Com reforma trabalhista, Brasil dá mau exemplo para o mundo

Há 10 meses como secretário-geral da Industriall, federação mundial dos trabalhadores na indústria, o brasileiro Valter Sanches reflete sobre os desafios impostos pelas mudanças no mundo do trabalho, o deslocamento de empresas, uma tendência de precarização em escala global e a necessidade de reorganização do movimento sindical internacional. O discurso empresarial é universal: é preciso reduzir custos de mão de obra para estimular os investimentos. “Uma falácia enorme”, critica.

Nesse sentido, diz Sanches, o Brasil dá um “mau exemplo” ao mundo com a aprovação de sua “reforma” da legislação trabalhista. Se um país desse porte, integrante do Brics, pode, por que não outros?

Ele também é realista quanto às dificuldades, mesmo quando se lembra que a IndustriALL representa mais de 600 entidades e 50 milhões de trabalhadores em 15 setores, espalhados por 141 países. Calcula que 3 bilhões dos 4 milhões que compõem a força de trabalho mundial estão na informalidade e/ou fora do alcance de qualquer proteção social.

Mas não considera que o jogo está perdido, já que além dos riscos existem as oportunidades. “Setores vão crescer, outros vão perder. O movimento sindical vai estar preparado para organizar esses trabalhadores?”, pergunta Sanches, funcionário da Mercedes-Benz de São Bernardo do Campo, que começou no movimento como diretor do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, chegando posteriormente à Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT.

De que forma o Brasil se insere nessa “onda de precarização”?

Tem duas coisas que acontecem no Brasil, que é o pano de fundo do golpe. Estive recentemente num fórum alternativo ao G20 e lembrava lá que o movimento anti-globalização no final dos anos 90 vinha crescendo, com grandes manifestações sobretudo nos Estados Unidos, e culminou em 2001 com o Fórum Social Mundial. Diferentes organizações da sociedade civil, sindicais, ONGs, todos se juntaram sob o lema “outro mundo é possível”. Depois veio o ataque às torres gêmeas, o mundo entrou numa rota à direita, supressão de liberdades, onda de preconceitos, xenofobia, mas a América Latina foi para o lado progressista. E experimentou mais de uma década de prosperidade, de crescimento com distribuição de renda – aliás, crescimento graças à distribuição de renda. E essa onda de restauração neoliberal veio em oposição a tudo que conquistamos em pouco mais de uma década.

Essa reação vem, e toma diferentes formas em diferentes países. No Brasil, foi um golpe. Para frear as conquistas que vínhamos tendo, com pouco menos de um ano, o governo golpista já fez a PEC dos gastos, a PEC da morte, a lei da terceirização, desaparelhou o Estado, fez a reforma trabalhista e se bobear vai fazer a previdenciária. Na verdade, é um retrocesso a todas as conquistas que nós tivemos. Alguns dizem que é o maior desde a Constituição, outros que é desde Vargas. Aí tem uma onda neoliberal no mundo dizendo para mexer na legislação, que é um empecilho para investimentos. Isso é uma falácia enorme. Na Argentina, Peru, Polônia, França, a mesma ladainha: “o custo do trabalho é muito alto”. O investimento não vem por conta do custo do trabalho. Claro que ajuda. Mas o investimento vem se tiver mercado. Se não tiver mercado, por mais que você baixe o valor, o único efeito é transferir a renda (para os ricos).

Como o movimento sindical se prepara para atuar em um mundo em que o trabalho parece ser cada vez menos “necessário”?

Esse é um tema em que estamos nos debruçando. Claro que é um desafio e que não dá para comparar com outras revoluções industriais. Mas não existem só riscos. Não sou dos fatalistas dizendo que vai acabar o trabalho. O desafio é se eu vou dar conta de continuar organizando os trabalhadores daqui pra frente. Não é só risco, tem oportunidades também, por exemplo, o aumento do e-commerce. Hoje muita gente compra por comércio eletrônico. Quanta gente perdeu emprego? Ou o comércio aumentou por causa disso? Só nos Estados Unidos a venda de vans da Sprinter aumentou 33% nos últimos anos, e muito em função de e-commerce, pequenas entregas, small delivery, como eles falam. Fecham-se postos de trabalho, criam-se outros. Existem setores que vão crescer, outros que vão perder.

O movimento sindical vai estar preparado para organizar esses trabalhadores? Estive no congresso da CNQ (Confederação Nacional do Ramo Químico da CUT) e disse que se a gente ficar nessa coisa de unicidade sindical, não vamos dar conta. Tem setor que vai perder, tem setor que vai ganhar. Se ficar nessa discussão, não vai ficar para ninguém. O cara trabalhando em home office não vai ser de nenhum sindicato. Acho que o trabalho vai continuar existindo, mas está passando por um enorme mudança e o movimento sindical tem de se preparar para isso.

