecido – perderem sua identidade coletiva.
Novamente, o processo foi adiado por outro pedido de vista, desta vez pelo Min. Dias Toffoli, que o devolveu em junho de 2015, mas somente agora finalmente foi liberado para julgamento, marcado para o próximo dia 16 de agosto. Este longo período sem tramitação, ao contrário de fortalecer a política quilombola e mesmo as garantias de aprofundamento e consolidação de direitos humanos, é, paradoxalmente, muito mais desfavorável à situação dos mesmos do que às vésperas da “Constituição Cidadã” há três décadas atrás.
Em primeiro lugar, porque houve, nos últimos 4 anos, um fortalecimento da pauta e agenda conservadoras, não somente com a aprovação e/ou tramitação de projetos voltados para o interesse dos empresários e do capital, num franco concerto entre o Governo Federal e o Congresso Nacional, mas também por conta de uma alteração de conduta dos Ministérios Públicos e do Judiciário, no sentido de uma criminalização de movimentos sociais e de uma visão de baixa intensidade de direitos humanos. Pode-se afirmar que está se assistindo a uma contrarrevolução jurídica, de cunho marcadamente conservador.
Em segundo lugar, porque o atual Executivo Federal, que até então defendia os direitos quilombolas nas votações anteriores, por ações e intervenções da Advocacia Geral da União (AGU) do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Fundação Cultural Palmares (FCP) – neste momento de retomada do julgamento, vem manifestar-se contra os quilombolas e favorável à constitucionalidade da Adin 3239. Não é à toa que desde dezembro do ano passado, as titulações e, da mesma forma, as declarações de terras indígenas – estão paralisadas.
Em terceiro lugar, porque o julgamento da ação coincide com mais três ações envolvendo terras indígenas, em que se discute a aceitação do parâmetro do marco temporal, ou seja, de que somente são reconhecidos territórios em que as populações comprovem a presença em 5 de outubro de 1988. Não é demais lembrar que a confirmação de tal jurisprudência, também para quilombolas, é, não somente uma violação a julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas também o privilégio da história escrita sobre a história oral, das distintas formas de presença de territórios (que não passam, necessariamente, pela visão eurocentrada da judicialização) e a chancela do permanente esbulho de terras negras e indígenas num país marcadamente racista, heterossexual e sexista.
Boa parte das lideranças quilombolas são mulheres, e esta invisibilidade da frente estatal – e de todo o aparato judicial – é mais uma forma de violência, exacerbando violências internas e negociações estatais, ignorando dinâmicas próprias de poder político, social, pluralismo jurídico, enfim, de formas de fazer, viver e criar, que não passam pelas coordenadas clássicas do direito brasileiro que se imagina estadunidense (desde que não tenha que reconhecer o racismo) ou europeu (desde que não tenha que trabalhar a questão colonial).
Desta forma, o Decreto 4887/2003 é a maior conquista em termos de marco regulatório do direito quilombola. Na retomada da votação no STF parece que os quilombolas terão a seu favor apenas a força de sua mobilização e de suas parcerias para que se cumpra o que a Ministra Rosa Weber retoma, a partir de Nancy Fraser, em seu voto: de que reconhecimento e distribuição são dois vetores fundamentais da justiça social na sociedade contemporânea.
É por esse motivo que Makota Kidoiale fala do retorno das senzalas, na epígrafe do início do texto. Só há um meio de mostrarmos a força nessa luta: a união de todos quilombolas e parceiros para mostrar que não aceitamos a retirada de direitos. Portanto, estamos convocando todos para somarem: seja com ajuda com transporte para a viagem a Brasília, seja com a divulgação desse julgamento (e com formas de apoio, as mais diversas, incluindo vídeos, etc) e o que ele representa, seja com a assinatura da Petição que o Instituto Socioambiental leva à frente, bem como com todas as formas mais criativas possíveis para barrarmos a onda conservadora que ronda o Brasil.
Estas formas criativas que têm sido o diferencial de resistências, re-existências e insurgências em todas as lutas por nossa Améfrica, como recordaria Lélia Gonzalez. Assim, com os braços juntos, fortaleceremos essa corrente e mostraremos que, para os povos negros, correntes de açoites e do tronco das senzalas, nunca mais!
Nos tempos em que se discute “abolição da democracia” ou democracia de baixa intensidade, é necessário voltar a Du Bois e Angela Davis, para tratar de “democracia da abolição”, mostrando a necessidade da abolição das novas formas de escravidão, das prisões e da pena de morte. Como sustenta Davis, não se trata só – e nem fundamentalmente – de uma abolição no sentido negativo, mas sim no sentido de “reconstrução, de criação de novas instituições”, pois para a “abolição completa das estruturas opressivas produzidas pela escravidão deveriam ser criadas novas instituições democráticas”. Justamente porque isso não se deu, é que “a gente negra se encontrou com novas formas de escravidão”.[ii]
Não se trata, pois, somente de discutir a questão da diversidade cultural e social do país, nem de tratar de distintas formas de utilização da terra, que não passam pela visão hegemônica da propriedade privada. O STF está diante da necessidade de discutir – mais que no julgamento das ações afirmativas – o permanente racismo institucional e epistêmico que continua como estrutural e estruturante nas visões de direitos humanos, mesmo das mais progressistas.
Não à toa, agosto é o mês da Revolta dos Alfaiates, da criação da Fundação Cultural Palmares, do Primeiro Congresso de Cultura Negras da Américas, da Conferência Mundial de Durban, da independência de várias colônias europeias na África e do Dia Internacional da Memória do Tráfico Negreiro (23 de agosto). Como salienta Cristiane Sobral:
“Estamos diante de nossos espelhos negros, olhando para nós mesmos, enxergando as nossas memórias a nossa ancestralidade, sem medo da nossa escuridão”, pois “se você se enxergar diante de um espelho negro, aprenderá a conviver com as suas sombras, com suas luzes, alterando a sua percepção. Isso influenciará decisivamente a sua existência”. [iii]
*Lilian C. B. Gomes é Doutora e Mestra em Ciência Política (UFMG). Especialista em História do Brasil (PUC-Minas).
*Cesar Augusto Baldi é Doutor em Direitos Humanos (UPO-Sevilha) e Mestre em Direito (ULBRA/RS). Especialista em Direito Político (UNISINOS).