Artigo | Homeschooling: as trevas e a servidão ultraliberal

Artigo de Adão Francisco de Oliveira, William Simões, Ana Carolina de Oliveira Marques, Cezar Freitas Barros e Ricardo Junior Assis F. Gonçalves, publicado pelo portal Brasil de Fato. Edição de Rebeca Cavalcante.

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Homeschooling: as trevas e a servidão ultraliberal

No último dia 18 de maio de 2022, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do projeto de lei que institui no Brasil o homeschooling (ensino domiciliar).

Uma das principais bandeiras defendidas pelo governo Bolsonaro para a Educação, esta medida visa regulamentar esse tipo de ensino, que foi proibida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em setembro de 2018 sob o amparo do Código Penal, que o prescreve como crime pelo fato de os pais deixarem de prover, sem justa causa, a instrução primária de filho em idade escolar.

No capítulo da Constituição da República Federativa Brasileira de 1988 que trata da Educação, o exercício desta é concebido essencialmente no âmbito da escola, sendo um direito de todos e um dever do Estado e da família a sua provisão, como destacam os artigos 205 e 206:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I – Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola.

Este entendimento é reiterado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB 9394/96, que avança na compreensão da primazia da escola como espaço de sociabilidade e formação do ser social, prescrevendo no parágrafo 2º do Art. 1º que: A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social.

De fato, a escola é o espaço social fundamental onde se erigem os fundamentos da sociabilidade com base no entendimento de que a humanidade se constitui e se realiza na produção social.

As conquistas históricas expressas materialmente nos dispositivos técnicos e tecnológicos e culturalmente nas concepções, ideias e representações são frutos de experiências socialmente radicadas. As sociedades humanas que organizaram escolas para, mediante suas conquistas históricas, exprimir projetos para o futuro tiveram mais êxito, abrangência e importância.

Na contemporaneidade, com a unificação da agenda econômica mundial a partir da Revolução Industrial – e que, na atualidade, engloba cada vez mais o avanço técnico-científico-informacional e os interesses de agentes empresariais-financeiros e neoliberais –, a escola tornou-se exigência e realidade de todos os países, encerrando em si mesma um sentido contraditório e dialético.

De um lado, a reprodução das conquistas históricas através de currículos didático-pedagógicos, com orientação para o aperfeiçoamento do trabalho e resguardando dispositivos ideológicos de controle e dominação da classe capitalista, dirigente das relações sociais de produção. De outro, a construção utópica de sentidos libertários, humanitários e alternativos à exploração típica do trabalho no modo de produção capitalista.

Assim, nos últimos 170 anos a experiência escolar foi se disseminando mundo afora e refletindo, em seu processo de estruturação e formação, essa dialética que é própria da época e das sociedades que a reproduzem. Contudo, mesmo como um espaço que se desenvolve em contradições a escola é concebida como uma instituição fundamental para imbuir crianças e jovens de humanidade e, por meio dos currículos, da mediação docente e das relações com seus pares sociais, ampliar suas perspectivas de futuro.

Do ponto de vista das classes sociais a escola nunca será um espaço perfeito, mas sempre será o espaço mais importante para a construção do conhecimento e do saber socialmente referendado, da sociabilidade, das trocas sociais, das regras de convivência, da tolerância, do respeito, do reconhecimento da alteridade.

Mesmo que em sociedades divididas em classes, a escola em que o professor é um mediador fundamental, semeia conjuntamente com as crianças, jovens e toda sua comunidade, a humanidade capaz de elevar a esperança de que o futuro pode ser melhor.

Por isso, negar a escola e o seu poder de humanização contradiz projetos de desenvolvimento; retroage em conquistas civilizatórias; expõe a incompreensão histórica e o equívoco projetual de grupos que exercem o poder; explicita a aporofobia, a dascalofobia, a dialofobia, a gnosiofobia e a xenofobia como frutos de um recurso ideológico recente de avanço de determinadas forças do capitalismo e que promovem uma intensificação da acumulação de riquezas a partir da desestabilização social. Negar a escola é estabelecer um contexto de trevas.

Como prescreve o Código Penal brasileiro, negar a escola é causar o abandono intelectual e isso não coaduna com um Brasil mais afirmado, autônomo e independente no cenário internacional. Crianças e jovens mais inteligentes aprendem socialmente, aprendem juntas, estabelecendo relações de aprendizagem, e esses sujeitos só podem existir plenamente se tomarmos as escolas em suas configurações atuais e avançarmos em sua estruturação, em seu conceito e em sua prática, e não se retroagirmos no caminho de sua desconsideração.

A radicalidade conservadora e retrógrada da proposta de homeschooling não é um fato político isolado. Ela se inscreve no quadro das reformas ultraneoliberais levadas a cabo pelo governo de Jair Bolsonaro e que temos denunciado em várias notas de repúdio assinadas em conjunto com as demais associações científicas nacionais. Assim, elas se associam:

– à discussão das DCNs – Diretrizes Curriculares Nacionais (que ameaça a formação do bacharel em Geografia em favor do tecnólogo);

– à implementação do Novo Ensino Médio (com a desobrigação curricular das Ciências Humanas e Sociais e com a instituição dos Itinerários Formativos);

– à Base Nacional Comum da Formação de Professores (que submete a formação de professores a uma pedagogia tecnicista que privilegia o saber-fazer em detrimento da formação científica);

– com a intenção de implantação do novo Marco Temporal (ameaçando áreas florestais sob a posse de indígenas);

– com a tramitação do PL da Grilagem (que regulariza a situação de áreas rurais sabidamente griladas);

– com a tentativa de promulgação do Decreto das Cavernas (que autoriza a realização de intervenções em cavidades naturais e subterrâneas como cavernas e grutas, colocando-as sob o risco de destruição).

Associam-se a estas pautas polêmicas tantas outras já denunciadas por nós e que já se encontram em curso face ao desinvestimento educacional, científico e tecnológico dos últimos anos; à perseguição administrativa e política a professores, intelectuais e artistas; ao desmantelamento da rede de proteção social (políticas sociais, trabalhistas e previdenciárias); à violência contra lideranças comunitárias (indígenas, camponeses, extrativistas, ambientalistas, sindicais); ao desmonte dos órgãos IBAMA, IPHAN, FUNAI, INCRA, IBGE; à privatização dos ativos nacionais, especialmente canalizados nas produções da Petrobrás e da Eletrobrás.

Essa concertação ultraneoliberal é contraditória com uma sociedade desenvolvida e independente, sendo, portanto, imprudente. Ela estabelece um novo marco de servidão do Brasil e dos brasileiros a corporações econômicas que não se importam com esta nação e com o seu povo. Cobramos do governo federal postura cívica, republicana e democrática de representação de nossos interesses nacionais. Não ao homeschooling!

Abaixo às reformas ultraneoliberais!