Como lidar com as dores da mente na escola?
O que vem à sua mente quando você ouve a palavra “saúde”? Com frequência, o aspecto corporal é priorizado em detrimento dos fatores psicológico e emocional. Autor da célebre frase “mente sã, corpo são”, o poeta romano Décimo Júnio Juvenal viveu no primeiro século depois de Cristo e, naquela época, sabia da importância de cuidar tanto da psique quanto da carne. Mais de 1.800 anos depois, porém, o bem-estar da alma ainda não é levado tão a sério quanto o físico. Apesar de ser um assunto muito importante, a saúde mental não recebe a devida atenção e ainda é permeada por tabus, preconceito e desconhecimento; entraves para que pessoas que passam por problemas nesse campo consigam falar sobre a questão. E, nessa área, quando alguém sente que não pode contar ou conversar com ninguém, a situação chega a ponto crítico. A consequência extrema, o suicídio, ainda é pouco debatida nos mais diversos espaços de educação e na mídia.
O silêncio sobre o assunto resvala no temor de que disseminar informações sobre isso possa estimular mais mortes. É um risco real quando o problema não é abordado de maneira adequada. Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) acredita que o jornalismo tem um papel fundamental na prevenção do autoextermínio, desde que com cautela e responsabilidade. “O relato de suicídios de uma maneira apropriada, acurada e cuidadosa, por meios de comunicação esclarecida, pode prevenir perdas trágicas de vidas”, afirma o manual para profissionais da mídia da entidade, disponível no link. O problema – que afeta pessoas de todas as classes sociais, idades, religiões e gêneros – é muito grave para que a imprensa e a sociedade se calem sobre eles. Falar sobre isso, de forma responsável, sem alarmismo e enfrentando os estigmas relacionados ao assunto, é um fator de prevenção.
Nos últimos anos no Distrito Federal, os casos de suicídio passaram de 100 por ano, e os de tentativa ultrapassam 100 por mês. Até maio de 2018, 804 pessoas tentaram se matar, das quais 41 morreram. Em 2017, foram 1.916 tentativas e 167 óbitos. Em 2016, o número de mortes foi de 151. Os dados são da Secretaria de Estado de Saúde (SES/DF) e do Corpo de Bombeiros Militar (CBMDF). No Brasil, em média, 11 mil pessoas tiram a própria vida por ano, segundo o Ministério da Saúde. Entre 2011 e 2015, foram 55.649 casos, mais de cinco a cada 100 mil habitantes anualmente. Idosos acima dos 70 anos, pessoas com até três anos de estudo e a população indígena são os três maiores grupos que chegam a óbito. Mundialmente, são 800 mil mortes por ano, de acordo com a OMS. Para cada pessoa que morre desse maneira, outras 20 atentam contra a própria vida.
Muitos dos casos estão associados a algum tipo de transtorno psiquiátrico; o restante envolve problemas psicológicos. Ambas as situações, tratáveis, quando se procura ajuda. A depressão, que atinge mais de 300 milhões de pessoas globalmente, é apontada pela OMS como uma das principais causas da autodestruição. Outros fatores de risco são a dificuldade de lidar com estresses agudos ou crônicos e a violência baseada em gênero, o abuso infantil e a discriminação. No mundo, o suicídio é a segunda maior causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos – uma população amplamente frequentadora de escolas, cursinhos e faculdades. Essas instituições, em parceria com as famílias, podem conseguir resultados muito positivos, criando ambientes amigáveis, ao instigar relações que não sejam puramente acadêmicas, mas baseadas em pessoalidade, respeito e preocupação.
É preciso levar a sério
A aura de segredo que se faz presente ao tocar no assunto do autoextermínio não tem ajudado a prevenir a questão, pelo contrário: impede que pessoas tenha abertura para falar sobre isso. E o pior: reprime as que criam coragem para abordar o sofrimento psíquico. “A abertura para escutar é o que mais salva”, defende Felipe de Baére, psicólogo, mestre e doutorando em psicologia clínica e cultura pela Universidade de Brasília (UnB). “Não tem receita pronta, cada caso é um caso, mas, quando a gente se dispõe a ouvir o que o outro tem a dizer, inclusive falando sobre o desejo de morrer, isso pode fazer com que ele se organize emocionalmente.” Nem todos conseguirão se abrir, mas mostrar um ombro amigo vale muito. “Às vezes, também, a pessoa não consegue se abrir porque quem está ouvindo não tem condições de escutar, vem com frases prontas, querendo encerrar o assunto, por exemplo”, diz ele, que tem experiência com intervenção, avaliação e prevenção de risco de suicídio no Hospital Regional da Asa Norte (HRAN).
