COLÉGIOS MILITARIZADOS FEREM PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Iniciamos o ano letivo com uma indigesta novidade: o governo Ibaneis (MDB) anunciou a medida de militarizar escolas públicas do Distrito Federal. A ação segue o modelo apontado pelo governo Beto Richa do PSDB do Paraná, Geraldo Alkmim do PSDB de São Paulo e a ampliação no governo goiano de Marconi Perillo, também do PSDB, e agora mantido por Ronaldo Caiado do DEM.
Uma das escolas que serviu de modelo para Ibaneis foi o Colégio Estadual Fernando Pessoa em Valparaíso de Goiás. Mas que concepção pedagógica vem sendo apresentada enquanto melhorias na educação para a população?

Na realidade, em nada. Não existe mudanças pedagógicas significativas que valorizem um ensino crítico e libertador, garantindo liberdade e autonomia dos estudantes, como sempre defenderam Paulo Freire, Florestan Fernandes e Demerval Saviani. Ao contrário, a medida, segundo justificativas oficiais do governo goiano, é para melhorar índices do IDEB e diminuir a criminalidade. A intenção do governo é seguir atuando como o de Goiás, ou seja, uma forma de manter o controle social. Segundo Foucault, medidas de controle com vigilância e punições servem para tornar as pessoas mais dóceis e passivas. (FOUCAULT 2014). Com isso, governos podem combater qualquer forma de oposição e movimentos sociais. Nas escolas militarizadas, as palavras monitoramento e punição se fazem muito presentes.

Os estudantes passam a usar fardas, bater continência, realizar exercícios físicos militares e hastear a bandeira. Passam a receber aulas de cidadania e a agir como se estivessem em um verdadeiro quartel, com aulas de português e matemática. Sempre que não se adequarem ou não cumprirem alguma regra são submetidos a punições. Mas a grande questão que devemos fazer é se o
processo de militarização está de acordo com a lei?

Em seu artigo, publicado no livro Estado de Exceção Escolar: Uma avaliação crítica das escolas públicas militarizadas (CAETANO E VIEGAS, 2016), o professor Tavares, tenta responder a essa questão se ancorando no arcabouço jurídico de nossa legislação.
O professor Tavares nos leva para outra questão: O que prevê a Constituição quanto as escolas públicas? O artigo 206 , em seu inciso VI nos remete a chamada “gestão democrática do ensino público”. Se na escola pública não houver uma gestão que seja gerida democraticamente, não haverá licitude. O Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que uma escola pública não é obrigada a fazer eleição para diretor, todavia, precisa ser gerida democraticamente. O próprio Supremo dá os caminhos para que essa escola seja gerida: “as políticas didático-pedagógicas, a relação com a comunidade, as normas internas, os padrões disciplinares, as escolhas em termos de conteúdos disciplinares, os padrões disciplinares, devem ser objeto de participação (tomada de decisões) de toda a comunidade. Estudantes, pais, docentes e comunidade”.

Nesse viés, a Polícia Militar precisa gerir as escolas segundo esses princípios constitucionais. A grande questão é, se na prática, o Conselho de pais e estudantes se reunir e se negarem a usar fardas? Se negarem a presença de chefes de turmas? E decidirem que o gestor escolar, militar ou não, terá de cumprir a decisão democrática da maioria? Sendo assim, qualquer militar que se comportar em descompasso com esta premissa estará a malferir a Constituição da República e, portanto, cometerá falta grave. Sendo assim, qualquer forma de gestão na escola pública que não respeita esses princípios torna-se ilícita.

Outro ponto levantado no artigo de Tavares é o princípio da gratuidade do ensino em todos os níveis, que é ferido na militarização das escolas. E isso vale para as chamadas “contribuições voluntárias” da Associação de Pais, Alunos, Mestres e Funcionários. A explicação é simples. Este é um Estado liberaldemocrático, e tem receita própria. A arrecadação do Estado será discutido pelo Parlamento e o Poder Executivo irá executar. Essa arrecadação vem de receita originária e derivada. Arrecadação que também vem de tributos.

