BRASÍLIA 60 ANOS | Pioneiros do sindicalismo

Trabalhadores na construção de Brasília | Foto: Mario Fontenelle / Acervo Público do DF

 

Movimento sindical no DF nasceu com massacre de operários em 1959, sobreviveu ao golpe militar e hoje é um grande mobilizador das lutas sociais

Aquele carnaval de 1959 foi a gota d’água que fez transbordar a paciência dos mais de 1.200 operários de um dos acampamentos de obras da futura capital. Cansados de serem maltratados e receber diariamente a pior alimentação de todos os canteiros de Brasília, um pequeno grupo de trabalhadores atirou fora a comida – que estava estragada – e em seguida começou a bater os pratos de alumínio nas mesas. Foi o bastante para um dos homens da construtora Pacheco Fernandes avisar aos policiais da temida Guarda Especial de Brasília (GEB) que os operários estavam revoltados e haviam iniciado um conflito.

Como a história é sempre escrita pelos vencedores, há inúmeras versões para o episódio que ficou conhecido como “o Massacre da Pacheco Fernandes”. Oficialmente houve apenas um morto. Vários outros relatos apontam dezenas ou até centenas de trabalhadores assassinados a tiros covardemente, enquanto dormiam num galpão de madeira montado na atual Vila Planalto. Fotos que o jornalista Dídimo Paiva, do extinto Binômio, de Belo Horizonte, conserva em seus arquivos, mostram três linhas de furos de balas em uma das laterais do dormitório, que só poderiam ter sido projetadas por metralhadoras.

“Esse conflito se deu porque a construtora não quis deixar os operários sairem da obra para brincar o carnaval em Formosa, Luziânia e em outras cidades próximas. Além disso eles já vinham reclamando da comida, que era muito ruim, mas a administração não fazia nada. Então ocorreu o atrito que terminou em morte”, afirma o advogado José Oscar Pelúcio, 80 anos, que ajudou a estruturar diversos movimentos sindicais na capital e que ainda está em plena atividade.

Refeitório da construtora Pacheco Fernandes | Foto: Museu da democracia

 

A história nega fatos, mas não pode simplesmente rasurar os testemunhos de quem sobreviveu à carnificina. Um dos mais ricos materiais de pesquisa sobre o acontecimento é o filme Conterrâneos Velhos de Guerra, do cineasta Vladimir Carvalho. Nele aparecem diversas pessoas contando como escaparam ao cerco ao acampamento. Aparecem viúvas, filhos de operários e outros parentes. Niemeyer se irritou com a insistência de Vladimir em ouvir sua opinião: “Corta isso, corta!”, exigiu ríspido. Mas o diálogo está registrado na obra. Lucio Costa chegou a dizer que tudo não passava de “exagero”.

Suor e sangue

Exagero, realidade, tragédia, massacre ou mito, a verdade é que, ironicamente, foi preciso derramar o sangue de trabalhadores inocentes e desarmados para nascer o primeiro sindicato de trabalhadores do Distrito Federal, o da construção civil, que em março de 2010 completou 51 anos. Eles desejavam apenas o direito de uma boa alimentação e de se divertir no carnaval, “mas a firma [a Pacheco Fernandes construiu o Palácio do Planalto, entre outros prédios] não queria saber disso, o carnaval ia atrasar a obra, com os trabalhadores de ressaca, e isso ia afetar em seu faturamento”, resume o advogado Geraldo Campos, 84 anos, que chegou a Brasília em 1958 para trabalhar na Novacap e esteve no acampamento da Vila Planalto no dia seguinte ao conflito.

Campos viu os estragos no barracão, mas não os corpos dos mortos. Havia sinais de luta e confusão, marcas de bala e manchas de sangue. “Os trabalhadores contaram que muitos deles apanharam, outros foram feridos, levaram tiros e muitos foram mortos. Depois os corpos foram levados em caminhões-caçambas e atirados em vários pontos distantes do acampamento. Não sei dizer quantos foram. Mas a verdade é que foi preciso ocorrer essa tragédia para nascer o primeiro sindicato do DF”, lamenta o pioneiro, que ajudou a enviar para o Rio de Janeiro e outras capitais os telegramas denunciando a tragédia.

