“Encheram” o Brasil de universidades

Por Letícia Montandon*

 

Num evento evangélico, na tarde de terça-feira (5/10), o ministro da Educação, Milton Ribeiro, voltou a atacar o direito do brasileiro à educação superior pública e gratuita. Qual o propósito de um Ministro de Estado propagar frases como esta de dizer que “encheram o Brasil de universidades” e outras declarações de ataque à educação pública e gratuita do nosso País?

 

É preciso explicitar, antes de tudo, que há, no mínimo, dois motivos. Um: que se trata de declarações pontuais e muito bem planejadas para manter a campanha eleitoral permanente do governo Bolsonaro na mídia. Dois: dar sinais positivos para o mercado financeiro e empresarial da privatização da educação superior. Assim, começo este artigo pela observação de que as novas declarações de Ribeiro merecem, primeiramente, uma análise da sua fala.

 

Seu discurso faz parte dessa narrativa eleitoral usada pelo presidente Jair Bolsonaro (ex-PSL) para ofuscar a destruição em curso do Brasil. Trata-se de uma manobra na linguagem para causar indignação, perplexidade, falso reconhecimento e a impressão de que o desmonte do Estado nacional é natural. Também é um discurso usado para manter a atenção desviada para o “escândalo” e não para a ação em andamento.

 

Enquanto dispersa a atenção do público, naturaliza uma ideia. E a ideia fixa é desqualificar o imenso Sistema Público de Educação Brasileiro, um dos maiores, mais complexos e bem-sucedidos do mundo, para naturalizar a sua privatização. Dizer que o Brasil tem universidades demais é uma forma também de demolir a soberania nacional e de criticar os governos democrático-populares, que promoveram a maior inclusão educacional de todos os tempos no País, entre 2003 a 2014, quando duplicou o número de matrículas: de 505 mil, em 2003, para 932 mil, em 2014. O número de professores universitários da rede federal também aumentou no período, de 40,5 mil para 75,2 mil.

 

O ministro sabe que o ser humano evolui por meio do conhecimento e que a educação pública, gratuita e de qualidade ameaça o statu quo. Ter indivíduos pensantes, que se implicam nas questões sociais, incomoda a quem deseja que a consciência esteja anestesiada. Controla-se a gramática da exclusão e do sofrimento, exercendo poder. Criam-se técnicas para um processo de dominação. A sabedoria, portanto, é a única ciência livre.

 

Gestão Milton Ribeiro deixou mais de 5 milhões sem educação básica

Assim, ao dizer ao público proprietário de universidades privadas comunitárias, confessionais e ditas “filantrópicas”, exploradoras da educação como negócio, que “encheram” o Brasil de universidades públicas, mas que a alfabetização deixa muito a desejar, Ribeiro revela de onde veio e para quem trabalha, sinaliza com a privatização da universidade, omite os dados reais do investimento na inclusão educacional entre 2003-14, e mostra que, para ele, educação é negócio e não um direito fundamental como está na nossa Constituição.

 

Que moral esse ministro tem para criticar a quantidade de universidades públicas criadas e a alfabetização do País quando um levantamento do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) demonstrou que o governo Bolsonaro excluiu mais de 5 milhões de crianças e adolescentes da educação básica em 2020?

 

Foi na gestão dele que o Unicef revelou que 80% dos estudantes entre 6 e 17 anos, embora matriculados, não conseguiram acessar o ensino a distância ou aulas presenciais no ano passado. Um empresário que se recusa a investir no ensino básico e quer fechar universidades públicas: é isso que o Brasil tem como Ministro da Educação. A declaração completa dele foi a seguinte: “O alicerce na educação é a alfabetização. Como é que se pode imaginar alguém construir uma casa começando pelo telhado? Quando falo em universidade, falam que foi democratizada, mas encheram de telhados e se esqueceram do alicerce. O que nós temos hoje: jovens que são analfabetos funcionais, não entendem o que leem”.

 

Contextualizada a origem do discurso de Milton Ribeiro, é possível continuar a análise dessa “pérola” do fascismo de muitas formas. São tantas que chegam a dar vertigem. No entanto, vou me concentrar na metáfora. Para o ministro, a educação é uma casa em que o alicerce é a alfabetização e o telhado é a universidade. Desconsidera a Educação Infantil, desenvolvida pela creche, que cuida da coordenação motora fina das crianças, ensina os petizes a segurar o lápis corretamente, o nome das cores, das letras, dos números, ensina a percepção e o enfrentamento dos desafios, dentre outras aprendizagens e vivências que refletem e têm consequências em sua jornada escolar até a universidade e também em toda a sua vida.

