Educação em risco na onda privatizante do governo Rollemberg

Logo após tomar posse, o governador Rodrigo Rollemberg anunciou sua intenção de terceirizar a gestão dos hospitais públicos de Brasília e das escolas públicas do GDF. Em relação à saúde, deve lançar edital para detalhar e iniciar o projeto agora em dezembro.
Na educação, porém, Rollemberg encontrou forte resistência. No auge da greve dos professores contra os calotes no pagamento de reajustes previstos em lei, o governador quis aproveitar o impasse que criou para tentar empurrar goela abaixo dos professores a proposta de implantação da gestão de escolas de educação infantil (de 0 a 5 anos) por Organizações da Sociedade (OS’s) já a partir do 2016.
Conseguiu indignar ainda mais os educadores, que consideraram um insulto à categoria, à comunidade escolar e à população a ideia de abrir as portas para privatização da gestão da escola pública.
IMG-20151116-WA0012A proposta de OS na educação pública não é nova. Foi trazida ao Brasil por uma equipe tucana no governo FHC, sofrendo, na época, forte combate dos defensores da escola pública. A proposta é baseada na chamada charter school, muito praticada nos Estados Unidos. Nesse modelo, a escola é administrada por uma organização social que pode decidir a grade curricular, a gestão financeira, pedagógica e todas as diretrizes da escola, independentemente de Plano Nacional de Educação (PNE), ou qualquer política pública global de educação. Nesse modelo, o ensino público pode virar uma colcha de retalhos, com o Estado pagando para empresas privadas educacionais por um serviço básico e essencial, a educação do povo.
Em breve, esse modelo considerado privatizante será introduzido na rede pública do Estado de Goiás. O governador Marconi Perillo está em vias de execução desse projeto, atingindo muitas escolas estaduais no entorno do DF.
Para entender um pouco mais sobre esse modelo de OS na educação e os riscos para o ensino público e para os profissionais ligados à educação, veja a entrevista que o professor da rede pública do Distrito Federal, Cristino Cesário Rocha, concedeu à CUT Brasília. 
Cristino leciona Filosofia e Sociologia no Distrito Federal, é especialista em administração de educação, gestão escolar, estuda temas como culturas negras do Atlântico, histórias da África e Afro-brasileira, e se dedica ainda à pesquisa sobre Educação na Diversidade e Cidadania.
O professor entende ser bem preocupante a adoção das OSs porque tem a clareza de que a comunidade escolar e a sociedade não se beneficiarão. “É um modelo de gestão empresarial que não atende aos princípios de uma gestão democrático-participativa e à natureza da dimensão pública: pública, participativa, laica, democrática e de qualidade socialmente referenciada”, dispara.
Veja a íntegra dessa entrevista:
CUT: O que é essa Organização Social (OS) que passar a gerir uma escola pública no modelo pretendido por Rollemberg?
Cristino Cesário Rocha: De acordo com a Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998, OSs são pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos nesta lei. Entendo a mesma como um engodo, uma ameaça e um perigo para os serviços públicos. Uma vez que a dimensão pública é amplamente distinta de uma entidade privada, que visa ao lucro, e não pode ser pensada sob uma falsa aproximação público-privado.
 
CUT: Quem é beneficiado com uma escola gerenciada por uma OS?
Cristino: A comunidade escolar e a sociedade em geral não serão beneficiadas por esse modelo de gestão. Em um contrato com a natureza da OS pode entrar o que mais atende aos interesses do contratante. Principalmente do ponto de vista ideológico e dos rumos que devem tomar a educação sem ouvir sindicatos e a comunidade escolar em parca preocupação com o acesso, permanência e qualidade social dos usuários/beneficiários. Eu me preocupo e vejo com desconfiança porque quem se beneficiará de fato serão os contratantes e não a comunidade. Primeiro pelo fato de não ser uma gestão democrático-participativa. Será um conselho de gestão e uma diretoria que tomarão as decisões sem a participação coletiva, como está assegurado na Lei Distrital de Gestão Democrática nº 4.751, de 07 de fevereiro de 2012. Precisamente nos mecanismos de participação e de modo particular no que diz respeito à Assembleia Geral Escolar. A Organização Social poderá beneficiar empresários, uma vez que nesse modelo a classe empresarial pode fazer parte da administração e mais do que isso: a composição que trata do poder público é curiosa, fala do poder Executivo, mas sem explicitar quem. Então é bem preocupante porque eu tenho uma clareza de que a comunidade escolar e a sociedade não se beneficiarão porque é um modelo de gestão empresarial que não atende aos princípios de uma gestão democrático-participativa e à natureza da dimensão pública: público, participativa, laica, democrática e de qualidade socialmente referenciada. A distribuição dos componentes revela o tipo de gestão das OS’s que tem um caráter privado, de modo a engolir o público. Pela lei a OS só terá de 20 a 40% de representação pública. Isso significa que 60% vão ser distribuídas para outros grupos sociais, então eu tenho impressão que não trará benefício pelo fato de ser o público gerenciado pelo privado com toda a sua perversidade e fabulação neoliberal.
 
