O Natal dos sem cuecas e sem meias

Por Cristino Cesário Rocha – Celebrar o Natal remete a algo muito importante da história da humanidade: o Evento – Jesus de Nazaré. Essa prerrogativa serve para quem acredita, mas não perde o seu valor quando não sentida e vista com a mesma sensibilidade de quem crê. Porém, ao lembrar essa figura imemorável, importa também pensá-lo como um ser que foi capaz de, em sua tamanha humanidade, tornar-se divino. Fazer memória, portanto, de Jesus, é colocar em evidência uma voz que combatia todas as formas de opressão e discriminação: criança, mulher, prostituída, mendigo, doentes, estrangeiros e atacava com veemência a dominação, exploração e corrupção das lideranças políticas e religiosas de seu tempo. Acolher e seguir Jesus tem implicações éticas, políticas, culturais e espirituais, muito além da procedência religiosa e do tipo de igreja, porque o reino de Deus pregado por Jesus sela toda a dinâmica do Projeto de Deus.
A figura de Jesus como o ser que interrogou e interroga concepções e práticas desumanas traz à tona a trama das relações em contexto brasileiro atual, particularmente no Distrito Federal. Vive-se hoje, no Distrito Federal, uma preocupação muito importante que remete à mitologia grega: a caixa de pandora. Questões importantes emergem neste contexto: quem abriu a caixa de pandora? Qual releitura se pode fazer ao considerar a questão de gênero e os processos políticos e administrativos no poder público?
Paradoxalmente, quem abriu a caixa de onde estão todos os males e a esperança, em contexto do Distrito Federal contemporâneo não foi uma mulher, no caso de Pandora, mas um homem. Para os machistas, os males que escapam da caixa são frutos da curiosidade de uma mulher e de sua desobediência, mas a história não tem mentido ao destino: abrir e disseminar males e esperanças não tem cor, etnia/raça, sexo ou classe social. Tem, sim, atitudes, defesa de interesses e escolhas que fazemos.
A caixa não de pandora, mas de quadrilha, tem muitos males que foram abertos e outros ainda no fundo misturados com a esperança: peculato, formação de quadrilha, corrupção passiva, corrupção ativa, tráfico de influência e tantas outras formas de lesão da humanidade. O poder público como se apresenta neste cenário, com raras exceções, é de fato Lesa-futuro.
No tempo de Jesus havia muitas caixas que seriam necessárias de serem abertas, e Jesus não se esquivou de abrí-las e expulsar todos os males. Eram caixas cheias de egoísmo, opressão, preconceito, exploração e tantos outros males. Abrir uma caixa não constitui um mal, nem por sua mera curiosidade, nem por sua dinâmica denunciativa, porque ambas fortalecem a vida em sua condição de andarilhagem, na perspectiva Freiriana.
Viver e viver bem é um princípio ético fundamental, porém, esse princípio foi privatizado pelos corruptos que não aceitam que todos tenham acesso aos bens materiais e não-materiais. Instrumentalizam o poder em benefício da expropriação e usurpação da dignidade dos trabalhadores (as) do país, por isso têm dificuldade de celebrar o Deus de Jesus Cristo: a luz que não adere às trevas, a justiça e a verdade que incomodam os poderosos e o lugar de quem combate todas as formas de escândalos, corrupção e morte.
Mais do que nuca, Freire vive. Em 17 de abril de 1997, em última entrevista, no Alto Sumaré/São Paulo, Freire disse com muita convicção: “Estou profundamente feliz por não morrer sem antes ver e acompanhar a marcha dos sem terra. Agradeço a Deus por poder ver a marcha dos excluídos, dos que desejam ser amados e não podem, dos que querem ser e são impedidos de ser, dos que marcham contra uma obediência servil. Bom seria se houvesse uma marcha pela decência e contra a sem-vergonhice dos corruptos.” Essa marcha se faz presente, e muito significativa ao brotar da ação da juventude que indignada limpa a Câmara Legislativa como sinal de esperança de se punir os culpados(as) do mensalão que produz vítimas na saúde, educação, lazer, cultura e outras esferas da vida humana. Está presente e vive na marcha e indignação dos professores (as) que marcham contra a corrupção no poder público.
A dimensão celebrativa do Natal para os sem cuecas, sem meias e destituídos da dignidade é radicalmente diferente da celebração dos banquetes Herodianos que tem além de cuecas e meias para guardar dinheiro alheio, tem também a regalia da proteção legal, muitas vezes instrumentalizada em favor da classe dominante que tem feito muitas vítimas.
Ao celebrar o Natal, em muitas sociedades do mundo, particularmente no Distrito Federal, muitas pessoas mal têm o que comer, enquanto poucos têm de sobra, até para “doar panetones” como forma de se esquivar dos reais problemas morais, quando o empobrecido e trabalhador(a) exigem no mínimo do poder público probidade administrativa, senso de justiça e política e redistributiva.
Celebrar o Natal com os sem cuecas, sem meias e desrespeitados em seus direitos abre as portas para o renascimento de um grande homem e de uma grande mulher, na esteira dos grandes lutadores (as) contra a dominação, a exploração e a morte, por isso Jesus vive, da mesma forma que Gandhi, Martim Luther King, Lélia Gonzáles, Doroth Staing, Paulo Freire, Chico Mendes, Frei Tito, Mariguela… Neste sentido, as cem mil cuecas e cem mil meias que escondem dinheiro ilegal, além das diversas malas e bancos não têm lugar na manjedoura nem na luz que se desponta no mundo. Há sim, no colo do menino e da menina que nasce o germe da esperança que pode sinalizar a felicidade que ainda está no fundo da caixa de homens e mulheres que vivem inescrupulosamente.
Muitas pessoas passam fome no mundo, não sendo diferente do Distrito Federal, porque se privatiza a dignidade. O pão que é usurpado das mesas dos famintos, fruto de várias caixas com toda espécie de males, não é pão abençoado, e Boff (1991:30) ajuda a entender essa perspectiva ao dizer que “O pão que comemos, fruto da exploração do irmão, não é pão abençoado por Deus. É pão que apenas nutre mas não alimenta a vida humana que é somente humana enquanto vive na reta ordem da justiça e da fraternidade. O pão injusto não é nosso, mas é roubo;pertence ao outro”. Dessa mesma forma, pode-se dizer de maneira enfática que quem explora, rouba e se alimenta tendo por base o sofrimento e morte dos empobrecidos é como uma vaca no campo a pastar e se engodando sem saber o dia da matança.
Enfim, celebrar o Natal deve contemplar a dimensão do sagrado enquanto manifestação de todas as expressões da vida, fazer memória perigosa e subversiva do evento – Jesus e uma práxis educativa emancipatória. Sendo assim, o Natal deixa de ser apenas uma festa religiosa para ser um momento oportuno de consciência da pessoa enquanto sujeito colocado na cruz e com desejo de renascer com vitalidade e luz. Quem age de acordo com o desejo de Jesus e a luta de todas as pessoas que deram e dão a vida em favor da dignidade humana deve, com certa urgência, rasgar todas as caixas que se configuram como o lugar das mazelas que afligem a humanidade, caso contrário a caixa dita de “pandora” não passará de uma reprodução machista ocidental e de perpetuação dos males em detrimento da esperança…
CRISTINO CESÁRIO ROCHA – é professor da escola pública do Distrito Federal