Se atualmente morrem no Brasil diariamente mais de 800 trabalhadores do setor industrial por acidentes de trabalho, segundo dados oficiais, dá para imaginar como era a situação quando se instalava, no cerrado coberto de poeira e de segredos, a chamada “capital da esperança”. “As pessoas que vinham para cá eram pessoas simples, que trabalhavam na roça e não tinham contato com técnicas de construção. Além disso estavam desprotegidas, não havia quem as defendesse”, avalia Vladimir Carvalho.

Sempre forte, sempre ativo

Hoje, 51 anos após a tragédia que representa um dos lados mais obscuros da história de Brasília, apenas um marco assinala o local: o cristo operário esculpido pelo artista plástico Gougon, com um par de luvas de couro e um crucifixo abraçado por uma corrente. Está em um modesto pedestal na Vila Planalto, mas pouca gente da própria cidade capta o significado da obra. A corrente representa a verdade aprisionada pela história dos poderosos, segundo Gougon. As luvas de couro simbolizam o homem que fez a cidade e que depois se fez e conquistou o seu lugar, pouco a pouco, com a formação de uma consciência social que gerou cidadania e esperança, ao longo de cinco décadas de luta por seus direitos.

Guardas da GEB temidos pela violência | Foto: Arquivo público do DF

 

Sobre a construção dessa nova mentalidade, Geraldo Campos acredita que, ao se reunir em um sindicato, os operários, que antes só pensavam em receber o salário para enviar às famílias, saíram do estágio do per si para o coletivo. Começaram a perceber que havia uma realidade maior em torno e que poderiam se organizar mais.

“Quando aconteceu o massacre, o Heitor Silva falou sobre o risco de passar amanhã o que os operários da Pacheco Fernandes passaram hoje. Ele foi de obra em obra para conscientizar os trabalhadores e isso foi muito importante para o movimento que surgia”, atesta Campos. Heitor Silva foi um dos pioneiros na formação dos primeiros sindicatos da capital, ao lado de Geraldo Campos, José Oscar, Benedito Chavita, Humberto Schetino e Adelino Cassis, entre outros companheiros do extinto Partido Comunista Brasileiro.

Mais de 50 anos após o ocorrido, o nome de um desconhecido mestre de obras ainda está presente na memória de Campos: Assunção. “Os telegramas não poderiam sair daqui porque Israel Pinheiro não ia deixar. Então o Assunção se ofereceu para ir a Goiânia ou a Anápolis e de lá passar os telegramas denunciando o massacre”, lembra o pioneiro. Segundo ele, o presidente Juscelino Kubitschek ficou revoltado quando soube do episódio e consentiu em autorizar a criação do sindicato.

“Setores do governo maquinavam um plano para fazer de Brasília uma cidade onde não houvesse pressão de massa sobre os governantes. Chegaram até a tentar baixar leis proibindo a formação de sindicatos, mas isso não aconteceu e o movimento floresceu na capital. A verdade é que o movimento sindical em Brasília, mesmo antes de sua fundação, sempre foi muito forte, muito ativo”, diz José Oscar Pelúcio, que ajudou a estruturar diversas entidades entre 1961 e 1964.

Sobre o episódio da construtora Pacheco Fernandes, o paulista José Oscar, advogado trabalhista há 48 anos em Brasília, também militante do antigo PCB, explica que o tratamento dado pela empresa aos trabalhadores era o pior possível e eles não tinham com quem contar ou a quem recorrer. “Não havia sindicato, não havia Justiça do Trabalho. Havia apenas um juiz em Planaltina, da Justiça comum, e mesmo assim ele não contava com funcionários que conhecessem bem a legislação do trabalho”, conta Pelúcio.