556185530478CUT: Isso é a consolidação de um processo ideológico?
Cristino: Obviamente. A ideologia neoliberal age com muita sutileza, ela penetra na vida das pessoas e das instituições exatamente pela capacidade estratégica. A estratégia do neoliberalismo é entrar na educação pra fazer a cabeça exatamente do que eles chamam de cliente, que nesse caso é o estudante. Tanto é que eles estão começando pela educação infantil. Então não é por acaso que eles falam ‘vamos começar pela educação infantil de 0 a 5 anos; daí vamos fazer a cabeça dessas crianças’. Quando elas estiverem lá na frente acredito que pretendem trabalhar expandindo essas etapas nas demais modalidades de ensino. Tudo para que elas já tenham a cabeça pronta, feita pela ideologia neoliberal. É o estudante ajustado, adequado ao sistema de mercado, de competição. Porque a lógica é competitiva. E acredito que vão colocar meritocracia nesse projeto deles. Como eles vão formar um estatuto, um projeto de gestão, provavelmente vão colocar a meritocracia aí dentro. Aquele menino que conseguiu vislumbrar a qualidade vai ter uma premiação e o professor provavelmente também vai ser premiado, aquele que tiver um projeto melhor ou que está desenvolvendo uma coisa diferenciada. E quem não é classificado dentro do padrão não é exitoso no conceito neoliberal e vai ser punido. E aí o grande problema para os professores: eles podem ser demitidos. Se eles colocarem um dispositivo nesse contrato de gestão que pode demitir um professor que não corresponda ao padrão de produtividade, ele vai estar fora.
 
CUT: As políticas públicas de educação nacional e estaduais podem ser afetadas pelas OS? Elas podem existir ou serem comprometidas nessa conjuntura?
Cristino: Na verdade dentro de uma OS não cabe uma política pública de educação, cabe um contrato. Como vai ser um contrato de gestão, o que pode ocorrer é que se pode ter uma política pública um pouco mais decente se tiver um grupo inteligente no governo que perceba que esse contrato tem de ter gente em maioria que pensa diferente, no bem público. Caso contrário, esse contrato de gestão vai encobrir a política de educação, a política de governo. As OSs vão acabar manobrando a educação de acordo com o viés neoliberal de mercado, eu não tenho dúvidas. Se um governo aceita esse tipo de gestão é porque ele acredita no projeto, acredita na proposta de terceirização. Então provavelmente acabará quebrando com uma política de educação emancipatória, voltada para direitos humanos, para diversidade. Acabará com tudo isso. Porque são lógicas diferentes, são naturezas diferentes. Por mais que eles falem de aproximação de público-privado, não tem como conciliar. A coisa racharia, não tem como misturar essas duas naturezas.
 
CUT: como está o projeto de terceirização no Goiás?
Cristino: Pelo que tenho acompanhado a terceirização em Goiás está em andamento sob a liderança do Marconi Perillo e a secretária de educação do estado, porque os dois estão muito próximos. E pelo que consta a OS já está funcionando na Saúde. Alguns hospitais já estão sob esse gerenciamento e na educação está em avaliação. Mas pelo que consta o governador já está pedindo para que se façam alguns encaminhamentos táticos para implantar em 30% das escolas. Está muito forte o movimento de inserção desse tipo de modelo de gestão em Goiás. 
 
