Chile contra o Estado mínimo: um exemplo para o nosso país

No Chile, se você não tiver dinheiro, você não estuda, não tem atendimento médico-hospitalar e nem aposentadoria. Com os sistemas de saúde, educação, previdência privatizados, o país vive o caos social em todos os setores. O problema é tão grande que a população decidiu acabar com a política do Estado mínimo.

No domingo (25), 78,27% do povo chileno participou do plebiscito e optou pelo basta no Estado mínimo, a política econômica da Escola de Chicago, que transformou o país numa das nações mais excludentes e socialmente injustas do mundo. A mudança da Constituição e a realização de uma Assembleia Nacional Constituinte foi rejeitada 21,73% dos votos contrários.

Com o resultado do plebiscito, o povo irá eleger uma Assembleia Constituinte para elaborar uma nova Carta Magna que assegure um país mais justo e mais digno. Uma nova trajetória começa na história do Chile e seu povo precisa estar atento ao eleger a quem irá eleger para as 155 vagas constituintes que irão redigir a nova Carta Fundamental.

No país andino, a Assembleia Constituinte foi denominada Convenção Nacional e terá de 9 meses a 1 ano para apresentar o novo modelo de economia e política. O texto deverá estar pronto em junho de 2022. Apesar a realização do plebiscito, o processo de democratização está repleto de pontos de tensão.

Afinal, não é fácil tirar do poder oligarquias nacionais e estrangeiras, que se deleitam do Orçamento público, financiado por uma população empobrecida e condenada a pagar impostos sempre mais caros. Não é de estranhar, portanto, que, entre os itens de tensão, estejam em destaque os direitos sociais e trabalhistas.

Espelho para o Brasil

O Sinpro-DF não podia deixar passar em branco a data tão importante e explicar o que está em jogo. Nem poderia deixar de revisitar a história recente do Chile e do Brasil e alertar para o exemplo do povo chileno, que enfrenta todo tipo de dificuldade para se livrar da economia neoliberal, do Estado mínimo e do autoritarismo político, herdados da ditadura civil-militar do general do Exército Augusto Pinochet.
 
O que acontece no Chile hoje serve de espelho para o Brasil atual. É importante ressaltar que o plebiscito constitucional permitiu aos(às) cidadãos(ãs) rechaçarem a Constituição outorgada pela ditadura civil-militar, instalada após um golpe de Estado, aplicado em 1973, com apoio da CIA/EUA, que depôs e assassinou o ex-presidente socialista Salvador Allende e implantou o neoliberalismo e o Estado mínimo, como política econômica, e o autoritarismo, como orientação política.
 

Uma Carta para os ricos

O plebiscito de domingo derrubou uma Constituição elaborada pela ditadura civil-militar chilena, uma das mais cruéis do mundo. Ela suprimiu partidos políticos e perseguiu, sistematicamente, oposicionistas. Deixou um rastro de três mil mortos e desaparecidos, torturou milhares de pessoas e forçou 200 mil chilenos ao exílio.

Era essa Constituição que sustentava, até hoje, a política econômica adotada pelo governo ditatorial de Pinochet. Trata-se da décima constituição da história do Chile, a terceira mais duradoura. Graças a ela, a classe rica e conservadora permaneceu mais de 40 anos no poder, transformando o Chile e sua população em “laboratório neoliberal dos Chicago Boys” – um grupo de economistas formado na Universidade de Chicago (Escola de Chicago), do qual o ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, faz parte. Esse grupo liderou a economia nos anos Pinochet e fez do Chile laboratório e símbolo do neoliberalismo e do Estado mínimo.

Esse neoliberalismo foi o principal alvo de indignação social. Essa Constituição foi elaborada por Jaime Guzmán, um advogado chileno, membro e fundador doutrinário do partido conservador União Democrata Independente (UDI) e redator de um dos textos fundadores do regime militar autoritário. Ele criou um documento para garantir poder às classes mais conservadoras da sociedade.

Elaborou uma Constituição de tal forma que, mesmo que saíssem da liderança, essas classes sociais teriam seus privilégios garantidos por lei. Guzmán formulou também as políticas da ditadura e foi convocado pelo próprio Pinochet para participar da Comisión Ortúzar, encarregada de redigir uma “nova” Constituição, aprovada num polêmico plebiscito em 11/9/1980.

No fim do regime ditatorial, em 1990, houve uma transição no país que não incluiu, como no Brasil, uma nova constituinte para elaboração de nova Carta Magna, e sim uma série de reformas constitucionais. Na primeira metade da década de 2000, no governo do ex-presidente Ricardo Lagos (2000-2006), foram executadas várias reformas. Mas nenhuma delas alterou os alicerces do modelo excludente de sociedade construído pela Escola de Chicago.

Chicago Boys

Assim como no Brasil de 2016, um golpe de Estado, aplicado em 1973, apoiado pela CIA/EUA, implantou o neoliberalismo no Chile. Depôs e assassinou o presidente socialista Salvador Allende e deu início à ditadura civil-militar comandada pelo general do Exército, Augusto Pinochet. Foi esse golpe que marcou um ponto de inflexão da economia chilena.