 

Estamos diante de um anti-ministro que desclassifica e despreza o trabalho do(a) professor(a) do ensino infantil, invisibilizado (mais uma vez), desconsiderado e descartado. Ele acha que a atuação do(a) professor(a) do ensino infantil “não é nada” – palavras dele. Quem deveria planejar e investir dinheiro público no aperfeiçoamento da educação desde a infantil até a superior, defende o fechamento de escolas superiores. No fatídico evento evangélico, dessa terça, ele disse também que o País tem hoje “jovens analfabetos funcionais, que não entendem o que leem”.

 

Analfabetismo funcional é combatido com educação paulo-freiriana

Ora, se o ministro detectou analfabetismo funcional entre estudantes, o papel dele, enquanto gestor público, é resolver o problema com a adoção do antídoto capaz de combater esse problema. Ou seja, é adotar nas escolas a educação crítica, reforçando disciplinas que ensejam o pensamento crítico, como história, sociologia, filosofia, artes entre outras que o atual governo trabalha para eliminar do currículo escolar por meio de projetos como os da Lei da Mordaça (Escola sem Partido). Dentre o conjunto de soluções, ele sabe que, para acabar com o analfabetismo funcional do Brasil não é eliminar universidades públicas e gratuitas, mas investir o dinheiro público na educação.

 

Ele também sabe, como nós sabemos, que uma das saídas para isso é promover profundas e participativas discussões sobre o assunto em conferências democráticas de educação, envolvendo todo o País, bem como seguir a filosofia paulo-freiriana, adotar métodos de ensino que estimulam o pensamento crítico e revogar, antes de mais nada, a reforma do ensino médio, que ele chama de “novo ensino médio”: um retrocesso sem precedentes na educação básica brasileira. Com o “novo ensino médio” teremos mesmo milhões de analfabetos funcionais.

 

Vale observar que, dentre as várias fórmulas de acabar com o analfabetismo funcional, uma delas é convocar, democraticamente, professores e especialistas para construir outra Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e eliminar a que está em curso pelo governo Bolsonaro, unicamente, nas escolas públicas do País.

 


Desprezo pelo(a) professor(a) alfabetizador(a)

Com a declaração, Ribeiro revela não valorizar o trabalho do(a) professor(a) alfabetizador(a), que atua em turmas heterogêneas, com estudantes diferentes entre si, com capacidades de aprendizado tão díspares e realidades familiares ainda mais distintas. Para ele, qualquer problema na execução do magistério nessa fase é do(a) professor(a) “que não sabe lidar com isso”. Mas tem mais coisa nessa declaração do ministro a ser analisada.

 

Uma delas é que se trata de uma abstração neoliberal de esvaziamento das escolas públicas e de submissão da população a uma educação voltada ao mercado. Para ele, não deveria haver universidade no Brasil, posto que o ensino básico é falho. E, às favas com a pesquisa e o desenvolvimento de novas tecnologias e patentes , medicamentos, vacinas. O importante é alfabetizar perfeitamente. Mas, para alfabetizar perfeitamente é preciso, dentre outros aspectos, entender a filosofia freiriana e isso é incompatível com a política neoliberal de privatização da educação que o governo Bolsonaro constrói no Brasil.

 

O ministro finge não “compreender” que cada fase da educação é um momento diferente, de aprendizados e saberes diversos e de ganhos e trocas distintos com a sociedade. Ele defende a educação apenas como um processo bancário em que o conhecimento é despejado no estudante sem nenhuma possibilidade de aprendizado. Essa educação bancária, que gera analfabetos funcionais, foi refutada por Paulo Freire. Enfim, o ministro finge não saber que o processo da educação ocorre no chão da escola numa troca permanente entre professor e estudante. Ele deixa explícito que, para defender os interesses financeiros dos grupos a que ele representa, finge desconhecer o fato de a educação não ser uma linha de montagem industrial, e sim uma atividade quase artesanal.

 

Finalmente, os(as) professores (as) de português devem estar incomodadíssimos com o sujeito indeterminado em “encheram o Brasil de universidades.” Quem “encheram”? “Ah, sei lá, não importa!”. Essa é a resposta padrão para que os(as) estudantes do Ensino Fundamental 2 e do Ensino Médio entendam o conceito de sujeito indeterminado. Com esse sujeito indeterminado, ele atua politicamente em campanha eleitoral contra o governo do ex-presidente Lula, que promoveu a maior inclusão educacional, com educação pública e gratuita, da história do Brasil.

(*) Letícia Montandon é coordenadora de Imprensa do Sinpro-DF e professora da rede pública de ensino do Distrito Federal.

 
 

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