DESPOLITIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA E MILITARIZAÇÃO DA ESCOLA: FACES DA MESMA MOEDA

Em meu tempo de criança, brincávamos de futebol na rua de nossas casas, precisamente em Santo Antônio do Descoberto-GO. Para escolher o lado do campo e qual dos dois grupos sairia com a bola, usávamos dois recursos: esconder as mãos e perguntar: “par ou ímpar?” Ou, então, com uma moeda na mão, dizíamos: “cara ou coroa?”. Hoje, à beira da melhor idade, meu tempo está dedicado a pensar coisas sérias e com seriedade, entre a quais a despolitização da educação pública e militarização da escola: faces de uma mesma moeda. As vivências tematizam e problematizam a realidade da educação pública do Distrito Federal, os riscos de um projeto amador messiânico mecanicista e sinalizam proposições mais congruentes.

VIVÊNCIAS NO MUNDO DA PRÁXIS PROBLEMATIZAM O PROJETO SOS SEGURANÇA

A moeda com dois lados tem um sentido muito particular no contexto dessa tematização e, sem dúvida, problematização do que se despontou no GDF/SEDF, no início do mandato de Ibaneis Rocha/Rafael Parente como projeto “SOS SEGURANÇA”, sendo quatro escolas públicas (CED 1 da Estrutural, CED 3 de Sobradinho, CED 7 de Ceilândia e CED 308 do Recanto), espaços escolhidos para implantar a militarização, com o ensejo de extensão a outras unidades de ensino. Esse contributo pode ser lido, relido e problematizado na sala de aula, em coordenações coletivas de professores/as, orientadores/as educacionais, auxiliares da educação, no movimento social, etc.

É de inteira importância renomear o projeto “SOS SEGURANÇA” em sua propositura voltada à escola pública do DF: em face da violência de estruturas socioeconômicas injustas acoplada ao modo de fazer política de sucessivos governos, é mais coerente dizer militarização da escola e despolitização da educação como decorrente dessa política, por não se tratar de um simples projeto orientado por boas intenções. Sinaliza, a rigor, uma tentativa de desqualificação da educação como ato político e do desmonte de processos democráticos e, em decorrência, o silenciamento de vozes dissonantes e despolitização da educação, não apenas no âmbito local (GDF), mas em dimensão nacional, caso seja extensivo a todos os entes federados.

Essa iniciativa não pode ser comemorada pela comunidade escolar, Associação de Pais e Alunos das Instituições de Ensino do Distrito Federal (ASPA), nem pelos Deputados/as Distritais e sociedade em geral como solução para escolas com problemas de alto índice de violência, baixo rendimento, reprovação e outros problemas correlatos. Educação de qualidade pedagógica, social, gnosiológica e política não ocorre com militarização, mas com politização, com politicidade e eticidade.

Violência, indisciplina e baixo rendimento não podem ser percebidos como um ato isolado do indivíduo, nem como simples caso de polícia. Têm a ver, em maior profundidade, com problemas estruturais: modo de fazer política de sucessivos governos e com a maneira de produzir a existência/sobrevivência em que há crescimento econômico e desenvolvimento humano desiguais. Minha incursão no trabalho docente traduz parte da insuficiência do projeto “SOS SEGURANÇA” voltado à educação pública. Vejamos algumas vivências.

Em minha incursão por mais de 22 anos de magistério público, já separei briga no pátio da escola; perdemos aluna e aluno com menos de 17 anos de idade, ambos pelo que se convencionou a chamar de “balas perdidas”, o que me inspirou a produzir um texto no início dos anos 2000 ao Correio Braziliense, com o título “os Brunos de Ceilândia”, refletindo sobre a violência no entorno da escola.

Ouvi de estudantes homossexuais queixas de desrespeito às orientações sexuais; ouvi narrativas de estudantes negros vítimas de abordagem policial truculenta. Ouvi narrativas de mulheres estudantes sobre experiências de violência doméstica. Essas vivências não podem ser ocultadas por um tipo de currículo oficial, nem pelos ditames autoritários de um “Programa Escola sem Partido” que, paradoxalmente, é proposto por quem tem partido e tenta impor seu ideário na forma da lei.

Vi também mães sendo assaltadas e seus carros sendo levados na frente da escola; ouvi professora contar ter sido ser assaltada ao  chegar em sua casa e ver o carro ser levado com seu filho dentro; muitas professoras e professores assaltados na frente da escola, outros assassinados em latrocínio ao chegar em casa após o árduo trabalho nas escolas. Tudo indica que o sem-número de violência em nível societário não pode ser ignorado ao lidar com o projeto “SOS SEGURANÇA”, tendo a escola como locus de aplicação, melhor dizer de imposição.