“A maioria das pessoas que vem a óbito dessa maneira, em algum momento, sinalizou esse desejo, conversando com alguém, demonstrando por meio de comportamentos…”, destaca. Mas nem sempre é assim. “A literatura aponta que costuma haver alguma sinalização, mas isso não é universal. Há quem tome uma decisão sobre o suicídio e não conte para ninguém.” Um quadro que, entre estudantes, poderia se reverter com mais estímulo à comunicação e à expressão de sentimentos em ambientes educacionais. Atualmente, mesmo quando a intenção de tirar a própria vida é manifestada, isso não quer dizer que uma intervenção será feita. “O problema é que, numa sociedade que preza a individualidade, um salve-se quem puder, cada um se proteja como pode. Tem gente que, infelizmente, não leva a sério, deixa para lá”, afirma. Segundo Felipe de Baére, é preciso prestar mais atenção aos sinais, além de não banalizá-los.
“Tem quem ache que uma manifestação é só ‘coisa para chamar a atenção’. Mas, se a pessoa está utilizando uma ameaça contra a própria vida, mesmo que tenha desejo de chamar atenção, a gente tem de escutá-la”, diz. De acordo com o acadêmico, é fundamental desmistificar e abrir espaço de diálogo, não só sobre o suicídio em si, mas sobre saúde mental. Tópicos que, muitas vezes, famílias e instituições de ensino tentam evitar. A popularidade da série 13 reasons why, exibida na plataforma de streaming Netflix, evidencia o interesse dos próprios jovens pelo assunto, então é melhor que aprendam sobre ele com referências corretas. E, quanto mais cedo o trabalho começa, melhores são os resultados. “Um exemplo positivo é o programa Amigos do Zippy (conheça a proposta e as escolas participantes no site), que desenvolve educação emocional entre alunos do 1º e do 2º anos do ensino fundamental. É uma pedagogia afetiva para as crianças chegarem mais preparadas à adolescência”, elogia Baére. “Quando você cria uma campanha institucional que viabiliza melhor a comunicação entre a comunidade acadêmica, nem que seja dizendo um simples ‘bom dia’ para alguém que passa com a cara emburrada, isso já cria outra atmosfera.”
Acolhimento na prática
Exemplo disso é o Projeto Gentileza, desenvolvido desde o início do ano no Centro de Ensino Fundamental (CEF) 10 de Ceilândia. “Trabalhamos valores perdidos na sociedade, o convívio harmônico, o cuidado com o outro, saber se colocar no lugar do outro, a autoestima”, observa Flávia Hamid Cândida, diretora do centro de ensino. Professora de geografia, ela percebe que as atividades previnem e combatem casos de bullying, automutilação e tendências autodestrutivas. A preocupação com a saúde mental dos estudantes têm se intensificado na Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SE/DF), e Ceilândia é um foco de atenção por ser a região onde a pasta observou maior número de ocorrências entre estudantes. “É a maior regional que temos, não em quantidade de escolas, mas de alunos. Então, os números de lá são maiores”, pondera Jackeline Domingues de Aguiar, diretora de Serviços e Projetos Especiais de Ensino da SE/DF. Desde 2009, o órgão promove, anualmente, a Semana de Educação para a Vida, com atividades nas escolas públicas.
No ano passado, bullying e suicídio foram as grandes temáticas trabalhadas. Em maio de 2018, as atividades envolveram proteção da criança e do adolescente. “Cada colégio tem sua programação. O objetivo é envolver toda a comunidade escolar de todas as etapas e modalidades, do ensino infantil à educação de jovens e adultos (EJA)”, diz. “Algumas escolas acabam se destacando porque têm projetos, caso do CEF 10 de Ceilândia. O que a gente acha mais interessante da proposta é que ela foi incorporada pelo projeto pedagógico da unidade, envolve todas as matérias e atende plenamente o currículo da educação básica, estimulando o respeito aos outros e a valorização da vida”, elogia. Ações como essa, avalia Jackeline, mudam a concepção dos funcionários e dos alunos e têm mais efetividade do que intervenções isoladas. “Temos tentado ao máximo fomentar isso na rede.”A atuação de professores, orientadores e diretores é crucial para identificar e agir em casos críticos.
