A civilização e a barbárie: é preciso vencer os discursos de ódio e de xenofobia

Uma das grandes verdades que o primeiro turno das eleições 2022 mais uma vez escancarou é que uma parcela muito grande da população é realmente identificada com discursos de ódio, de supremacia branca, misoginia, de fomento à desigualdade e preconceitos os mais diversos. Essas pessoas se veem autorizadas pela ascensão de Bolsonaro e sua família ao poder a dar vazão aos seus sentimentos mais mesquinhos, sobretudo em nome da preservação de um patrimônio privado do qual nem sequer dispõem.

Nos últimos dias, um festival de discursos de ódio e xenofobia vindos desse setor da população invadiram as redes sociais e se tornaram pauta da imprensa nacional. Em um dos casos mais noticiados, a vice-presidenta da Comissão da Mulher da OAB de Uberlândia (MG), Flávia Morais, teve de se afastar do cargo, porque um vídeo em que ela bradava contra eleitores do Nordeste viralizou e gerou indignação geral. No vídeo, a mulher loira e bem vestida, ao lado de duas amigas em uma festa, segura uma taça de bebida e convoca seus pares a não mais “gastarem” seu dinheiro no turismo do Nordeste, e a “deixar de alimentar aqueles que vivem de migalhas”.

Da mesma forma, outra mulher branca, loira e bem vestida, esta de sotaque catarinense, aparece em um vídeo conclamando seus colegas empresários (aparentemente, pequenos empresários) a não empregarem pessoas que deixam o Nordeste em direção ao sul por passarem fome, pois elas votam em Lula. E vai além, caracterizando moradores de rua e vendedores de redes nas praias como nordestinos que fugiram da fome.

Márcia Gilda, coordenadora da Secretaria de Raça e Sexualidade do Sinpro, aponta que a lógica dessas pessoas, incentivada e amplificada pelo governo de Bolsonaro e sua família, é a da chantagem: “É a mesma postura cruel e supremacista do homem que ficou conhecido ao longo da campanha no primeiro turno por negar marmita a uma senhora em situação de pobreza na cidade de Itapeva, interior de São Paulo, quando ela declarou que votaria em Lula”, lembra ela. “É de pessoas assim que estamos falando: que fazem barganhas e chantagens e promovem humilhações a partir do próprio dinheiro e posição, tal qual seus representantes no governo federal”, conclui Márcia.

A situação não é nova. Quatro anos atrás, quando as urnas mostraram a expressiva votação de Fernando Haddad nos estados do Nordeste, o mesmo turbilhão de ataques aconteceu, vindo exatamente dos mesmos lugares. Em 2014, tais ataques já se esboçavam. É desse preconceito e dessas chantagens que vive o bolsonarismo, numa ânsia desesperada de frear avanços e até a evolução natural do ser humano – pois, para um personagem como Bolsonaro vingar, precisa do máximo de ódio, de ignorância e de medo possíveis.

Para aqueles e aquelas que apoiam esse projeto, o Brasil deve continuar pertencendo às poucas famílias às quais tem pertencido há mais de 500 anos (não é à toa que se apropriam de símbolos nacionais como a bandeira e o hino). Qualquer mínimo abalo nessa estrutura lhes causa terror e pânico, afinal, o país deve ser só deles, para que façam o que bem entenderem sem dever nem explicar nada a ninguém – apropriando-se das riquezas e dos recursos naturais e humanos do país, como sempre fizeram. É por isso, também, que desprezam e combatem a educação pública: a democratização do conhecimento gera consciência e prejudica seu projeto de poder.

O curioso é que autoras e autores de vídeos como esses não estão entre os donos do país, mas sim, são manipulados por estes para agirem exatamente como agem, e assim, servirem de cães de guarda de um patrimônio que não possuem.

Se não, vejamos quem vive de migalhas.

Os eleitores do Nordeste viram seu estado e sua região serem priorizados pela primeira vez, perceberam sua vida melhorar na economia e nas áreas sociais, e sabem que isso se deve a políticas públicas. Votam por essas políticas.

Enquanto isso, integrantes da classe média sulista e sudestina que vivem das migalhas oferecidas por governos liberais e poderosos de direita são convencidos por eles de que não precisam de Estado. Ganham uma isençãozinha de imposto aqui, um carguinho ou uma relação política ali, e assim são mantidos sob controle. E são mantidos assim: pagando caro por planos de saúde, por escolas e universidades particulares para seus filhos, por crédito para ampliar seu negócio ou para comprar uma casa, um carro, e eventualmente fazer uma boa viagem parcelada em 10 vezes. São pessoas habituadas à sonegação de impostos e ao suborno de guardas de trânsito, que não se comovem com o orçamento secreto, as rachadinhas, o escândalo do MEC ou a propina da vacina.

Segundo Márcia Gilda, derrotar os discursos de ódio e a xenofobia será o primeiro passo para restabelecer uma escala civilizatória mínima na nossa sociedade: “Precisamos reconstruir um pacto nacional de unidade, segundo o qual as diferenças são espeitadas e as desigualdades são combatidas”, opina ela. “Infelizmente, mais do que uma disputa de projetos políticos, de políticas públicas versus privatização, de manutenção de direitos trabalhistas e previdenciários, de soberania nacional e de justiça social; o que está em jogo é a civilização contra a barbárie. Para o Brasil ser livre, essa barbárie precisa ter fim”, conclui.

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