Fui vítima de violência, assaltado à mão armada ao sair do trabalho. A polícia, ao ser acionada, disse não poder fazer nada e sugeriu nem fazer ocorrência, porque, segundo ele, “o juiz libera o adolescente antes da conclusão dos procedimentos na delegacia”. Essa experiência traumática deixou marca indelével em minha trajetória profissional e humana.

Vi professores/as e diretores/as sindicais do SINPRO-DF sendo vítimas da violência policial (Batalhão de choque) quando no Eixão-DF, em 2015, faziam a disputa por melhores condições de trabalho na educação pública no Distrito Federal. Alguns foram detidos, outros saíram feridos, inclusive professoras. Situação similar ocorreu no Paraná, na frente da Assembleia Legislativa, em 2015. Para professores/as são oferecidos batalhão de choque, bombas de efeito moral, balas de borracha, jatos de água, gás de pimenta, cassetete, polícia montada a cavalo, cães adestrados, etc. É impossível não ter ressentimento ao lembrar da forca na casa de carrasco, e a polícia militar na escola lembra o que?

Vi agente do poder público do alto escalão usar a mão com o formato de um instrumento vil, apontando para algum lugar. Muitas pessoas, de diferentes grupos sociais repetem o gesto de maneira mimética, hipnótica e sugestionável. É preciso fazer a discussão ético-política e jurídica se esse gesto pode ser considerado apologia ao instrumento vil, portanto, uma espécie de crime.

Em uma perspectiva institucional (Presidência da República), foi decretada facilidade de posse de armas no Brasil, país que padece de quatro grandes problemas cruciais de nosso tempo: feminicídio, suicídio, homicídio e genocídio. O armamento fortalece o crime e acelera a violência. No contexto de um governo que facilita o uso de armas, enaltece e lê Carlos Alberto Brilhante Ustra, e propõe silenciamento de vozes e práticas dissonantes por meio de “Programa Escola Sem P,artido”, qual movimento/projeto maior e urgente que precisa ser feito, no, com e para além dos muros das escolas?

Acompanhei e, em alguns momentos, contribuí com a discussão e avaliação de redações do projeto Concurso de Redação e Desenho do SINPRO-DF. Esse projeto tem como ideia-mote o debate e a superação da violência na escola e na sociedade em geral, dando seu contributo, desde 2008, com as seguintes temáticas: em 2008:Violência – o que você pensa disso?; em 2011: Bullying: essa brincadeira não tem graça; em 2012: Quem ama cuida! Cultive essa ideia; em 2013: O que você vê na mídia, muda sua forma de ver o mundo? O que você gosta e o que você não gosta de ver na televisão? em 2014: A escola pública que eu quero; em 2015: Discriminação produz violência; em 2016: Eu, a educação e a democracia transformamos o mundo; em 2017: O mundo tem lugar para todos; em 2018: Água: sede de viver, sede de sobreviver. A discussão e X concurso de 2019 está previsto para iniciar em fevereiro com o tema Todas contra o feminicídio.

O que cabe ao Sindicato de professores/as está sendo feito na articulação e efetividade de suas diversas secretarias, mas qual a parte dos governos? Apenas militarizar e despolitizar as escolas paulatinamente? Não é da competência de sindicatos substituir governos, e os/as dirigentes sindicais têm esse entendimento, de maneira que Antônio Lisboa – professor da rede pública do DF e membro da Organização Internacional do Trabalho (OIT) diz, com precisão, que “o papel do governo é governar, o papel dos sindicatos é sindicatear”.

Esses e outros fatos colocam em xeque o projeto SOS SEGURANÇA, em que se atribui ao policial a função de salvador da pátria, nada a mais do que um messianismo mecanicista autoritário. Quais os riscos? Quais ações mais efetivas podem ser tomadas em termos societários, na escola e para além da escola? O objetivo dessa discussão é fomentar o debate na comunidade escolar e em espaços nos quais se julgue necessário levar a cabo a problematização desse projeto, de maneira que se produza uma práxis intersetorial, interdisciplinar e multidimensional sobre problemas internos e externos da comunidade escolar. Evidencio alguns riscos do projeto SOS SEGURANÇA para a Escola Pública, laica e democrática:

