A tecnologia Educacional em tempos de pandemia global e os desafios do fortalecimento do caráter público da educação

Por Luciana Custódio*

A pandemia global da covid-19 possibilitou denunciar ao mundo o contexto da Educação no Brasil pensado a partir da potencialização das desigualdades e dos desafios do trabalho remoto como tentativa de simular práticas docentes vinculadas ao Projeto Político Institucional da TIC (Tecnologia da Informação e Comunicação), bem como revelar os fortes ataques neoliberais traduzidos historicamente pelo desinvestimento tecnológico na educação pública, tanto em nível básico quanto superior.

O que estamos vivendo no sentido educativo e social mais amplo é uma crise global desenfreada e caracterizada por um processo de desenvolvimento contraditório. Por um lado, há uma forte tendência em torno da mercantilização e financeirização da educação, destacados pelo estilo neoliberal individualista da relação das pessoas com a vida, com potencial redução dos espaços públicos e uma potente ascensão de políticas privatistas desses espaços. Por outro lado, urge a necessidade de reorganização da sociedade para o fortalecimento da luta pela resistência e defesa do caráter público da educação, desafio essencial para a conquista da soberania pedagógica.

No Brasil, a Soberania Pedagógica tem sido alvo de ataques constantes do governo fascista Bolsonaro, seus aliados, apoiadores políticos e setores conservadores/ fundamentalistas, com projetos de ataque ao direito constitucional que “assegura que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, devendo ser garantida uma educação digna, gratuita, pública e de qualidade, sendo este considerado como um direito fundamental assegurado a todos os cidadãos”. Esses ataques à Soberania Pedagógica estão severamente traduzidos através de projetos como o Escola Sem Partido, o homeschooling, o Novo Ensino Médio, as alterações na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), entre outros que criminalizam o serviço público e seus servidores, como a Reforma Administrativa (PEC 32), que apresenta o desmonte total dos aparelhos e serviços públicos, inclusive a educação pública.

O direito à educação pública, laica, democrática e socialmente referenciada está substancialmente ameaçado por essas políticas privatistas e entreguistas, travestidas de reformas apresentadas de forma desonesta e desleal à sociedade como modernização do Sistema Educacional Brasileiro. Entretanto, na verdade, são projetos articulados a partir dos interesses do grande emrpesariado, do Banco Mundial e do Sistema Financeiro Internacional. Afinal, a educação foi “descoberta” como um mercado de alto poder rentável.

Esse processo de apropriação da educação pelo capital pode ser facilmente identificado também nas universidades. Gentili, na Conferencia “El proyecto político académico de laEducación Superior. Perspectivas en debate y desafíos”, nos alerta para os riscos do desmonte das universidades públicas e a enorme onda de privatização também do Ensino Superior, que gera o movimento das faculdades privadas a partir do capitalismo acadêmico e a geração de fábricas de diplomas advindos de processos de produção de conhecimentos precários para as classes sociais mais vulneráveis socioeconomicamente. Nesse sentido, as políticas públicas de acesso da periferia e estudantes das escolas públicas às universidades públicas passam a ser substituídas por políticas investidas apenas em setores mais privilegiados do sistema: “uma pequena elite intelectual”, conforme declarou o ex-ministro da Educação de Bolsonaro, Ricardo Vélez.

Ao contextualizar essa contradição no mundo em pandemia, podemos perceber que a ausência do Estado no fortalecimento de políticas públicas e eficazes tem implicado na terceirização dos setores de proteção da sociedade e prestação de serviços cada vez mais precarizados. Essa realidade em sido vivida há mais de um ano de trabalho remoto, sem nenhum investimento do governo em estruturar as plataformas e os artefatos necessários para a prática pedagógica como uma política pública extremamente necessária e urgente para as aulas remotas. Infelizmente, o que vimos acontecer no Brasil foi mais um crime contra o povo brasileiro, que deixou à própria sorte gestores (as), professores (as), orientadores(as) educacionais, especialistas, estudantes, pais, mães, responsáveis.

O direito à saúde, à educação, ao trabalho, entre outros, são direitos que residem no Território Constitucional Brasileiro. O art. 6º da Constituição Federal de 1988 diz que “a educação é um direito fundamental de natureza social”. Podemos afirmar, portanto, que a privatização dos setores de proteção da sociedade perpassa também pelo campo da educação. A privatização da educação como uma prática de desproteção social implica em serviços cada vez mais deficitários.

A covid-19 está impondo um debate importante no que diz respeito à necessidade de enfretamento da pandemia a partir do fortalecimento da luta pela vida, por vacina, por “comida no prato” e por políticas públicas que nos permitam enfrentar os efeitos privatizadores advindos desse processo, além da necessidade de readequação das estruturas de serviços sociais essenciais em função da ausência deliberada do Estado como o provedor.

Na Educação, os efeitos colaterais desse processo serão muito danosos, porque a tecnologia institucional que se instalou durante o trabalho remoto contribuiu pouco para a caracterização e valorização do caráter público da educação. Por exemplo, o trabalho pedagógico remoto como única opção de preservar a vida, impôs muitos desafios, dificuldades e a necessidade de utilização de recursos e ferramentas próprias para o trabalho educacional. Algumas fragilidades desse processo podem ser apontadas, como o abandono do Estado no preparo profissional para as escolas lidarem com essas novas ferramentas, a falta de recursos adequados para o trabalho pedagógico remoto, o processo avassalador de exclusão de estudantes que ficaram e ainda estarão fora da plataforma – ferindo o caráter primordial da educação pública que deveria ser o de democratizar o acesso a partir do princípio de igualdade de direitos –, entre outros. O mundo em pandemia trouxe para o campo da educação uma nova forma de exclusão, que é a exclusão por conectividade entre os setores populares da sociedade brasileira.

O processo de organização do trabalho pedagógico a partir da tecnologia educacional, realizada necessariamente por meios eletrônicos sem estar estruturada como uma política pública eficaz, retira o caráter público dos artefatos, uma vez que nos conectamos por meios próprios. Nesse sentido, a prática docente tem sido impregnada de um caráter privatizador da conectividade. Essa dinâmica permitiu também o acesso “externo” do que havia de mais autônomo, democrático e preservado na organização do espaço escolar, que é relação direta entre professores e estudantes.
Diante do exposto, vamos aos desafios de manter a luta pela soberania pedagógica, pela liberdade de cátedra; a luta pela democratização do acesso de estudantes à educação pública por meio de uma efetiva busca ativa institucional, a luta pela garantia de democracia e justiça social a partir do direito do acesso de estudantes e profissionais às ferramentas tecnológicas necessárias para o novo modelo híbrido; a luta por políticas públicas que consigam minimizar os impactos deixados pelo limbo pedagógico desse período, a luta contra o caráter privado da educação; a luta por vacinas para toda população, com monitoramento radical das condições sanitárias e monitoramento constante desse plano de retorno híbrido, dialogando com as Comunidades Escolares na perspectiva de fortalecer nossa luta para os próximos desafios.

*Luciana Custódio é professora da rede pública de ensino do DF e diretora do Sinpro-DF

 
 

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