Artigo: o PNE em disputa, por Nina Madsen

Está em disputa, no Congresso Nacional, o Plano Nacional de Educação. De um lado da contenda, estamos nós, movimentos sociais do campo dos direitos humanos, lutando pela manutenção do texto enviado ao Congresso em 2010, um texto que avança em relação ao PNE anterior e que tenta responder a demandas históricas desses movimentos. Do outro lado, os grupos fundamentalistas conservadores que, há algum tempo, declararam guerra aos direitos das mulheres e da população LGBTT no país. As bancadas evangélica e ruralista, com as lideranças católicas conservadoras do parlamento, estão unidas para tentar conter o que têm chamado de “avanço da ideologia de gênero”.
O texto do PNE não é exatamente revolucionário. Muito menos propagador de uma suposta “ideologia de gênero” — seja lá o que isso venha a significar. O texto simplesmente define como uma das diretrizes “a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” (item III, artigo 20). O que os conservadores propõem em substituição é uma redação genérica (com o perdão do trocadilho), que determina a ênfase da superação das desigualdades educacionais “na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”.
O investimento dos grupos religiosos brasileiros no campo da educação não é novidade. Para lembrar dois exemplos recentes: o Acordo Brasil—Vaticano, firmado em 2009 pelo então presidente Lula, que, atentando contra os princípios de nosso Estado laico, recuperou a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas; e, em 2010, o arbitrário cancelamento da distribuição do material didático elaborado no âmbito do Projeto Escola Sem Homofobia.
Há algum tempo que nossa caminhada rumo a qualquer tipo de avanço no que diz respeito à garantia dos direitos humanos e do Estado laico no país tem sido dificultada. Com o PNE, o caso não é diferente.
O que perdemos, caso ganhem os grupos religiosos conservadores? Perdemos a possibilidade de avançar em direção a uma educação fundada em princípios de igualdade, de direitos humanos e de cidadania para todos, que garanta a diversidade sexual e a liberdade religiosa neste país multirracial e pluriétnico. Perdemos a possibilidade de avançar na desconstrução da cultura machista, racista e homofóbica que predomina em nossa sociedade. Uma cultura de violência que tem autorizado Estado e sociedade a produzirem números inaceitáveis de casos de violência contra as mulheres, de assassinatos de jovens negros e da população LGBTT no país.
De quantas mortes precisamos para convencer nossos ilustres parlamentares de que educar para a igualdade de gênero e para a igualdade racial e étnica é uma necessidade absolutamente urgente em nossa sociedade? De quantos estupros, de quantos assassinatos de mulheres, de jovens negros, de indígenas, de gays, lésbicas e pessoas trans precisamos?
Quantos casos e dados são necessários para convencê-los da gravidade do problema? Servem os dados do Ipea, lançados em 27 de março, sobre violência contra as mulheres e estupro? Essas pesquisas apontam números estarrecedores: 65,1% de concordância, total ou parcial, com a afirmação “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Concordaram com a afirmação de que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros” 58,5%. O relatório da pesquisa destaca ainda, a respeito desses dados, que “chama atenção o fato de que católicos têm chance 1,4 vez maior de concordarem total ou parcialmente com essa afirmação, e evangélicos, 1,5 vez maior”.
Na pesquisa sobre estupros, uma estimativa assustadora de mais de 500 mil casos por ano no país, dos quais apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia; 97,5% são praticados contra mulheres; 70%, contra menores de 18 anos; e 15% são estupro coletivo.
Educação para a igualdade e para a liberdade não é pregação de ideologia, é garantia de direitos e é estratégia de construção de uma sociedade menos violenta e mais justa. O Estado brasileiro não pode, nem por um segundo, enganar-se quanto à sua obrigação e quanto ao seu compro-misso com essa construção. Não permitiremos nada menos.
Por Nina Madsen, socióloga e integrante do colegiado de Gestão do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea)
(Do Correio Braziliense)