A reforma administrativa em debate no Congresso Nacional — E eu com isso?
Por Jean Carmo Barbosa (*)
“Injustiça se combate é na escola, é na saúde, é na rua…” (Renato Russo)
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da reforma administrativa, resgatada do governo Bolsonaro, expõe o profundo desalinhamento de parte significativa do Congresso Nacional com as reais necessidades da população. Enquanto o povo brasileiro luta, diariamente, pelo acesso a serviços públicos de saúde, educação e segurança de qualidade, muitos parlamentares priorizam interesses corporativos, blindam privilégios e desviam o foco de pautas urgentes, como a taxação de grandes fortunas (bets, bancos e bilionários) e a reforma da segurança pública, enquanto avançam temas alheios à vida do trabalhador.
Essa proposta de reforma, que parte de uma visão liberal de Estado mínimo, que está em curso, desconsidera o papel da proteção social na redução da desigualdade da renda e busca aniquilar o Estado Social de 1988.
É, pau é pedra, é o fim do caminho… (Chico Buarque)
O Brasil tem uma das menores proporções de servidores públicos frente à população empregada no mundo, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea): apenas 12,45%, contra mais de 23% na média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Os servidores, principalmente em estados e municípios, são a linha de frente das políticas públicas que fazem a vida do brasileiro acontecer diariamente — nas escolas, hospitais, postos de saúde, assistência social e segurança.
A reforma administrativa, juntamente com cortes de investimentos e avanços privatistas, precariza as relações de trabalho. A transferência de serviços públicos para a iniciativa privada, a terceirização e a flexibilização geram vínculos temporários e empregos cada vez mais precários. A lógica do lucro máximo reduz a qualidade dos serviços e a proteção social, aumentando as desigualdades e ameaçando a universalidade dos direitos.
Relatórios do Ipea indicam que os cortes afetarão, diretamente, professores, agentes de saúde, policiais e assistentes sociais — servidores sempre visíveis e essenciais no cotidiano. Sua ausência implica em fechamento de turmas, no rebaixamento da qualidade do ensino, no aumento das filas e atrasos no atendimento médico, bem como na redução do apoio às famílias mais vulneráveis.
Para a categoria docente, contratos temporários se tornam regra, enquanto a estabilidade — fundamental para autonomia pedagógica e respeito à diversidade — está ameaçada. Metas produtivistas descontextualizadas pressionam pelo rebaixamento da qualidade do ensino e fragilizam as carreiras.
Eu quero é botar meu bloco na rua… (Sergio Sampaio)
A Central Única dos Trabalhadores (CUT) alerta para o risco do desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS), sistema que atende a sete em cada dez brasileiros, hoje ameaçado por planos privados; e para a demora crescente na concessão de benefícios no Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) pela redução do quadro de servidores.
Na segurança pública e assistência social, o corte de efetivo e recursos alimenta a violência, reduz o policiamento preventivo e limita o atendimento. A burocratização e a digitalização distanciam o servidor das pessoas, tornando o serviço frio e ineficaz, gerando insegurança e prejudicando os que dependem desses serviços.
A Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) explica: “A reforma é um ataque frontal aos serviços públicos e aos direitos dos servidores. A luta contra a reforma é também pela defesa da escola pública, do serviço público e do direito universal à educação de qualidade. A mobilização sindical e social é essencial para frear retrocessos e fortalecer a democracia”.
A Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público, na Câmara dos Deputados, tem papel decisivo ao articular parlamentares comprometidos com a justiça social e ao promover debates, audiências e mobilizações para barrar o desmonte dos serviços e a eliminação de direitos.
Centrais sindicais (CUT, CTB, Força Sindical) e sindicatos de servidores organizam mobilizações, paralisações e campanhas amplificadas pela conscientização social e diálogo tático na resistência.
A PEC da Blindagem (PEC 03/2021) embora derrotada no Senado, escancara a contradição da reforma: mantém privilégios políticos do alto escalão e exige do funcionalismo básico a renúncia da estabilidade — instrumento-chave contra o clientelismo.
Modernizar o Estado não é desmontá-lo, mas valorizar seus servidores, pilares do desenvolvimento democrático. Exige carreiras sustentáveis, capacitação, condições dignas e sistemas transparentes, sob um Parlamento atento aos interesses do povo, não a pressões corporativas.
Pare o mundo que eu quero descer… (Silvio Brito)
A simultaneidade da tramitação da PEC da reforma administrativa e do novo Plano Nacional de Educação (PNE) na Câmara dos Deputados expõe a fragmentação, no Parlamento, ao tratar, separadamente, temas intimamente ligados. Enquanto a reforma redesenha o Estado, redefinindo sua estrutura e financiamento, o PNE estabelece metas para uma década que dependem dessas bases para se realizarem.
Ao restringir investimentos e flexibilizar carreiras, a reforma compromete as condições institucionais e financeiras que sustentam o PNE. Metas essenciais, como a universalização da Educação de Jovens e Adultos (EJA), a ampliação da educação integral e a valorização dos educadores, tornam-se inviáveis diante do arrocho e da precarização do serviço público.
Falta ao Legislativo uma visão integrada e comprometida com o planejamento de longo prazo, um entendimento da interdependência entre política fiscal, estrutura estatal e direitos sociais. O resultado é uma discussão desconexa entre pautas que deveriam dialogar para garantir o futuro da educação pública no Brasil.
“Pra não dizer que não falei de flores” (Geraldo Vandré)
Este é o momento de unir forças, pois a reforma representa um ataque à democracia, ao emprego público e à qualidade dos serviços. A resistência coletiva tem freado e enfrentado essa proposta, mostrando que democracia verdadeira se constrói com participação e pressão popular.
Por isso, na antessala de uma mobilização nacional contra a reforma administrativa, é fundamental massificar, por todos os meios possíveis, as arbitrariedades que ela impõe. O único caminho é arquivar a proposta e iniciar um debate amplo e democrático que valorize servidores, respeite cidadãos e construa um Brasil justo e forte.
O Sindicato dos Professores do Distrito Federal (Sinpro-DF) acompanha firme essa luta, entendendo que a precariedade que essa reforma traz para a educação e para o serviço público será derrotada pela força dessa categoria, assim como já ocorreu em momentos decisivos, como no enfrentamento à PEC da Previdência.
Porque está em jogo muito mais do que salários e estabilidade: o que está na mira da extinção é o direito de todos a um Estado presente, justo e democrático.
(*) Jean Carmo Barbosa, professor da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF), diretor de Políticas Socias do Sinpro-DF, ex-assessor parlamentar da Câmara dos Deputados, atuante na Comissão de Administração e Serviços Públicos.