Deixa o crespo crescer, irmão!

Apesar de haver poucas mulheres negras com cabelos crespos naturais, elas existem – principalmente nos movimentos pela valorização do cabelo natural, como o Meninas Black Power, e entre as blogueiras de beleza negra que se esforçam para promover os crespos femininos. No entanto, os homens negros que possuem cabelos crespos ainda estão invisíveis, esquecidos devido ao racismo brasileiro.
Culturalmente, até mesmo os cabelos humanos são separados de acordo com o gênero: às mulheres, a sociedade impõe cabelos longos, pois seriam um suposto símbolo de feminilidade. Por esse motivo, é comum que homens tenham cabelos curtos, para que não deixem de transmistir uma imagem masculina. No caso dos homens negros, no entanto, o “curto” exigido vai além, já que a cabeça raspada é, muitas vezes, a única alternativa socialmente aceitável.
Não por acaso, poucos questionam esse padrão capilar empurrado aos homens negros. Com a desculpa cínica da “boa aparência”, nossa cultura continua lutando para esconder qualquer característica negra. De fato, muitos racistas acreditam que traços negros jamais poderiam ser belos e que, portanto, é melhor que sejam omitidos.
Pode ser incômodo ser confrontado a respeito do racismo de suas “preferências estéticas”. Felizmente, há homens negros com cabelos crescidos e naturais que apontam o problema. É preciso rever as opiniões, pois ninguém nasce racista. Não é por acaso que o homem negro de cabelo natural, trançado ou com dreads, é sempre retratado como figura perigosa, como um bandido ou vagabundo; ao longo da vida recebemos uma enorme carga de ensinamentos tendenciosos, espalhados pela mídia, pela indústria de beleza e até mesmo na escola. O nome disso é, sim, racismo.
Deixa o black crescer!
O estudante de Letras Franklin Arruda tinha um sonho muito simples: ele queria amarrar seu cabelo. Para tal, o deixou crescer após ter acesso ao movimento negro e passar a se identificar como negro. Com reconhecimento da própria negritude, Arruda entendeu muito mais sobre sua relação com seu cabelo e o que isso implica na sociedade.
“De certo modo, os homens negros não têm relação com os cabelos afro”, afirma Arruda. “A influência histórica tem o seu papel no encurtamento do cabelo masculino afro, como tem influência no cabelo feminino, alisando-o”, afirma. Para ele, a questão é muito mais do que estética: “Lutamos por uma causa maior”, explica.
Franklin Arruda (Foto: Arquivo Pessoal)
O assessor de imprensa Diogo Oliveira, que também exibe seus belos cachos naturais, compartilha posturas similares. Ele comenta o fenômeno social que é encontrar homens negros de cabelo raspado: “O grande número de homens negros de cabelo muito baixo ou raspado definitivamente é reflexo do racismo. Aprendemos que o nosso cabelo é ruim, que o nosso cabelo é feio e que raspar é a única opção de corte; no máximo deixamos um pouco de cabelo no topo da cabeça e raspamos as laterais. A vaidade é negada ao homem negro e mesmo quando há algum movimento em busca de recuperá-la, como aqueles desenhos na cabeça, grafismos ou descolorir os fios, mesmo assim essas mudanças são vistas como motivos de chacota ou são marginalizadas”.
É interessante que os processos de alisamento ou relaxamento, tão presentes na relação das mulheres com seus cabelos crespos, também fizeram parte da história de Oliveira. “Eu, como muitos homens negros, usei durante muito tempo o cabelo raspado. Antes disso, na infância e adolescência, tentei ‘dar um jeito’ no meu cabelo de diversas maneiras, como relaxamento, cortes diferentes, hidratações, mas tudo tentando mascarar meu cabelo crespo, com o desejo de torná-lo mais liso, mais dentro dos padrões das revistas e do que era considerado ‘bonito’”, explica.
Não por acaso, Oliveira chegou a essas reflexões por meio de discussões femininas sobre a valorização do cabelo afro. “O meu processo de assumir os cabelos crespos começou graças ao feminismo realizado por mulheres negras, foi lendo algumas autoras que eu entendi que o cabelo crespo era lindo e que as mulheres negras não precisavam alisá-los para se sentirem mais bonitas. Nessa época, eu raspava o cabelo bem curtinho e, me achando muito esclarecido, tentava passar esse conceito para amigas que alisavam o cabelo. Foi quando eu percebi que raspar a cabeça para mim estava como o alisamento para algumas pessoas. Era a busca por ser aceito, por parecer mais branco”, constata.