CUT:  O modelo de charter schools dos Estados Unidos que está prestes a ser implantado no Goiás provoca mudanças  pedagógicas nas escolas?
Cristino: Seguramente. As localidades vivem com dinâmicas diversas na cultura, no lazer, na forma de ver o mundo, na religiosidade, na etnia e na raça, em como se vê o gênero. E, quando se implanta um modelo padrão dentro de um contrato, isso se perde. Aqui no DF, por exemplo, nós temos um currículo chamado de ‘currículo em movimento’; então provavelmente um currículo dentro dessa gestão de OS vai ser um currículo fechado. Vai voltar o conteudismo e quebrar justamente com esse contexto regional e com a riqueza que tem o regionalismo, as culturas, as lutas sociais e os movimentos pelos direitos humanos. O que me preocupa mais, saindo do currículo e da plataforma de gestão, é que essas demandas vão enfraquecer a educação pública. Na verdade essa é a lógica do sistema neoliberal. É enfraquecer o sentido do público para privatizar. Não é por acaso que se precariza tudo nessa forma de gestão. Eu também vejo um grande problema que é a proletarização do magistério público. Quando você congela salários e desvaloriza o magistério público, você está criando proletários para um sistema que na frente vai te dizer ‘olha você não serve mais, vamos privatizar porque você não responde mais aos anseios do consumo e da produtividade do mercado capitalista neoliberal’.
 
imagesCUT: No Goiás existirão três modelos de escolas: a militar, as charter schools e as públicas. Ter esses três modelos, é uma maneira de descaracterizar a necessidade de uma educação pública?
Cristino: Sim, porque o projeto de desmonte da educação pública, e na verdade da coisa pública em geral, começa com a desqualificação. Primeiro se desqualifica para depois dizer que não presta. Por que muitas pessoas aprenderam que o público não presta, que é ruim, deplorável e tem que ser quebrado? Alguém colocou pra elas isso e imprimiu um senso comum de que o público não presta. Então essa é a tentativa de governos neoliberais. Eles imprimem um senso comum na sociedade de que o público não é bom. Eles mesmos produzem a precariedade para depois ter o álibi de dizer que é preciso privatizar porque ela [a escola] não presta, não funciona. É essa a ideologia. Você desmonta a importância colocando que ela não está boa e precisa mudar. Então qual a solução possível pra essa coisa que não está funcionando? É exatamente a privatização. E eles trazem os especialistas, os experts neoliberais, para compor essa gestão. Então provavelmente essa OS vai ser composta por gente que responde ao ideário neoliberal. Não será gente boba que não entende [de administração e educação]. Eles entendem, mas são tecnocratas e entendem de mercado. Vão trazer gente da escola privada, às vezes até aposentado. E cada um deles vai ser um testa de ferro lá dentro, primeiro porque ele já tem tempo de gestão e vão dizer que ele tem experiência, que ganhou um projeto em algum lugar. Sempre usam pessoas que já ganharam projeto fora do Brasil. ‘Ah, ele já ganhou projeto internacional; cara bom para ser o presidente desse conselho’. E aí vai encaminhando a privatização. Não é?
 
CUT: Esse modelo até o momento não deixou muito explícito como ficará o repasse de verbas para as escolas. Mas temos repasse de verba para merenda, livros didáticos, verba direta enviada pelo MEC. Como você imagina que ficará esse repasse, já que terá tanto o repasse de dinheiro do estado para pagar o contrato, quanto do governo federal. Como você faz essa leitura?
Cristino: Aí que está uma questão interessante, o financiamento da OS é um financiamento público. Está dado na lei, embora eles digam que é sem fins lucrativos. É sem fins lucrativos, mas quem financia é o público. Então o que acontece, eles colocam que é o poder público que vai financiar independente de ser federal ou estadual. O dinheiro vem para o financeiro e recursos materiais. Todos os recursos financeiros para materiais, mobiliário, tudo vai ser por conta do público. O grande problema que eu vejo nesse gerenciamento do financeiro é exatamente porque a gente tem um PDE (Plano de Desenvolvimento da Escola). A grande discussão que nós colocamos por meio dele é: o financiamento público tem que ser do público e não vejo como ser diferente para a gestão pública. Por meio da terceirização, não. Embora o serviço seja público, a gestão estará composta por uma empresa privada. Para mim preocupa mais o fato de gerenciar esses três pilares (o financeiro, o administrativo e o pedagógico) sob os ditames de uma administração de caráter privado. Nós sabemos que repasse público para empresas hoje em dia no que dá. Eles não pagam direito, atrasam salários, não fazem investimento adequado. Então tudo isso corrobora a desconfiança e eu desconfio que o gerenciamento da parte financeira desses recursos não será transparente e vai ter muita falcatrua.
 