Imagem da exposição “Trabalho e presença negra na construção de Brasília” | Foto: Arquivo Público do Distrito Federal

 

Para ele, o avanço da consciência de classe dos trabalhadores em Brasília foi fruto da experiência de vida dos operários e também do trabalho de setores mais intelectuais. No começo, lembra o advogado, as primeiras assembleias não animavam muito os operários; mas depois elas foram crescendo e uma nova consciência política e social começou a surgir. Dentro desse clima, outras entidades apareceram e os operários não se sentiram mais tão sozinhos. Entre as entidades que Oscar destaca, ao lado do Sindicato da Construção e do Mobiliário do DF, a Associação dos Servidores da Novacap e o Sindicato dos Bancários.

Pelúcio dá destaque especial ao Sindicato dos Bancários na influência sobre a criação de outras entidades, porque era uma categoria mais experiente em lutas sindicais e negociações, com uma atividade já solidificada em grandes centros urbanos como São Paulo, Rio e Belo Horizonte. “Um dos grandes líderes desse movimento foi Adelino Cassis, que dirigiu o sindicato em diversas ocasiões. Entre as grandes conquistas dessa época (entre 60 e 64) estão a equiparação do salário mínimo com o Rio e São Paulo, o 13º salário e o status de servidor público para os funcionários da Novacap”, ressalta Oscar. Para chegar a essas vitórias houve muita passeata e comícios na frente do Ministério do Trabalho, do Palácio do Planalto e de outros órgãos. As manifestações chegavam a reunir, já naquele tempo, uma massa de 30 mil a 40 mil trabalhadores.

Um papel definidor no DF

Para Sadi Dal Rosso, professor de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), a organização sindical no DF começou enfrentando problemas dos mais graves, a partir da distância de tudo na época, “uma cidade surgindo do nada”. Ele faz coro com Campos e Pelúcio na constatação de que, além da construção civil, os movimentos mais fortes foram os dos bancários e dos servidores da Novacap.

O regime militar extinguiu o movimento sindical em Brasília, como em todo o Brasil. “Todos sofreram intervenção. Só houve uma recuperação dos sindicatos lá pelos anos de 1975, 1976, quando começou a luta pela abertura política. É bom lembrar que os estudantes exerceram um papel muito importante. Houve a invasão da UnB em duas ocasiões, em 68 e em 77, mas eles não recuaram, tanto alunos como professores. Um fato marcante na década de 1970 foi a criação da Associação dos Docentes da UnB (Adunb), em 1977. Nessa época, até 1979, ocorreu a recuperação do sindicato dos professores do DF, que estava sob intervenção”, lembra Dal Rosso.

A história das lutas políticas e sociais em Brasília, desde a fundação da cidade até o golpe militar, mostra que as entidades permaneceram atuantes. Mesmo com o regime de exceção houve um florescimento das organizações sindicais, que permaneceram atuantes nas décadas de 70 e de 80, lembra o professor. Em sua análise, desde os anos 60 (da construção civil, dos bancários e dos professores) até essa fase, com o nascimento de outros sindicatos importantes (como o dos vigilantes, comerciários, médicos, rodoviários, entre outros), o período foi de retomada da ação dos sindicatos e de surgimento de novas entidades. A partir daí houve uma mudança de perfil sindical, com a hegemonia do ABC Paulista e a força demonstrada pela sociedade em outras lutas, como o movimento pelas Diretas Já.

Memorial do massacre erguido na Vila Planalto | Foto:Museu da Democracia

Segundo Dal Rosso, houve uma repercussão muito forte em todo o país das negociações dos metalúrgicos das fábricas de acessórios e de automóveis. Isso se irradiou para outras regiões e os sindicatos ganharam força ainda maior com a criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT): “Após a Nova República, a força social era muito grande. No caso dos professores universitários, foi quando organizamos o nosso plano de cargos e salários. A força do sindicalismo não ficou só no ABC, ela se propagou pelo Brasil.”

Em Brasília, segundo o professor, o processo foi o mesmo: “Os sindicatos mobilizaram as pessoas em lutas como a da autonomia política, por exemplo. Eles exerceram um papel definidor no DF. Tanto que muitos dos nossos políticos vieram das bases sindicais”, recorda.

Copiado do site da CUT Brasília
Fonte: Carlos Tavares | Revista do Sindjus, abril de 2010 – Ano XVIII – nº 65