No lugar do Estado de bem-estar social e regulador, foi instalado o projeto macroeconômico desestatizante, privatista e mercantilista, administrado por economistas da Escola de Chicago, os chamados “Chicago Boys”. O governo neoliberal de Pinochet permitiu a convivência entre liberdades econômicas e repressão violenta a direitos civis.

Entre 1973 e 1990, o Chile se transformou em objeto de todo tipo de privatizações, abertura ao mercado externo, reforma trabalhista e redução do gasto público e do papel do Estado em áreas-chave, como saúde, previdência e educação. O resultado, 40 anos depois, é uma população depauperada, que perdeu todos os direitos sociais e trabalhistas. Da aposentadoria à educação e saúde públicas, tudo foi privatizado.

No Brasil, os Chicago Boys reiniciaram, em 2016, uma nova trajetória de vassalagem e escravidão que tentaram implantar nos anos 1990 e não conseguiram. Mas, com o golpe de Estado de 2016, reinstalaram pelas mãos de Michel Temer (MDB) e apoiado pelos EUA, o neoliberalismo econômico. O segundo passo foi a implantação da Emenda Constitucional nº 95/2016, que congelou por 20 anos os investimentos do Estado nos serviços essenciais. A EC 95/2016 é uma das muitas facetas desse projeto econômico que visa a levar vantagens, por muitos longos anos, às classes mais ricas do país.

Revoltas populares

Em 2019, quando o Brasil aprofundou sua jornada neoliberal com o governo Jair Bolsonaro, o Chile se tornou um caldeirão de revoltas populares por causa do empobrecimento e da falta de direitos. Em outubro, manifestações diárias tomaram todo o país. As manifestações, algumas delas com a participação de mais de dois milhões de pessoas, foram reprimidas pelas polícias.

O governo conservador do presidente Sebastián Piñera colocou o Exército nas ruas e instituiu o toque de recolher. Durante outubro de 2019, Piñera se escondeu no Palácio de La Moneda.  Os presidentes de todos os partidos políticos correram para firmarem, emergencialmente, no Congresso, um “Acordo de Paz”.

O principal item para que a paz fosse instalada era a realização do plebiscito constitucional para mudar a política econômica. Há outros pontos considerados polêmicos, como a exigência de direitos sociais assegurados pelo Estado: saúde, educação, previdência, segurança, assistência social entre outros.

Importante ressaltar que, no ano passado, quando partidos costuraram o acordo para definir a realização do plebiscito, o Partido Comunista do Chile (PCCh), que não participou desse acordo, denunciou o fato de que os partidos que participaram definiram que as normas que comporão o novo texto precisam ser aprovadas por 2/3 dos membros da constituinte. Ou seja, se a direita compuser mais de 1/3 da assembleia, poderá vetar várias partes da redação.

Laboratório neoliberal 

As revoltas de outubro de 2019 têm suas origens na década de 1990. Na época da abertura política, o povo chileno ficou tão revoltado com as políticas de Jaime Guzmán, que grupos extremistas o assassinaram, no início dos anos 1990, quando o país iniciou sua redemocratização.

Quando isso aconteceu, Guzmán já havia consolidado o “laboratório neoliberal” sob o comando dos Chicago Boys e assegurado uma Constituição elitista. Ele elaborou uma Carta que dificultava quaisquer alterações de tal forma que, caso a ditadura chegasse ao fim, os governos seguintes precisariam de um quórum elevado para modificar alguma legislação.

“Importante observar que, agora, segundo a denúncia do PCCh, os conservadores tentam repetir o mesmo golpe na formulação da Assembleia Constituinte para manter os privilégios e neutralizar uma real modificação”, alerta da diretoria colegiada do Sinpro-DF.

Paulo Guedes, ministro da Economia de Jair Bolsonaro, adota, no Brasil, o modelo econômico que os tecnocratas da Universidade de Chicago impuseram ao Chile. Esse modelo é considerado pela direita e ultradireita latino-americana como um exemplo a ser seguido para manter privilégios e o Orçamento do Estado sob seu controle.

“É preciso observar que o povo chileno derrubou, exatamente, o que o governo de Jair Bolsonaro implanta no Brasil”, observa Rosilene Corrêa, diretora do Sinpro-DF. Nos anos 1980, Paulo Guedes viveu no Chile a convite de Jorge Selume Zaror, ex-diretor de Orçamento do regime Pinochet. Atuou como pesquisador e acadêmico da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile, então comandada por Selume Zaror.

Atualmente, a equipe de Guedes se apresenta como um grupo de técnicos ortodoxos que prometem colocar “ordem” no que eles chamam de “caos econômico” reinante no país. “O que eles chamam de caos é justamente os direitos fundamentais, sociais e trabalhistas da nossa Constituição. Esse é o ponto central no atual movimento de mudança constitucional chileno que precisa ser visto como alerta pelos brasileiros”, alerta diretoria colegiada do Sinpro-DF.

Ela adverte ainda para o fato de que o plebiscito de domingo foi realizado para eliminar as amarras neoliberais e reverter a lógica do Estado mínimo estabelecida há 40 anos no Chile e que, no Brasil, está em franco desenvolvimento desde o golpe de 2016.

A diretoria do sindicato também alerta para o fato de que o fim do neoliberalismo é uma das principais reivindicações do povo chileno. “Precisamos estar atentos e atentas para defendermos nossos direitos sociais e trabalhistas que ainda existem”, finaliza.