Mudanças legais, inclusive…

Mudanças estruturais, legais, claro. Na atual conjuntura, lógico que não vamos fazer reforma sindical como a gente vinha discutindo nos primeiros anos do governo Lula. Uma coisa que podemos fazer voluntariamente é uma fusão de organizações em nível vertical. As confederações, federações podem se fundir, por que não? Na CNM (Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT) já teve uma decisão de fundir todo o setor industrial. É o caminho. Os sindicatos que estão sobrevivendo são esses. Temos vários filiados que são filiados à ISP (entidade mundial de trabalhadores em serviços públicos). Uma empresa de delivery faz pequenas entregas de e-commerce, em si não vende nada, mas é entregadora, entrega de pizza a computador. Eles começaram na Inglaterra, por causa do trânsito fazem entrega de bicicleta, patinete, motos. Eram basicamente imigrantes ilegais refugiados, o mais precário possível. Eles estavam sendo massacrados pela empresa e procuraram o sindicato mais forte, fizeram uma greve, se filiaram.

A própria IndustriALL é exemplo disso.

É uma fusão de três organizações anteriores (a entidade surgiu em 2012, com a união da Fitim – metalúrgicos, Icem – químicos/setor de energia e FITTVC – trabalhadores no setor têxtil e de vestuário). Quem sabe em algum tempo a gente avança para organizar outros setores. Trabalhamos com a ICM (construção e madeira), junto com a UNI no setor têxtil. A gente tem de pensar fora da casinha.

Como lidar com o deslocamento de empresas pelo mundo em busca de mão de obra mais barata?

Por que as empresas se deslocam de um país para outro? Primeiro, se ela vai ter acesso ao mercado ou a uma boa fonte de fornecimento, um custo favorável. O Trump se apoderou desse discurso, que bateu forte nos Estados Unidos, porque as empresas americanas foram as campeãs de fazer isso, pegar todas as brechas de acordos comerciais a seu favor. Outro dia estava no G20 e falei: a filha do Trump tem uma marca de roupas, de cosméticos, e as fábricas que fornecem para ela são todas do Sudeste Asiático. É fácil falar. Existe um deslocamento, mas quando existem brechas. Há uma política de Estado da China de exportar. Esse deslocamento existe, mas não é uma tendência inexorável; quando existe resistência, existe controle sobre isso. Na Europa existe um monte de regras. As empresas europeias não têm tanta liberdade. Dentro da Europa sim, mas mudar para fora da Europa para vender para a Europa não é tão simples.

Tem governos que aceitam.

Tem muitos governos que pensam que a única forma de ser competitivo no mundo é oferecendo mão de obra barata. Nos países onde o emprego está crescendo, que é o Sul e o Sudeste Asiático, eles falam isso: se aumentar muito o salário aí vou perder para a China, Camboja, Vietnã. Race to the bottom, é uma espiral para ir pro buraco. É uma combinação de esforços que a gente tem de fazer. Toda a nossa prioridade é organizar nessas regiões. Se a gente permitir a precarização no Sul, Sudeste Asiático, ela se espalha. Outra consequência da reforma trabalhista (no Brasil) é o mau exemplo que dá para o mundo.

A OIT fala em tendência de aumento do desemprego, da precarização. Como o movimento sindical internacional pode reagir a isso?

Gosto de ser bem realista para sabermos o tamanho das nossas tarefas. Temos 4 bilhões de pessoas no mundo economicamente ativas. Temos 3 bilhões no mundo que são ou desempregados, na maioria não cobertos por algum programa social, ou são informais. Na Índia, por exemplo, que é um país imenso, temos 90% da força de trabalho informal. Ou seja, é o trabalhador que não tem nenhum contrato individual, quanto mais um coletivo. Esse é o tamanho do desafio que nós temos. Para esses trabalhadores, nem a primeira Revolução Industrial chegou. Estamos perdendo de goleada. A primeira coisa para começar a reagir é reconhecer o problema.

Durante a tramitação do projeto de “reforma” trabalhista, o discurso recorrente era o da necessidade de “modernização” para voltar a criar empregos.

Tempos atrás, os metalúrgicos do ABC defenderam o ACE (acordo coletivo especial), e teve muita crítica do movimento sindical. Em alguns casos, você poderia ter mudanças em relação à CLT em que o acordo coletivo fosse superior, mas tinha uma série de salvaguardas, de pressupostos, que basicamente era para você evitar a chantagem que os empresários vão poder fazer agora, quando está em período de crise. Em princípio, poderia ter alguma coisa de modernização, mas a forma como foi feito, o conjunto da obra é precarizante mesmo. Jamais você poderia aceitar algo assim em uma conjuntura dessa.

É uma falácia, tanto no Brasil como em qualquer lugar do mundo, dizer que baixando o custo de trabalho vou atrair investimento. Macron (novo presidente da França) foi eleito com esse discurso, que o investimento vai voltar se baixar o custo de mão de obra. Isso é ridículo. O custo da mão de obra já era alto, e só no setor automobilístico teve R$ 20 bilhões de investimentos, porque teve o Inovar Auto, no setor de petróleo e gás. Com a mesma legislação nós ganhamos milhões de empregos na era Lula/Dilma. Agora, vai chegar perto da Índia, que tem 90% de informais.

 (da Rede Brasil Atual)