imagesCUT: Em relação à militarização das escolas no Goiás: como está funcionando?
Cristino: No Goiás a ideia é colocar o militar para ser uma espécie de gestor nas escolas. Segundo eles, o militar consegue disciplinar o estudante. Eles acham que o alunado público é muito indisciplinado, que o aluno precisa ter um comportamento padrão. E isso não é muito diferente daqui [DF], não. Eu trabalhei lá na L2 Norte, no antigo Centro Educacional CAN, que mudou para o nome de Paulo Freire.  Tive uma aluna que saiu do Colégio Militar e estava lá na sala. Comentei com os colegas [professores] que tinha uma menina que veio do Colégio Militar totalmente diferente. Até para falar era de maneira formal, muito bem recatada, preocupada e com medo de abrir a boca. Eu fazia pergunta pra ela e ela se fechava e não se sentia à vontade para fazer certos debates. Senti que ela tivesse sido “formatada” dentro de um padrão militar. E o que me preocupa é que esse pensamento de Goiás, de que o militar será solução ao comportamento dito ‘anormal e desajustado’, acabe amesquinhando o espírito que fala, age, contesta, propõe e decide. A solução nesse modelo é para amordaçar o estudante, professores, pais, mães e responsáveis. Quando eles perceberem que o estudante e o profissional da educação estão fazendo uma reflexão crítica, vão começar a fechar o cerco e falar que ‘estudante veio para a escola para estudar e professor para ensinar e ponto final’. Na verdade o militar pela própria formação e pela própria cultura é fechado e truculento. Eles não têm a dimensão humana que tem a relação de um gestor público que atua com outra formação. A minha preocupação é que, ocorrendo em Goiás a militarização da escola e chegando a outros entes federados, será um perigo. Se nós queremos é a desmilitarização da polícia, você imagina como é que vai ser colocar dentro das escolas a polícia pra fazer um trabalho de gestão de crianças, adolescentes, jovens e adultos? Aí que vai ser o dano maior.
 
CUT: E esse processo tanto da charter schools quanto da militarização da educação pode ser implantado no DF?
Cristino: Eu vejo uma grande cópia. Um querendo copiar do outro. Eu acho pouco inteligente essas cópias, porque toda pessoa que copia sem avaliar profundamente a sua localidade, as suas possibilidades, as suas potencialidades e apenas copia pode estar fazendo por ingenuidade mesmo, por burrice, ou por atrelamento a um modelo que se impõe dos Estados Unidos pra cá como um pacote neoliberal. E a gente sabe que os nossos governos tanto estaduais quanto federal ainda estão bebendo nessa fonte neoliberal. Tanto é que acabam indo visitar os EUA e até Washington, onde se deu o ‘Consenso de Washington’. E eles trazem essas sugestões que na verdade não são sugestões, são coisas amarradas de um falso consenso, uma imposição. Existe algo muito sutil de imposição dos Estados Unidos de polo dominador do mundo. Acho que ainda está na cabeça do brasileiro e do latino americano que os Estados Unidos funcionam dessa forma. O que eles ditam está bom para ser copiado, está bonito. É aquele estilo hollywoodiano que eles divulgam como uma coisa muito bonita nos filmes, e a América Latina engole como se fosse algo bom, algo verdadeiro de ser copiado. Acho que é um grande erro, um grande equívoco de governos, e aí eu volto a dizer. Não é só conspiração, o governo brasileiro, os governos latino-americanos, eles têm a condição de dizer ‘não’. De dizer não, e de dizer ‘basta’ de autoritarismo e de imposição. E aí eu retomo o pensamento de Sartre: ‘nós somos aquilo que fazemos do que fazem de nós’. Significa que nós temos uma missão de reverter essa história, de não aceitar o que já está posto por uma imposição. Nós temos condição de pensar a nossa história, refazer aquilo, daquilo que fizeram de nós. Da colônia, da ditadura, do nazismo, neonazismo, da guerra mundial. Muitas pessoas se refizeram, outras estão ainda com o ranço desses modelos.
 