Diogo ainda conta que, quando decidiu deixar o cabelo crescer, não tinha nenhum conhecimento sobre a textura dos seus fios, não sabia se seriam de cachos mais abertos ou fechados, ou se seriam crespos com mais volume e sem definição de cachos. Ele mantinha sua intenção de ter os cabelos crescidos e naturais ainda escondida, pois tinha muita vergonha. No início, recebeu diversas críticas e comentários ofensivos que lhe trouxeram momentos de baixa autoestima. Apesar disso, Oliveira buscou na internet uma alternativa diferente das opiniões depreciativas e, por meio de blogs e página no Facebook, encontrou a representação positiva que precisava. “Hoje, lá se vão quase dois anos sem cortar o cabelo e o melhor de tudo é que consegui influenciar algumas pessoas à minha volta a assumirem os fios crespos também”, conta com alegria.
Gênero e racismo
Embora os cabelos compridos sejam considerados símbolos de feminilidade e não sejam tão comuns em homens, homens brancos de cabelos lisos ainda enfrentam menos hostilidade do que homens negros de cabelos crespos. Para os brancos, há referências como músicos, artistas e atletas, pessoas em quem podem se inspirar. “Fora que há uma inegável valorização da beleza branca, eurocêntrica. Mesmo que um homem branco tenha cabelos crespos e ostente um Black Power, ele será muito mais valorizado e reconhecido do que um homem negro; é o que vemos com os dreads, por exemplo. Ao pesquisar sobre dreads na internet, há uma enxurrada de imagens de homens brancos com dreads, todos em uma pose de sex symbol alternativo e quase nenhuma imagem de homens negros”, argumenta Diogo Oliveira.
Para ele, que é gay, essa separação é ainda mais evidente. “O meio gay é um ambiente racista, existem homens gays que abertamente declaram que não se relacionam com homens negros e o preocupante é que isso é visto de maneira natural e quase cultural. Há uma nova moda de festas que se apropriam da cultura negra e das músicas voltadas ao público gay, que são muito bem sucedidas e recorde de público; no entanto, a cultura negra é muito bacana, mas os negros não”.
Diogo Oliveira (Foto: Arquivo Pessoal)
Construindo o diálogo entre as questões raciais e as de gênero, ainda é possível identificar muito machismo barrando a liberdade capilar dos homens negros. Para Franklin Arruda, esse ponto sempre lhe foi muito familiar: “Posso dizer que sou um exemplo ótimo pra isso. Em casa, meu cabelo é visto como feio para um homem, pelo simples fato de que o cabelo masculino é o cabelo curto e o longo carrega um contexto, um conceito machista. Alguns familiares perguntavam: ‘vai amarrar o cabelo que nem mulher?’, como se parecer-se com uma mulher fosse descer o nível”, relata. Arruda ainda deixa três dicas para os homens que não têm o cabelo crescido e natural: “Primeiramente, é preciso mostrar que ‘se parecer com uma mulher’ não é ruim, no caso de cabeleiras que se pareçam com cabelos femininos longos; segundo, você pode ter o cabelo que quiser, o cabelo não define ninguém; e terceiro, entenda o porquê de seu cabelo estar como está e o porquê de deixá-lo grande ou curto”.
Apesar dos obstáculos, Diogo Oliveira se mostra encorajado e diz que as coisas podem, sim, mudar no sentido de mais aceitação e mais liberdade para os cabelos crespos masculinos. “Eu vejo que algumas mães e pais começaram a valorizar os cabelos crespos dos filhos e isso é muito legal! Acho que o principal é a representatividade, o que vai demorar muito para acontecer nas grandes emissoras e revistas, mas pode ser encontrado na internet e nas ruas também. Em um dia desses, uma senhora me parou na rua e me pediu dicas para o cabelo do filho dela, ou seja, mais um crespo na rua”, comemora.
Oliveira também compartilha sua postura de encorajamento, estimulando outros homens negros para que tenham associações positivas com seus cabelos.  “Outra ação que eu tomo é sempre elogiar o cabelo de um irmão que está na transição ou que está deixando o cabelo crescer. Não vão nos valorizar, então nós temos que nos valorizar por nós mesmos, cuidando um do outro, mas claro que sempre cobrando nosso espaço”, afirma.
Para os homens negros, quebrar as barreiras do racismo e aprender a amar, cuidar e exibir suas características naturais, negras, é algo que rompe estruturas opressivas e propaga transformação social. “Eu costumo falar que deixar meu cabelo crescer foi uma decisão política e não estética. Nesses dois anos em que eu tenho o cabelo grande, minha relação com a cultura negra, com os projetos que valorizam os negros e também com os principais problemas que nos afligem ficou muito maior. À medida que meu cabelo crescia, eu tomei consciência do que representava ser um jovem negro na nossa sociedade”, conta Oliveira. “É a valorização da sua beleza, da sua origem e do seu posicionamento político”.
(Do Portal Forum)