De feira a festival: como escolas no DF promovem ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena
* Matéria publicada no portal Brasil de Fato dia 26/11/2024. Para ler no local original, clique AQUI.
Lélia Gonzalez, Maria Carolina de Jesus, Benedita da Silva, Maju Coutinho, Vini Júnior, Elza Soares, Mano Brown e Djonga. Essas são algumas das personalidades negras que os estudantes do 9º ano do Centro Educacional (CED) 1 do Guará, região administrativa do Distrito Federal, escolheram para representar os movimentos de resistência negra no Brasil. Com muita criatividade, arte e engajamento, os alunos contaram a trajetória de luta antirracista no país, dos movimentos abolicionistas ao Hip-Hop.
A exposição fez parte da feira da Consciência Negra da escola, que envolveu estudantes do 6º ao 9º ano, professores e pais no dia 23 de novembro. “O Brasil teve muitas personalidades de resistência negra. A gente quis mostrar para a escola e para quem fosse visitar a nossa sala qual a importância e o impacto que essas pessoas trouxeram, e que reverberam até hoje”, explicou Natália Oliveira de Santana, 15 anos, aluna do 9º ano do CED 1.
Além de narrar diferentes momentos da história do movimento negro no país, os estudantes provocaram os visitantes com perguntas que estimulam a reflexão. As respostas de questões como “na sua opinião, qual a importância do Dia da Consciência Negra?” ou “qual é a importância da música na cultura afro-brasileira?” podiam ser registradas em papel e passaram a fazer parte da exposição.
“A maior parte da população vê o Dia da Consciência Negra, mas realmente não entende o significado. Eu acho muito interessante a gente ensinar e mostrar de onde veio a nossa cultura. Eu acho importante a gente trazer essa pauta para a escola desde cedo, porque o preconceito se cria desde bem pequeno, por exemplo, através da família”, avaliou Natália.
As salas de aula de cada ano escolar foram ornamentadas para narrar diferentes momentos da história e cultura afro-brasileira, tudo feito pelas mãos dos alunos, que deram seu próprio tom à história dos Reinos e Impérios Africanos, como o Império do Mali, do tráfico negreiro, da resistência cultural negra e das religiões de matriz africana.
Nailson Veras, de 13 anos, faz parte da turma do 7º ano que apresentou a cronologia e as consequências do tráfico negreiro no Brasil, destacando aspectos como as classes envolvidas, a organização do mercado e o lucro dos traficantes. Segundo o estudante, um dos pontos desse triste passado que o deixou mais chocado foi a “ideologia portuguesa” que afirmava que os africanos não tinham alma e, por isso, poderiam ser escravizados: “É muita maldade”, lamentou.
“Nós como brasileiros temos que saber a importância da nossa história. Não só a gente, mas o mundo inteiro. E a nossa história veio da África. E do Brasil também, com os indígenas. Então, é muito importante a gente saber todos esses tema: a cultura, a religião, a culinária, qualquer coisa sobre os africanos, porque eles que formaram a coluna para a gente ser o que a gente é hoje”, defendeu Nailson.
Lei 10.639 na prática
Criada a partir de mobilização do movimento negro, a lei nº 10.639, que institui a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileiras nas escolas, completou 20 anos. O projeto realizado pelo CED 1 do Guará representa a concretização da norma, que ainda está longe de ser aplicada em todas as instituições de ensino.
A feira apresentada pelos alunos é a culminância de um trabalho realizado ao longo de todo o ano escolar. Thaísa Magalhães, professora de história do Ensino Fundamental 1 da instituição, explicou que todos as séries estudam algum aspecto da história da África.
O 6º ano explora a história dos reinos da África Antiga. No ano seguinte, os alunos são instigados a se aprofundar no processo de formação dos grandes impérios, como o império de Mali, e estudam a interferência de portugueses e espanhóis no continente, que culmina na escravização de africanos e nos processos de resistência no Brasil.
Já os alunos do 8º ano mergulham no movimento abolicionista da luta negra no século 19, e terminam o ano estudando a segunda invasão européia à África. No último ano do Ensino Fundamental 1, os estudantes se aprofundam em toda a trajetória da luta de resistência negra no Brasil, como o Movimento Negro Unificado (MNU).
“Acho que não é um tarefa tão extraordinária, porque a história da África faz parte do cotidiano da escola. Então, organizar isso numa feira, acho que é uma coisa que todas as escolas precisam experienciar”, afirmou Thaísa, professora responsável por encabeçar o projeto.