CUT: Partindo da cultura local do DF, quais seriam os malefícios da implantação desse modelo aqui?
Cristino: O DF tem uma cultura muito diversa. É um caldeirão de culturas. Acho que na verdade não existe uma cultura. Existem várias culturas do país que estão aqui dentro. Agora, enquanto localidade eu diria que faz parte da luta, e eu acho que é uma cultura da luta. A luta é uma cultura, um tipo de cultura, e dentro da educação, da particularidade, ela vem crescendo. Essas assembleias que nós tivemos esse ano, na educação, mostram que houve um crescimento da consciência do professor e do gestor público. Tanto que houve gestores públicos de escolas que fecharam a escola, coisa que nunca tinha acontecido em outros governos. A consciência começou a melhorar. Lotaram as assembleias, diretores fechando escolas. Antes o diretor ficava com receio. A Regional mandava um documento falando para arrochar os professores que estavam na greve. Hoje, não. O pessoal está fechando escola. Na Ceilândia fecharam escolas e ainda fizeram manifestos protestando contra a violência contra a categoria no Eixão sul. Eu vejo que a afronta da OS a essa cultura local é uma afronta ao que já temos de conquista. A lei de gestão democrática já conquistou minimamente uma gestão participativa. E isso seria uma grande afronta a essa cultura da luta, da resistência da cultura participativa e da tomada de decisão. Uma coisa que me lembra no documento, a lei de gestão democrática quem decide quem fica ou não, é a chamada assembleia geral escolar. Na gestão da OS é o executivo quem tira: ‘você não está dando certo, vai sair’. A militarização vem como pacote dentro do contexto do estatuto e do contrato de gestão, como eu disse antes: no contrato de gestão privado cabe tudo. E aí os espertalhões neoliberais vão falar “vamos colocar aqui os militares, eles vão ser interessantes pra isso, da disciplina, acabar com esses problemas de bagunça na escola”. Porque eles chamam tudo de bagunça. Não vai ter grêmio estudantil, eu acredito que já era. Dentro desse modelo qual é o grêmio que vai conseguir ter voz em uma escola tendo um militar como gestor? O cara vai intimidar, vai chamar o cara em uma salinha. A polícia lá dentro; vai ser isso também; vai ser um desastre, vai ser uma coisa de louco se isso ocorrer.
 
escola_privadaCUT: Essa terceirização da educação pode ser entendida como um processo de diminuição do estado, e que retira direitos?
Cristino: O Estado mínimo não veio para garantir direitos, mas privilégios. E quando garante o faz de modo amplo para as classes dirigentes e dominantesÉ que na verdade existe uma grande contradição. O Estado mínimo é mínimo para quem? É Maximo para quem? Penso que o Estado mínimo é mínimo na hora de garantir os direitos: direitos humanos, educação pública de qualidade, investimento público no público, mas é máximo, absoluto, na defesa da classe dominante, da elite empresarial, dos latifundiários, banqueiros e lideranças políticas. Tanto é que a ideia de Estado mínimo é melhor para o crescimento das empresas e das demais estruturas de poder. Porque eles [neoliberais] pensam que o Estado é um ente que dificulta a qualidade dos serviços públicos, sendo a intervenção no Estado um mal necessário. Tanto é que eles querem menos Estado intervindo nas políticas sociais. Ou se intervém, intervém em favor das empresas privadas. Aí eu tomo como base o Pablo Gentili [teórico e doutor em educação], quando ele coloca essa questão: a ideia de Estado mínimo é o Estado regulador de ações mínimas dentro da esfera pública. Então, por exemplo, o Estado que recua nas políticas sociais é um estado bom para o neoliberalismo. Então ele acha que se o Estado promovesse uma disputa com punição e recompensa seria um Estado melhor. Na verdade eu vejo o seguinte: o Estado mínimo é mínimo para essas questões reais de defesa dos direitos humanos. Você vê aí o Judiciário, o que fez na greve [dos professores]? Declarou ilegal. O Estado máximo acoplado ao judiciário age em defesa do status quo do Estado e de suas lideranças políticas. Isso é o que beneficia o liberalismo. É isso, o jurídico, a grande mídia e os tribunais todos a favor do Estado. Enquanto isso o Estado é absoluto para promover a defesa do status quo dos governantes e dos empresários, mas é mínimo no sentido de defender os interesses da população. Essa é a grande contradição do Estado mínimo. Então eu não vejo que ele seja apenas mínimo, na concepção genérica que se imprimiu. Ele é Estado absoluto e forte na defesa do patrão, do empresário.
 