RISCOS DA MILITARIZAÇÃO DA ESCOLA PÚBLICA – DENÚNCIAS

PRIMEIRO RISCO: presença da polícia militar na escola como inibidora e silenciadora de estudantes, pais, mães e/ou responsáveis (pátio, sala de aula, sala dos professores/as). Não dá para acreditar que a polícia militar não vá interferir nos processos pedagógicos e administrativos da escola. Não há presença neutra no mundo, muito menos na escola. O modelo que se impõe pode transformar o espaço escolar em prisão: vigiar, silenciar, subordinar, punir e excluir. O que dizer do movimentevista em escola militarizada? Seguramente será desconfortável e conflitante discutir direitos com quem é mão estendida do Estado burguês. O fato é que a ferida aberta e a experiência de detenção de professores/as e sindicalistas no Distrito Federal, é uma ferida aberta que ainda não cicatrizou.

SEGUNDO RISCO: Passagem imposta de uma educação como atos político, social, pedagógico e gnosiológico a uma educação enquanto ato militar.

TERCEIRO RISCO: fazer a discussão simplista de sim ou não ao projeto SOS SEGURANÇA. O projeto deve ser visto em sua complexidade, sua intencionalidade e ideário maior, para além de uma simples ocupação escolar por militares “bem intencionados”.

QUARTO RISCO: Inviabilizar/emperrar uma pedagogia crítica radical libertadora – denúncia e anúncio (FREIRE, 2000) e leva a cabo, em decorrência, o “Programa Escola Sem Partido”, desqualificando a educação como ato político e tornando cada vez mais forte a tendência de educação messiânica mecanicista, tal qual o projeto que se desponta, com o agravante de ser autoritário.

QUINTO RISCO:  Cenário de produção de sociedade civil de baixo (camadas populares) submetida à sociedade civil de cima (governos, patentes militares, empresários, latifundiários, banqueiros, narcotráfico…). Formação para tornar-se rebanho servil transforma o ser da práxis em ser vulnerável a todos os ataques midiáticos, da politicalha, esquadrão da morte, da corporação dominante que pretende manter no poder para subjugar, explorar e excluir.

SEXTO RISCO:  Adoção de aparelho repressivo vestida de solução mágica. A repressão pode não ser física para deixar a impressão de docilidade, mas pode correr o risco de vivenciar na escola uma “PAX ROMANA”, Período de relativa paz gerada pelas armas e pelo autoritarismo, experimentado pelo Império Romano, que iniciou-se quando Augusto, em 28 a.C., declarou o fim das guerras civis e durou até o ano da morte do imperador Marco Aurélio, em 180 d.C..

SÉTIMO RISCO: Desqualificação e desmonte da Lei de Gestão Democrática N° 4.751, de 07 de fevereiro de 2012 sancionada por meio de muita luta sindical/categoria, de modo particular o Art. 2º, inciso V: garantia de qualidade social, traduzida pela busca constante do pleno desenvolvimento da pessoa, do preparo para o exercício da cidadania e da qualificação para o trabalho. Isso significa que a militarização pode falhar no que diz respeito principalmente ao ideário de “pleno desenvolvimento da pessoa e o preparo para o exercício da cidadania”. É fato que aumentar números no IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio); Provinha Brasil, etc., não se confundem com aprendizagens significativas.  O risco decorrente é estabelecer metas para atingir ranking e maquiar a realidade. Em outra perspectiva, dizer “sim senhor” e estabelecer relação de obediência cega e servil não é sinônimo de disciplina. É necessário resgatar a autoridade sem autoritarismo e a liberdade sem licenciosidade (FREIRE, 2000).

OITAVO RISCO: Implantação gradual sutil ou escancarada do “Programa Escola Sem Partido”. A presença inibidora e silenciadora da polícia militar na escola pode ser indício do que FREIRE (2000) chama de “desproblematização do presente e do futuro”. Cuidado para não fazer a confusão entre silêncio em sala de aula, no pátio e na sala dos professores/as com silenciamento (violência simbólica) nesses espaços. Problematizar em contexto militar é considerado afronta e desacato, e as vítimas da ditadura militar sabem o que é ser torturado/a e morto em razão da problematização da realidade.

NONO RISCO: objetificação dos profissionais da educação e dos estudantes. A relação pessoa-pessoa na escola pode ser substituída pela relação objeto-objeto e/ou pessoa-objeto, em que o militar é a pessoa, profissionais da educação e estudantes objetos e subordinados aos caprichos dominantes.

DÉCIMO RISCO: Aprofundamento dos conflitos internos e adoecimento em contexto de “Pax Romana”, de falso sucesso ou de sucesso às custas de adoecimento e morte dos profissionais da educação.