“A lei precisa ser implementada transversalmente no dia a dia da escola”, avaliou. “Esse projeto também concretiza um outro propósito da escola, que é a formação de cidadania. O racismo ainda é um dos piores problemas no Brasil. Trabalhar a ideia de valorizar a cultura afro-brasileira, combater o racismo, explicar como ele funciona, se perpetua na sociedade e como pode ser combatido, é um processo que precisa se feito pela escola também”, destacou a professora.
Para Natália, a feira aconteceu em um momento ideal: o primeiro ano em que o Dia da Consciência Negra foi celebrado como um feriado nacional. Segundo a estudante do 9º ano, a produção da feira, além de proporcionar conhecimento e senso crítico, foi um momento de união da turma, que se engajou na confecção dos painéis.
“Muitos dos meus colegas que geralmente não tinham interesse, passaram a ter, eles começaram a compreender mais. Eles aprenderam a escutar mais. Então, eu achei que além de ser um projeto para a gente criar uma opinião e ter mais conhecimento, foi um projeto que uniu a gente, que transformou a minha turma, que fez com que a gente tivesse mais interesse e começasse a refletir mais”, contou a estudante.
“Esse projeto traz para nós um ensinamento: desde pequenos, nós temos que ter um senso crítico sobre tudo. Essas questões de racismo e desigualdade social também vão ser muito importantes pra gente lá na frente. A gente vai ser cobrado ao longo da vida, a gente vai precisar se posicionar em relação a isso”, destacou Natália.
Festival Cazumbá
Outra experiência de celebração da história e cultura afro-brasileira será o Festival Cazumbá, realizado pela Escola da Árvore, localizada no Lago Norte, a partir desta quarta-feira (27).
O Festival nasce dentro do objetivo da escola de celebrar propostas pedagógicas partindo da literatura de autorias negras e indígenas, das manifestações de brinquedos e brincadeiras populares do vasto repertório da Cultura Popular Regional Brasileira, do cinema, da musicalidade e de tantas outras potencialidades produzidas por pessoas negras e indígenas em múltiplas linguagens e que estão inseridas no cotidiano das salas de aula.
“Estou em sala de aula há mais de 20 anos e como educadora negra, como artivista negra dentro de vários movimentos sociais aqui no DF, percebo que sempre existiu uma reticência, uma ressalva de educadores em colocar em prática o processo educacional que valorizassem essas manifestações. A história sempre colocou pessoas negras num lugar muito desumanizado, então a ideia do festival, e do que temos construído dentro da Escola é valorizar a cultura afro-brasileira e indígena, e trazer narrativas potencializadoras”, destaca Ana Paula Coutinho, professora e coordenadora de projetos de educação étnico-racial da Escola da Árvore.
Nesta primeira edição do Festival, a homenageada será a professora, contadora de histórias, orientadora educacional e escritora Sônia Rosa. “A escolha por homenageá-la parte de seu vasto trabalho com a literatura negroafetiva, que valoriza e localiza crianças e adultos negras e negros em situações cotidianas de muita ludicidade e diversidade, sendo amplamente lido e apreciado, principalmente, pelas crianças pequenas”, informa a Escola.
“O Festival vem num lugar de celebração. E a Sônia Rosa fala de famílias negras, e diversos outros assuntos num lugar de afetividade, em seus livros, pessoas negras não estão somente reagindo, isso é muito importante”, destaca Ana Paula Coutinho.
Além disso, o Festival, que será entre os dias 27, 28 e 29 de novembro, contará com apresentação de maracatu, teatro, capoeira, exposição fotográfica, roda de conversa e mostra de cinema. Dentre os destaques da programação, está a participação do grupo Sambadeiras de Roda e de adolescentes e crianças da Batalha de Rima do Paranoá.
Nos dias de atividades, a escola receberá alunos do Centro de Ensino Fundamental Zilda Arns, localizado no Paranoá, região administrativa do DF. Na escola pública também são realizados projetos que valorizam a cultura afro-brasileira, como a Semana da Diversidade, Cultura e Igualdade, realizada em 19 de novembro. Na sexta-feira (29), participarão os alunos da Escola Classe 115 Norte.
“Estamos construindo aqui na Escola da Árvore e tem outras escolas construindo outras ações importantes também, e é fantástico quando temos essas trocas, pois juntamos conhecimentos diversos desses projetos que celebram e valorizam as as potencialidades negras e indígenas”, finaliza Ana Paula.
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Veja o álbum completo da Feira da Consciência Negra do CED 1 do Guará no facebook do Sinpro, clicando AQUI.