CUT: Esse pacote neoliberal tem origem no Consenso de Washington?
Cristino: O Consenso eu digo que é um falso consenso. Porque ele foi colocado em Washington quando o Banco Mundial, o FMI, e o banco do Tesouro dos Estados Unidos por meio dos especialistas ditaram regras a serem seguidas por governos da América Latina. John Willianson que era um dos representantes do ideário neoliberal escreveu 10 regras que seriam cumpridas pelo restante das nações, especialmente da América Latina. Entre elas a privatização, disciplina fiscal, a liberalização do setor financeiro, a desrregularização da economia e etc. Usou-se “Consenso” significando que todo mundo concordou com aquele pacote de princípios formulado. Então, por acontecer em Washington com o aval dos agentes internacionais que estavam financiando aquela proposta foi chamado de “Consenso de Washington”. O dito consenso foi considerado como imposição. Segundo estudiosos foi ali que começou o grande projeto neoliberal para a América latina. Inclusive o Fernando Henrique Cardoso se ajustou a esse pacote de 10 princípios ditados por bancos. Mas foi tão perverso que o formulador John Willianson ficou preocupado com a extensão que tomou aquele pacote. Feito nos Estados Unidos como princípio norteador do mundo, assumido por nós, pelos governos brasileiros e da América Latina. Então quer dizer, significa que houve uma imposição de um pacote enquanto princípio, mas houve também uma subserviência dos países em desenvolvimento. Você não precisa assumir uma imposição. Faltou uma avaliação mais rigorosa quando se aplicou todo aquele pacote no Brasil. E aí veio o desastre. O Governo do Fernando Henrique Cardoso foi um desastre exatamente por isso: porque ele assumiu na íntegra o pacote de princípios do consenso de Washington. Tanto é que o Pablo Gentili e o renomado geógrafo e pensador Milton Santos colocam o seguinte, que o pacote neoliberal aprofundou as crises econômicas, a pobreza e o desemprego. Aprofundou com esse pacote os problemas educacionais. Então em vez de melhorar, cresceram os problemas. Significa que aquele pacote é inadequado às realidades locais da América Latina. Em questão de como ficaria a aplicação de uma OS dentro de uma cultura regional, a globalização e o neoliberalismo gera todo esse problema para as localidades por ser um pacote homogêneo e hegemônico, um pacote que homogeniza todos os pensamentos, todas as ideologias. E ainda hoje nós vivemos um pouco disso, dos bancos ditando o que devemos fazer. A política do FMI continua interferindo na América Latina por meio do MEC. Então o MEC eu não tenho dúvida: bebe na fonte neoliberal e repassa isso para o Brasil por meio do discurso, da ideologia de consultores, por meio dos programas que eles implementam, tudo com base no que o banco mundial, FMI e o Banco interamericano de desenvolvimento pretendem, então não é a política própria brasileira, a política local. É uma política baseada em banco.
 
CUT: O Consenso de Washington então tem uma influência muito forte no Brasil?
Cristino: Muito forte. E continua influenciando fortemente. Tanto é que a secretária de Educação em Goiás foi pra lá [Estados Unidos] ver o modelo das escolas charter. Então eles continuam com muita força, continuam vendo a gente como periferia. Eu acho que o grande equívoco dos Estados Unidos é de ainda perceber muitos países da América Latina como periferia. Eles acham que nós somos periferia e eles são sempre o polo da economia, do militar e da receita. Então eles acham que tem sempre a receita. E o pior é que nós e o governo brasileiro ainda pensamos que a receita está lá, que tem que ser copiada, que ela é boa. Embora você aplique ali o ingrediente deles e o bolo possa sair ruim. Mas veio dos Estados Unidos é bom, porque vem de um grande polo, de uma grande nação. Acho até que é uma forma de idolatria. Como tem a idolatria do mercado, existe a idolatria religiosa, eu vejo que existe uma idolatria aos Estados Unidos. E acho que a gente precisa desarticular essa idolatria para que possamos caminhar para a soberania. Se não vamos ficar copiando sempre essas experiências que ninguém sabe se deu certo ou não, e se temos as mesmas condições de fazer as mesmas coisas.