DÉCIMO PRIMEIRO RISCO: parceria restrita e projeto inadequado. A ideia de parceria com a Polícia Militar é restringente e inadequada ante os princípios da gestão democrática e das diversas possibilidades de articulação com outras secretarias, sindicatos e movimento social reivindicativo e combativo. É indispensável perceber a interseccionalidade entre classe, etnia/raça, orientação sexual, família, instituições sociais, empregabilidade, gênero, geracional no que diz respeito às políticas educacionais.

DÉCIMO SEGUNDO RISCO: Institucionalização da militarização da educação pública acoplada à despolitização e desproblematização da realidade local levada à cabo à nível nacional. O ideário do projeto não é ingênuo: pode ter pretensões a longo prazo de ser extensivo a outros entes federados e/ou fortalecer o que já existe em alguns Estados.

Ao apresentar uma plataforma de riscos à educação em seus quatro lados: pública, gratuita, laica e democrática, há que sinalizar o anúncio do que fazer aberto a outras denúncias e anúncios de igual valor. Proponho, com o mesmo senso didático, algumas sugestões que podem ser problematizadas e ampliadas.

PROPOSIÇÕES – ANÚNCIOS

PRIMEIRA PROPOSIÇÃO – ANÚNCIO: promover investimento na educação pública – atender as exigências do PDE – Plano Distrital de Educação e o Plano de Carreira do Magistério Público do Distrito Federal. A qualidade dos quatro lados (Social, Política, Pedagógica e Gnosiológica) passa pelo direito à educação com condições objetivas de trabalho, salário, proteção, saúde, expressão, formação, etc.

SEGUNDA PROPOSIÇÃO – ANÚNCIO: construir parcerias de perspectiva revolucionaria para fazer o debate e enfrentamento de ações arbitrárias no âmbito do GDF/SEDF/GOVERNO FEDERAL.

TERCEIRA PROPOSIÇÃO – ANÚNCIO: governos pensarem política pública de segurança efetiva de dimensão universal – polícia na escola não soluciona a violência que circunda o entorno da escola. Ouvir a comunidade escolar sobre o como enfrentar a violência na escola e seu entorno – Política pública a partir do que vive e pensa a comunidade/sociedade.

QUARTA PROPOSIÇÃO – ANÚNCIO: pensar política de segurança com visão multidimensional e articulação intersetorial: Ex: Comunidade Escolar/sociedade, Movimento Social/Sindical, Secretaria de Saúde, Secretaria de Cultura, Secretaria da Mulher, Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (não há justificativa para a sua extinção), Secretaria de Educação, Secretaria de segurança Pública, Secretaria de Desenvolvimento econômico, trabalho e mobilidade, etc.

QUINTA PROPOSIÇÃO – ANÚNCIO: promover debate com a comunidade escolar e com estudantes na particularidade sobre o projeto “SOS segurança” e seu desdobramento, podendo ser discutido os riscos explicitados nesse contributo.

SEXTA PROPOSIÇÃO – ANÚNCIO: resgate e fortalecimento do concurso de redação e desenho do SINPRO-DF.

SÉTIMA PROPOSIÇÃO – ANÚNCIO: convocação de Assembleia para apresentar o projeto “SOS SEGURANÇA” e traçar linhas de ação, entre as quais aulas públicas e estudos sistemáticos sobre o caráter despolitizador da educação pública.

OITAVA PROPOSIÇÃO – ANÚNCIO: evitar/superar o amadorismo e experimento da educação pública. Precisamos tratar a educação pública, estudantes e profissionais com seriedade ética, política, pedagógica, administrativa e gnosiológica.

NONA PROPOSIÇÃO – ANÚNCIO: Mobilização organizada conjunta pela revogação do decreto presidencial que facilita a posse de armas de fogo.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000.

Por Cristino Cesário Rocha*

* Cristino Cesário Rocha é professor da rede pública de ensino do Distrito Federal. Possui formação teológico-filosófica; pós-graduações latu sensu em Administração da Educação (UnB); Culturas Negras no Atlântico: história da África e afro-brasileiros (UnB); Educação, democracia e gestão escolar (UNITINS/SINPRO/DF e em Educação na Diversidade e Cidadania com ênfase na Educação de Jovens e Adultos (UnB). É mestre em Educação no PPGE/UnB. Linha de pesquisa: Escola, Aprendizagem, Práticas Pedagógicas e Subjetividade na Educação. Participa do Pós-Populares: Programa da UnB, Coordenado pelo professor Drº Erlando Rêses. Artigo para uma reflexão sobre a educação pública do DF. Janeiro de 2019.