“Estamos buscando oferecer formação para capacitá-los nesse sentido para ficarem atentos ao comportamento dos estudantes e agir a cada mínima suspeita. E é preciso envolver a Secretaria de Saúde nisso também porque necessitamos da ajuda de profissionais de lá, mas ainda não atuamos em rede nesse sentido”, comenta. O fundamental nas escolas é formar uma rede de acolhimento. “Quando os alunos sentem confiança na equipe gestora, o relacionamento é outro, e eles sabem quem procurar em caso de problemas”, diz. Nesse sentido, o projeto do CEF 10 de Ceilândia é um caso de sucesso. A comunicação mudou completamente na comunidade escolar, passando a contar com abertura muito grande entre professores, coordenação e alunos. “Às vezes, chega um estudante, você diz ‘pois não?’, e ele responde ‘eu só vim te dar um abraço’. A porteira até estranhou o fato de os meninos passarem a comprimentá-la ao chegar à escola. É muito gratificante”, comemora Angela Santos, idealizadora da proposta.
Os efeitos do projeto Gentileza
Professora de história que trabalha na sala de leitura do colégio, Angela Santos explica que a iniciativa tem como missão resgatar valores e incentivar uma convivência harmoniosa e gentil na unidade escolar. “Eu via os alunos com aquela falta de respeito e ficava pensando: o que posso fazer para ajudar a escola a melhorar isso? Aí surgiu a ideia, recebi apoio da direção e de todos os outros professores.” A ação foi abraçada por todo o colégio e incorporada pela Com-Vida (Comissão de Meio Ambiente e Qualidade de Vida na Escola), que engloba outros projetos da unidade, como a horta. A fonte de inspiração da proposta é o Profeta Gentileza (1917-1996). A frase mais famosa dele é “Gentileza gera gentileza”. As paredes do CEF 10 de Ceilândia estão marcadas por mensagens de esperança em murais produzidos pelos estudantes.
O projeto atinge os 740 alunos e os 70 funcionários (incluindo os 40 professores) da escola, e as atividades são desenvolvidas dentro de disciplinas e também no contraturno escolar, por meio de vídeos, debates, pesquisas, encenações e outras ações. O retorno é muito positivo. ” Se as pessoas ficam gentis, não tem mais bullying, então resolve muita coisa”, aponta Angela. Lorena Sant’ Ana, orientadora educacional, relata que nem escutava mais “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite” no colégio, algo que mudou completamente. “Faz parte do trabalho resgatar a educação e proliferar a gentileza na escola e em casa”, diz. A orientadora educacional Dulceli Amaral explica que o Gentileza permeia, agora, todas as atividades da escola.
Outra boa notícia é que os pupilos passaram a frequentar o local também fora do horário de aula. “A escola está viva, há o que se fazer aqui. Eles estão vindo e não é valendo nota”, observa Mercy Oliveira, professora de biologia. As atividades estimulam os jovens a terem orgulho do ambiente onde estudam e vivem, algo necessário, especialmente em Ceilândia, na visão das professoras. “Existe preconceito com relação à cidade. Para um adolescente que está em conflito ou em crise, é mais uma coisa para somar à lista”, destaca Lorena. “Por isso, temos ações no sentido de valorizar também o lugar onde vivemos”, acrescenta Angela. As atividades também se estendem aos responsáveis. “A grande maioria dos pais estão buscando o sucesso dos filhos no boletim, e não na vida. É difícil trazer os adultos para a escola, o único momento em que eles participam mais é na reunião de entrega de nota”, afirma Lorena.
Por isso, a orientadora educacional resolveu adotar estratégia diferente. “Trouxemos um conselheiro tutelar e uma pedagoga para a reunião a fim de falar da importância de olhar, escutar e conhecer os filhos, pois existe carência emocional.” Um relacionamento familiar saudável se torna ainda mais vital durante a adolescência. “A autoestima está arrastando no chão, há uma série de conflitos internos e externos. Por isso, é missão do Gentileza também mostrar o lado bom da vida”, esclarece. Ações continuadas, como o projeto desenvolvido no CEF 10, avalia Lorena, valem muito mais do que “dias D” de conscientização sobre suicídio. “Por que vamos parar para falar de morte se podemos falar de vida? Estamos falando de vida desde o início do ano, e a semente começou a dar frutos”, conta. E quanto mais cedo um trabalho como esse começar, melhor. “No ensino fundamental é que devemos despertar para isso. Se a valorização da vida não for trabalhada agora, os problemas aparecerão no ensino médio. Duas ex-alunas que foram para o ensino médio este ano cometeram suicídio”, lamenta. Acompanhe as atividades do projeto e do CEF 10 de Ceilândia no blog .
Confira aqui relatos de adolescentes que estudam no CEF 10 de Ceilândia.
(do Correio Braziliense)