O Estado não vive de contribuições voluntárias. Se isso ocorre em algum âmbito, está incorrendo em ilegalidade. Se uma família, ainda que em suposta espontaneiedade, repassa valores mensais, por menores que sejam, para a escola onde suas crianças estudam, então não se trata de ensino gratuito e viola a Constituição Federal. O militar que aceitar receber valores informais e particulares, sem que esse dinheiro integre a contabilidade pública, está a contribuir para o vilipêndio do princípio da gratuidade do ensino publico.

Outra situação que se observa nas escolas militarizadas é a ausência do Grêmio Estudantil. Em Goiás temos a lei 7398/85, conhecida como lei “Aldo Arantes”. A lei do “grêmio livre” prevê um grêmio livre e autônomo. Se os estudantes, por meio do grêmio, organizar um jornal para levantar fundos e iniciar uma campanha pela desmilitarização da polícia, estaria ferindo algum
preceito jurídico? Claro que não! Isso é uma prerrogativa que lhe assiste. E mais, é totalmente ilícito a manutenção de banco de dados ou controles por parte dos gestores escolares sobre estudantes ativistas membros do grêmio estudantil.

Podemos citar ainda a emenda constitucional de número 59 que modificou a Constituição da República. Ela dispôs que o ensino até os dezessete anos de idade, não mais até os quatorze como outrora, é obrigatório. Nas palavras de Tavares a lógica é simples: “um adolescente de 14 anos frequenta o ensino médio em determinada escola pública localizada em seu bairro. Digamos que a
escola, sub-repticiamente, seja convertida em instituição militar. Ocorre que, como não haverá outra opção viável de matrícula para esse adolescente em sua vizinhança e, como o ensino médio é obrigatório, está-se , por via oblíqua, submetendo-se crianças ou adolescentes à inserção em uma instituição militar.

Inobstante o nome que se atribua a uma pratica dessa natureza, sua substância jurídica é, indubitavelmente, a do Soldado Criança. Cabe, portanto, uma representação contra a República Federativa do Brasil no âmbito das Organizações das Nações Unidas”. Isso porque existe uma convenção da ONU e existe também o artigo 38 da Convenção dos Direitos da Criança que não
permite o chamado “soldado criança”. Em síntese, há descumprimento do artigo 206, inciso VI, gestão democrática do ensino; descumprimento do artigo 206 inciso IV, gratuidade do ensino público; descumprimento da lei 7398/85 do “grêmio livre”; e ainda o problema do “soldado criança”.

Fica evidente que em nada o processo de militarização das escolas representa avanço na educação públicas das crianças e jovens. O que se pretende é robotizar jovens e manter o controle social. A escola laica, universal, democrática e para todos precisa ser criada cotidianamente por toda a comunidade escolar, respeitando limitações e diferenças. Trabalhando noções de respeito e
coletividade, visando sempre uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária.

REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 42. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
OLIVEIRA, Ian Caetano; SILVA, Victor Hugo Viegas de Freitas (Orgs.). Estado de Exceção Escolar: uma avaliação crítica das escolas militarizadas. Aparecida de Goiânia: Escultura produções editoriais, 2016 _ (Piquete).

Erlando da Silva Rêses é Professor Associado da Faculdade de Educação (FE) da UnB. Doutor em Sociologia pela UnB e coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Materialismo Histórico-Dialético e Educação (CONSCIÊNCIA) e o Programa de Extensão da FE/UnB Pós-Populares – Democratização do Acesso à Universidade Pública pelo Chão da Pesquisa.
Weslei Garcia de Paulo é mestrando na Faculdade em Educação pela UnB. Sua dissertação é sobre a gestão das escolas militarizadas em Goiás. Atualmente ele atua na rede pública do ensino do Distrito Federal como professor no CEF 418 de Santa Maria.